Ásana, consciência, provação

Texto para reunião do Círculo de Leitura de Janeiro 2019

Ásana, consciência, provação

No caminho (marga) que o yôgi percorre, acontece ir muito longe nalguns aspectos, mais imediatos, como seja o aspecto físico, corporal. Mas noutras dimensões, mais subtis, por vezes tem a sensação de marcar passo. Há que ter presente que no aprofundar do Yôga há aspectos introspectivos muito importantes. Cada passo, mais do que um movimento físico, deve conter um todo de união entre o corpo e a meditação, entre o corpo e a mente. A ponte de uma tal prática, ainda que se expresse através da coreografia de ásana, obriga a uma precisão gestual e uma orientação da consciência ligada ao gesto. Ou seja, implica uma forma de praticar através de uma rotina repetitiva, acompanhada de um processo de interiorização e de um aprofundar do próprio na via, de modo cada vez mais decisivo, intenso, total. Abraçando os seus valores, as suas preposições, não só externamente, mas de modo interno, “derrubando barreiras” que se constituem obstáculo.

Ora, esta necessidade de interiorizar os valores do caminho (marga) a que o sádhaka se dedica, implica um esforço, constante e consciente, para ultrapassar o nível sensorial quotidiano ou ordinário. Por isso, qualquer que seja a técnica, num certo momento, a aprendizagem marca passo: o saber fazer é adquirido, mas a progressão estagna. Parece que as ondas recuam, mas ainda assim a maré sobe. Isto acontece porque a prática deve conduzir-nos a uma mudança qualitativa de atitude. Em suma, a coreografia de ásana é uma forma prática, transmissível de uma técnica de transformação do corpo e da consciência. A coreografia implica, ao mesmo tempo, um acto físico e um estado de consciência, acentua a interioridade e a subjectividade. Representa um modo de percorrer a via que nos conduz à perfeição, através da ideia de que percorrer o caminho é o fim em si mesmo. Os limites físicos, quotidianos, serão ultrapassados de modo excepcional, através de circunstâncias de treino que nos levam aos limites (vários e não só físicos). Quem quer percorrer o caminho que percorro, deve preparar-se para uma grande transformação, total, em todas as suas dimensões. Não se trata de procurar um momento de iluminação, de um momento de percepção de algo mais. Mas sim de forjar (mais uma vez o ferreiro, o grande demiurgo) um estado durável de consciência ampla.

Neste caminho, a fadiga, a dor, momentâneas, resultantes do esforço físico intenso, são como um apoio para o sádhaka se elevar do estado ordinário do corpo. Esta busca, o trilhar desta senda, implica viver outras experiências, novas pela maneira nova de apreender e organizar o vazio, o caminho não percorrido.

João Camacho, o Sono de Ganêsha. O poder adormecido

O centro. O fio de Ariadne e a busca introspectiva

Apontamentos

 

O centro. O fio de Ariadne e a busca introspectiva – maithuna.

 

Os efeitos energéticos de uma aula de SwáSthya Yôga.

 

A progressão do Yôgi de acordo com as escolas tântricas medievais.

 

Coligi alguns apontamentos que se vos destinam. Vamos ver se ao passá-los à forma escrita os consigo apresentar com sútra, ou seja com um fio condutor, o fio que sustenta a nossa caminhada no labirinto, o fio que une os fragmentos da nossa existência, quando somos confrontados, directamente, sem subterfúgios connosco e com aquilo que de facto somos. E esse confronto ocorre uma e outra vez, se o procurarmos, evidentemente. O centro não estará definitivamente resolvido enquanto não nos libertarmos totalmente das amarras da acção dos triguna. Assim, passamos tantas vezes de um labirinto a outro – a constante procura do centro que deve ser tão imóvel quanto rápida. Alguns de vós afirmam ir entendendo o que vos digo umas vezes, e outras nem por isso. Deixando o que não conseguem decifrar para depois. Não tem importância que assim seja. Nestas coisas a que nos dedicamos, entendemos de imediato quando já experimentámos, percebemos o que está em causa quando, na nossa caminhada individual, nos estamos a aproximar da experiência referida. Ficamos sem saber do que se trata se ainda estamos longe. Mas o importante é estarmos a caminho.

 O confronto connosco, no trabalho de introspecção de que tantas vezes falamos, pode e causa muitas vezes sofrimento, dando-nos a sensação de estarmos perdidos, de não sermos capazes de nos encontrarmos mais. Podemos ter o delírio de ficarmos para sempre retidos no labirinto, sempre longe de encontrar seja o centro, seja o caminho para a saída. E quantas vezes, cada um de vós, não se sentiram já perdidos? Daí a importância do fio de Ariadne, do sútra condutor, que liga os rudráksha do japamálá.

 

E referir o sofrimento, numa linhagem tântrica, não será um contra-senso? Neste caso não. Continuamos no caminho da sensorialidade. Reparem, perguntem à [uma das nossas discípulas], mãe experiente, se o sofrimento de cada uma das 3 gestações e respectivos partos, não lhe causou uma alegria tal como nós, os homens, não conseguimos alcançar? Perguntem à [outra discípula] e à [uma aluna antiga], que têm essas sensações mais recentes, tão recentes que neste momento, os dois bebés ainda não têm de vida extra-uterina o tempo que durou a gravidez. Para as mães como para os bebés, o cordão umbilical energético não desaparece, antes de nove meses de existência fora do corpo da mãe. Perguntem-lhes o que sentiram, como se sentiram – acreditem, mesmo que elas não o confessem, sentiram-se verdadeiras deusas-mães, capazes de realizar o milagre da vida. Capazes de o realizarem para além do pai e, por vezes, não obstante o pai, que não passa do lingadhara, ou seja o portador do pénis. Sofrimento, para a mãe e para o novo ser? Sim.

 

Alegria infindável, auto realização e auto satisfação para as mulheres-deusas que concretizaram o milagre da criação? Também um inequívoco sim. Em relação aos nossos colegas homens, se querem mesmo sentir o que vos digo, então têm duas soluções – regressem como mulheres e vivenciem o que uma mulher é capaz ou, e só o conseguirão de forma aproximada, fundam-se na shaktí. Sejam um só com a Shaktí, coincidentia opositorum

– a coincidência dos opostos. Em maithuna, se e quando o quiserem fazer, poderão ter a graça de a shaktí-deusa, que aceda ao maithuna convosco, vos permitir esse fundir de corpos (os vários que identificamos no Yôga). E aí terão um vislumbre do ser, do sentir, da sensibilidade, da emoção de uma mulher. E, também ela perceberá a força viril, a masculinidade do macho, do homem-touro, a fonte e a origem da sua força, que por vezes, não contida, se revela como brutalidade. E os dois poderão ser um – o andrógino. E tudo isto, porque nesse instante aquele homem e aquela mulher, são tão só Shiva e Shaktí.

 

Não deverão confundir maithuna com sexo. Poderão ter relações sexuais sempre que quiserem e muito bem entenderem, o que vos saberá muito bem, pelo menos assim vos desejo, sem que isso tenha algo a ver com o maithuna, a alquimia sexual. Claro que têm de comum que ambas as actividades, passam pela sexualidade e implicam uma boa dose de excitação. Mas a semelhança termina aí.

Ainda a propósito das últimas aulas e dos efeitos energéticos que possam ter tido sobre vós e sei de quase todos vós que foram intensos e se manifestaram, nuns duma maneira, noutros noutra maneira, para uns com mais intensidade, para outros com mais serenidade. Deixo-vos alguns apontamentos e cada um de vós saberá, provavelmente, quando o ensinamento se lhe destina.

 a) Uma aula de Yôga pode ser modulada de muitas formas, afim de produzir mais efeitos aqui, menos ali, equilibrar exageros energéticos neste aspecto, intensificá-los quando são parcos naquele. Um mestre de Yôga deverá conseguirá fazê-lo, orientando a prática de modo a intensificar ou a diminuir este ou aquele efeito. Pode fazê-lo porque sabe o que está a manipular, conhece intimamente as energias que está a usar, a estimular. Por isso, pode acontecer que um discípulo sinta efeitos tão díspares de uma aula para outra. Não que esteja algo mal com esse discípulo, que sentia efeitos tão intensos e depois tão suaves, nas mesmas zonas do corpo e com os mesmos exercícios.

 b) Algumas tradições tântricas medievais, apontam para uma progressão do Yôgi da seguinte forma:

 

Pashu,          o homem comum, o homem animal, que ainda não iniciou o caminho. Sendo que Shiva, o mahêshwara (o grande senhor), maháyôgi (o grande Yôgi), o Prathamêja (o 1.º nascido), o Sadyojata (o nascido espontaneamente), se apresente tão só, com a humildade dos sábios, como Pashupati, o senhor dos

 

animais, pois, em verdade, esses são os que mais necessitam de Shiva e dos seus ensinamentos.

Sádhaka       (o praticante), sádhika (a praticante). O pashu transmutou-se em aprendiz. É aquele que transpôs o 1.º véu da ignorância, iniciou os passos rumo à libertação. É o que segue o sádhana com afinco e disciplina e no Yôga tântrico não importa qual seja o passado desse sádhaka, ou a sua origem, só importa o que

 

acontece depois do início do caminho.

 

Vira.               Seguidamente passa a herói ou adepto. Neste estado já pode distinguir e ultrapassar as aparências do mundo material. São iniciados que pela prática do Yôga adquiriram o poder de dominar o mundo físico e o mundo subtil. Já transcenderam a condição humana. Um vira pode já ser um mestre que domina todas as energias em si latentes e em sua volta. É capaz de dominar as forças elementares da natureza. Tem a capacidade

 

de atravessar o labirinto interno e aceder aos níveis superiores.

 

Siddha           o realizado. Este é o estado seguinte, também apelidado de kaula (membro do grupo), palavra que corresponde a companheiro. Encontra-se num estado de verdade. Pode dominar as pulsões naturais, não necessitando nem de rituais, nem de virtude. Ele é, no seu corpo, mestre da criação. Domina

 

o poder da serpente

 

Divya.           É um estado acima e para além do anterior. É um senhor da energia e do fogo, em si e fora de si.

Voltando ainda aos efeitos energéticos, a tradição hindu aponta a existência de 10 principais deusas, apelidadas de mahá vidyá (as grandes sabedorias). Estas dez grandes deusas são Kálí, a negra, a personificação da ira, da fúria de Durga, Tárá, Tripurá Sundarí, Bhuvaneshwarí, Dhúmávatí, Bagalámukhí, Bhairaví, Mantagí, Kamalá e Chinnamastá. Entre estas, para os aspectos energéticos que foram sentido, umas vezes mais intensos outras vezes mais suaves, é Chinnamastá, a da cabeça cortada, que tem importância especial. Esta deusa costuma ser representada nua, com uma guirlanda de crânios ao redor do toco do pescoço. Segura a sua própria cabeça cortada com a mão esquerda. Muitas vezes é ainda representada, sentada ou em pé sobre um lótus e sobre um casal, Shiva e Shakti, em cópula, com esta por cima daquele. Do pescoço, jorram duas correntes de sangue, com as quais a deusa pretende alimentar as suas duas servas, Jayá e Vijayá, que recebem cada uma delas um dos jorros de sangue na boca, numas representações, ou num recipiente noutras representações. O cortar da cabeça, tal como já acontece no mito de Ganêsha, representa a morte daquele, que uma vez iniciado renasce, mas agora num estado ontológico superior. O cortar da cabeça significa o cortar das amarras

 

do mundo profano, o libertar-se para o mundo sagrado. Por outro lado, este sacrifício da mãe divina, representa o sacrifício das correntes esquerda e direita, pingalá e idá, que têm de ser sacrificadas para permitir o livre fluxo de energia pelo canal central, sushumna nádí. Sem o sacrifício destas duas correntes, consegue-se equilíbrio, mas não exactamente o despertar da kundaliní. Tanto assim é que o outro nome desta deusa é Sushumnáswara Bhásiní, ou seja, ‘a que brilha com o som do canal central’. O casal por baixo da deusa, é a estimulação sexual que desperta a kundaliní pelo facto de terem sido sacrificadas as duas correntes, prána e apana.

 

SwáSthya

 

João Camacho, Yôgachárya

 

Discípulo do Mestre DeRose

 

“Sou irmão de dragões e companheiro de corujas.”

Zoom Sobre Agora

Tecnologia e Consciência

 

Uma rajada fortíssima assobia lá fora:

– Que ventania!

 

Durante 5 segundos a minha atenção fixa-se no silvo do ar na janela e sinto a aragem ligeira que chega à minha pele. Mas o meu pensamento, tal como o vento que passa, não tarda em voar para outras paragens. Na Internet uma notícia corre pela rede global:

 

– Avião cai, ao tentar aterrar na Jamaica e parte-se em três partes. 44 feridos.

 

Se a notícia interessasse ao mundo inteiro – como a tragédia provocada pelo tsunami do Natal de 2004 – milhares de milhões de pessoas tomariam consciência dela em poucos dias.

A Humanidade estendeu uma rede global de comunicação por todo o planeta. Em minutos tomamos consciência de acontecimentos do outro lado do mundo. A informação circula por teias globais que envolvem o planeta e que, tal como a famosa world wide web, estão construídas de tal modo que a informação continua a chegar de um ponto ao outro, mesmo que uma parte da teia se rasgue.

As tecnologias aumentaram muitíssimo a nossa rapidez de comunicação. Mas cabe perguntar:

– Será que a ciência e as impressionantes tecnologias de comunicação e de observação de que dispomos hoje nos têm feito mudar algo de essencial ao nível da nossa consciência da vida e do mundo?

Em primeiro lugar convém dizer que talvez seja prudente desconfiarmos bastante da nossa consciência. O que se pode esperar de um ser que pensa sobre o seu próprio pensamento? É natural que essa reflexão lhe pregue muitas partidas! A História tem-nos demonstrado que assim é. Os modelos cosmológicos, sempre “modernos” e sempre “científicos” que temos inventado para descrever o mundo são exemplo disso. Quando a nossa consciência não ia muito além de uma imensidão de areia, de alguns oásis e de alguns pequenos mares, acreditávamos que todo esse mundo enorme tinha sido criado para “nós”! Depois, circum-navegámos o mundo, mas, apesar da escala do zoom ter mudado, continuámos a acreditar por muitos anos que a enorme esfera coberta de oceanos fora “criada para nós”.

– E quem éramos“nós”?

Nessa altura “nós” éramos os navegadores de pele branca (embora por vezes bem mais suja do que a dos nativos, devido à escassez de água no interior das caravelas) e tão confiantes estávamos nessa versão do mundo que a ensinávamos a todos os “outros” que íamos encontrando em cada pedaço de terra que descobríamos…

Foram tempos de descobrimento e glória para uns, de tragédia e desenraizamento para outros. Marcas muito fortes ficaram. Mas esse tempo passou.

 

 Somos Uma Só Espécie

Contemplando esse tempo nota-se, hoje, uma grande evolução na nossa consciência como espécie: finalmente fomos capazes de incluir toda a humanidade naquilo a que chamamos “nós”.

É verdade que as religiões há muito que nos falavam dessa fraternidade. Quem queria acreditar acreditava. Mas a demonstração racional tardou a chegar. A ciência demorou mas acabou por demonstrar, pela via da genética, que somos uma espécie única e que nem sequer faz sentido falar em “raças humanas” (para essa consciencialização global ajudou muito percebermos que, afinal, sempre descendemos todos de uma mesma tribo do Vale do Rift em África).

Para trás ficou o tempo em que imaginávamos que outros seres humanos que nos rodeavam eram diferentes de nós, irracionais, não-pensantes, enfim “outros”.

No mínimo podemos dizer que “a nossa mente se tornou bastante mais elástica”.

Dir-se-ia que com esse passo fomos capazes de fazer um primeiro “zoom de consciência”.

 

Toda a Biosfera está Ligada

Agora foi se como se aprendêssemos a colocar vários tipos de lentes em frente à “objectiva” da nossa mente.

Usando uma primeira lente do tipo “grande angular” descobrimos que toda a biosfera – o conjunto dos seres vivos deste planeta – está intimamente ligada e que fazemos parte dela. Começamos agora a tomar consciência de que a nossa espécie não é a “dona do mundo”, mas que simplesmente o habita e que todas as outras espécies não existem apenas como “alimento”, ou como “carne para canhão” das nossas experiências “científicas”.

Aumentando o zoom da nossa consciência começamos a aperceber-nos que a própria consciência, afinal, se apresenta em muitas e diversas formas e que essa consciência, longe de ser única e objectiva, depende da biologia de cada uma das diferentes espécies do nosso planeta…

Depois, recorrendo aos nossos telescópios e rádio-telescópios, na terra e em órbita, continuámos a fazer zooms cada vez mais abrangentes, alargando as nossas fronteiras para dimensões antes inimagináveis – estrelas distantes, quasars, buracos negros, galáxias, enxames de galáxias, escalas de tempo e de espaço onde os zeros se acumulam às dezenas e às centenas, à direita dos algarismos com que numeramos a nossa régua de escala.

E, no outro extremo da escala do zoom, usando microscópios electrónicos e aceleradores de partículas, fomos descortinando mundos infinitesimais, com multidões de novas partículas constituintes da matéria e que desafiam as antigas fronteiras entre a matéria e a energia, e entre aquilo a que chamámos forças e campos.

 

– Mas será que o pensamento egocêntrico desapareceu definitivamente da nossa consciência?

Princípio Antrópico

Parece-me que não! Continua cá. Vai apenas mudando de nome. Senão vejamos.

Apesar de todos os avanços científicos e tecnológicos a que temos vindo a assistir, sobretudo no Século XX, alguns eminentes cientistas – notando a existência de um “curioso conjunto de coincidências” nas leis físicas que regem o nosso Universo, continuam a perguntar-se se o Universo existe da forma que existe de modo a possibilitar a nossa existência.

De facto bastaria que algumas relações existentes entre várias constantes físicas fossem ligeiramente diferentes – a constante gravitacional, a massa do protão, a idade do universo, etc. – e a vida, conforme nós a conhecemos hoje, não existiria.

O apelido mais recente que encontrámos para esta forma de pensamento foi “princípio antrópico” e não será certamente o último nome de baptismo desta corrente de pensamento.

Aliás, se retirarmos do centro a palavra anthropos (humano), colocando lá “Vida”, ou “Complexidade” (neste caso em oposição ao caos e à entropia), apenas o nome mudará, porque estaremos sempre pensando num universo que foi criado para “nós”, ou para aquilo que nós representamos.

Se assim for, por mais zoom que façamos, a nossa mente continuará a enganar-nos!

Se não mudarmos o paradigma, continuaremos eternamente a perguntar-nos se todo o Universo foi criado apenas e só para que a vida e a consciência, tal como a conhecemos, pudesse existir neste pequeno planeta azul flutuando na imensidão do espaço.

Por outro lado se nos colocarmos do lado oposto, dizendo que nada tem significado e que estamos aqui absolutamente por acaso, estaremos a ser no mínimo “pouco económicos” e, também, um pouco ignorantes das leis da estatística. Estaríamos do lado daquela corrente de pensamento que acredita que a Vida, em toda a sua complexidade, se montou por tentativa e erro, um pouco ao jeito de um mecânico preguiçoso – mas com todo o tempo do mundo – que colocasse um Boeing 777 totalmente desarmado dentro de um hangar de paredes resistentes, gerasse um enorme turbilhão de vento e esperasse para ver quando é que tudo se montava na perfeição.

Mas talvez não seja preciso preciso escolher entre uma ou outra das correntes. Talvez seja possível rejeitá-las a ambas e tentar uma abordagem diferente.

 Um Zoom Diferente

E se ousássemos usar a nossa “máquina de olhar para o mundo” já não apenas para fazer zoom de consciência, mas para nos libertar das amarras do pensamento egocêntrico?

Na realidade trata-se de uma “atitude de pensamento” muito fácil e acessível. Todos nós conseguimos fazê-lo e na realidade estamos a fazê-lo desde que nascemos. E até antes…

Como foi que a nossa mãe nos gerou? Ela não “pensou” em criar-nos, nós simplesmente “fomos acontecendo nela” e ela foi-se limitando a observar (provavelmente com aquele sorriso de grávida), à medida que nos desenvolvíamos no seu seio.

Seria absurdo que ela pensasse que a sua mente racional poderia controlar e comandar cada um dos fenómenos biológicos que levaram à “construção do nosso ser”.

– Mas será que ela não teve consciência do nosso processo de gestação?

– Teve sim! (Daí o tal sorriso.)

 

Simplesmente ela não teve uma “consciência egocêntrica” desse processo.

Durante essas quarenta semanas nenhuma mãe terá a veleidade de pensar, certamente, que é a sua mente racional que está a trabalhar activamente para controlar os vários estádios de desenvolvimento do feto. A mãe sabe que “algo se está construindo” e acredita (com muita esperança mas com com algum temor também) de que tudo irá “correr bem”. Mas ela sabe que a sua consciência racional tem pouca intervenção no processo de gestação.

Não quer isto dizer que a atitude da mãe se baseie apenas na passividade, na esperança e na fé. Não! Embora ela tenha a sensação que o seu filho é, para ela e durante esse período, o “centro do mundo” ela também sabe que o mundo não existe apenas para gerar o seu filho.

Por isso ela alimenta-se o melhor possível, consulta médicos, faz exames, enfim, faz tudo o que está ao seu alcance para que tudo corra bem.

Embora não seja a sua mente racional que está a construir o bebé, na verdade todo o seu ser (incluindo em boa parte essa mente racional) se empenha para que nasça um belo e saudável bebé.

 

– E o feto?

 

Que consciência teve do seu próprio processo de gestação? Pensou nele? Controlou-o?

Perguntando de outra maneira: será que desde o tempo em que vivemos nesse pequeno mundo morno e protector, que esteve durante nove meses à nossa disposição, continuamos a acreditar que o mundo exterior (por mais zooms que façamos) foi criado e continua a existir apenas para nós?

Um Universo Impregnado de Consciência

Se conseguirmos libertar-nos dessa ideia de que o mundo existe para nosso uso, ou que foi construído (ou evoluindo ao acaso) para que existamos, quanto tempo levaremos a concluir que (tal como o bebé que geramos) o universo não existe só para nós, mas que também está a ser gerado por nós, porque fazemos parte integrante dele?

De quanto tempo necessitaremos para concluir que o Universo está impregnado de consciência? De quanto tempo precisaremos para sentir que o Universo é, afinal, apenas um grande novelo de nada, produzido continuamente por essa mesma consciência?

A nossa mente racional não sabe, provavelmente, responder a esta pergunta. Mas se a nossa intuição responder que não precisamos de tempo para pensar, porque já “sentimos” isso há “bastante tempo”, muitas outras perguntas surgirão…

O Vento, Poderá ele Pensar em Mim?

Tomo consciência de uma nova rajada de vento lá fora.

– O vento continua a soprar forte!

 

E penso:

– E o vento? Poderá ele pensar em mim?

 

De repente tenho consciência de um ligeiro ardor no meu pé – será que uma pequena comunidade de fungos resolveu atacar os dedos do meu pé direito?

E se o planeta nos sentisse? Se ele sentisse que alguns seres vivos que habitam na sua crosta são como uma espécie de infecção na sua pele?

Numa floresta do Oregon há um fungo que é considerado o maior organismo vivo – ocupa cerca de 9 km2 e pesa mais de 600 toneladas. Se o nosso planeta “pensasse” numa escala de tempo proporcional ao seu tempo de vida – que é de 10 mil milhões de anos – quanto tempo duraria para ele um pensamento que para nós demora 5 segundos? É uma conta simples de fazer: 20 anos!

Poderíamos brincar com esse pensamento dizendo: “Em 20 anos o nosso planeta toma consciência de que uma infecção (um fungo no Oregon, ou… a humanidade) alastra na sua pele.”

E, já agora porque não perguntar: quanto tempo levará ele a reagir? Sabem que mais, agora o que me apetece mesmo é coçar o dedo grande do meu pé.

 

– Por isso, até depois! E, já agora, Feliz Natal!!!

 

– Oh! Oh! Oh! – ri o Pai Natal, afinadíssimo.

(E, dizem as más-línguas, foi essa vibração perfeita, a ecoar no nada, que fez nascer o mundo.)

 

José Patrão

Zoom sobre Agora 24 de Dezembro de 2009

Tantrismo

 

                         Os métodos práticos, os ritos, as técnicas que permitem ligar a experiência do Yôga com os princípios universais expressos na cosmologia do Sámkhya recebem o nome de tantrismo. Trata-se de técnicas realistas, baseadas na experiência. O tantrismo desenvolve e utiliza as possibilidades físicas, subtis e espirituais do ser humano, tendo em conta a interdependência de todos os aspectos do ser vivo e a sua correspondência com os diversos aspectos do ser cósmico. O corpo é a base, instrumento de toda a realização. Não há vida, pensamento, espiritualidade, independentes de um corpo vivo. (…)

Para o homem, o método tântrico tem por objectivo despertar, utilizar, controlar, partindo da energia enrolada no centro de base, as energias potenciais que se acham ligadas a todas as funções do corpo, digestivas, excretoras, reprodutoras do animal humano, que são a própria base da vida, mas também aos poderes latentes, percepções subtis não condicionadas pelo espaço e o tempo, poderes mágicos supra-intelectuais, espirituais, que não estão directamente sob o controle do pensamento e da vontade.

O método tântrico reproduz no homem a própria história da evolução. Parte dos mecanismos fundamentais do ser vivo para ascender às funções superiores, aos mecanismos mentais, intelectuais, e às aberturas espirituais do ser humano, a fim de controlá-los e ultrapassá-los.

Alain Daniélou, Shiva e Dionísio, pp. 131-132.

Tango do exílio

 

 


Inst. Júlio silva
 , João camacho,

                                                                                                 Tenho canções de mil cidades  

                                                                                                 Que a névoa apagou

                                                                                                 Não há ninguém a quem contar…

 

                                                                                                 Atravessei mil tempestades   

                                                                                                 Que o tempo amainou

                                                                                                 Hoje não sei a quem contar…

 

                                                                                                 À noite lembro essas cidades

                                                                                                 Que me hão-de levar

                                                                                                 Eu quero alguém a quem contar…

 

Sétima Legião

 

I – O poema

 

Por vezes descobrem-se, na actividade artística, aspectos que parecem comungar de algum vislumbre do intuicional. Dessa forma vamos olhando para a produção artística, encontraste, às vezes, algo que comunga com a proposta da Nossa Cultura. Muitas vezes, tão só um pequeno aspecto, às vezes, a mensagem explicita, outras, apenas um pequeno conceito, despercebido na mensagem geral. Desta vez olhámos para este poema de uma das canções do grupo musical, Sétima Legião: Tango do Exílio.

 

Sobre este poema deixo-vos a interpretação do Instrutor Júlio Silva. E, seguidamente alguns subsídios para a compreensão do conceito de mil.

 

Na primeira estrofe o poder que existe em todo o ser, a energia cósmica que está à espera de ser despertada, mas que a névoa do tempo que se espiritualizou institucionalizado se aperfeiçoa em esconder.

Na segunda estrofe vejo alguém que logrou o caminho da libertação, pela qual muitos podres e tempestades enfrentou, mas o tempo e o ritmo permitiram ultrapassar esses sustos das tempestades descobertas no caminho, e uma vez alcançado esse estágio não se sabe a quem contar, pois não compreenderiam.

Na terceira estrofe é a vivência já regular que visita constante esse estado de hiperconsciência que mais uma vez se gostaria de partilhar mas não há ninguém a quem contar, embora se queira.

Júlio da Silva.

 

2 – Sahásra

(mil)

 

Faço-vos esta chamada de atenção acerca do conceito de mil. É um conceito muito comum em variadas tradições. Tantas vezes este conceito nos surge por referência a impérios dos mil anos. E muitos tiveram essa duração. A Idade Média durou entre a queda do Império Romano e a Renascença, 1000 anos. O Império Romano durou, sensivelmente 1000 anos. A Igreja Católica afirmou-se todo-poderosa, nos mil anos da Idade Média, pelo menos na Europa Ocidental. O Império Romano do Oriente durou entre a queda de Roma e a Renascença, quando Constantinopla caiu nas mãos dos turcos otomanos – mil anos. Hitler, imbuído de um grande conhecimento esotérico, conhecendo as tradições e a simbologia, proponha-se a criar o III Reich, o Império dos mil anos.

São mil são os nomes da divindade (sahásra nama), para o hinduísmo. Há no hinduísmo trabalhos sobre os mil nomes da divindade em relação a Shiva, a Vishnu, a Lalita, a Ganapati, etc… Também sabemos que os iluminados transcendem nome (nama) e forma (rupa). O mestre fundador da Escola Bháva, a Nossa Escola, Shrí Kundalípati Bhávajanánda, um dia, afirmou a Mestre DeRose (que se encontrava em estado intuicional):

 

Eu Sou aquele que não tem nome (nama) nem forma (rupa).

Não te importes tanto se vivi há muito ou há pouco tempo,

Se no Oriente ou no Ocidente. Importa que eu viva

Aqui e agora, dentro do teu coração.

 

Os nomes, os mil nomes, são considerados como mantra. E por se referirem a um atributo da divindade, em rigor permitem um determinado tipo de organização da energia.

Por outro lado, sahásrara chakra, é o chakra das mil pétalas. Sahásra significa ‘mil‘, ra significa ‘raio‘ e chakra significa ‘roda‘, ‘vórticeenergético.

Quando nos debruçamos sobre a fisiologia subtil, descobrimos também uma referência a um chakra muito importante, o manipura chakra. Aqueles que se recordam do ensinamento que lhes dei sobre o pránáyáma, recordar-se-ão da importância fundamental e indispensável deste chakra no despertar da kundaliní, da sua inter-relação com o múla bandha, com o jalándhara bandha e com o uddiyana bandha. Ora, acerca deste chakra, chama-lhe a tradição, a cidade das mil pedras preciosas.

 

Um dia destes descobri, ou dei mais atenção, a um trabalho dos Sétima Legião, e fiquei deveras surpreendido. Mais uma vez, o artístico a um passo do intuicional.

 

Azeitão, 18 de Junho de 2007

 

(C) Copyright, João Camacho, Yôgachárya    e     Inst. Júlio Silva

“Sou irmão de dragões e companheiro de corujas.”

Súrya

Vem a propósito do nome desta revista, iniciar a nossa colaboração com alguns, breves, considerandos acerca do título – SURYA.

Surya significa sol. É um termo sânscrito, uma língua morta, muito antiga, indo-europeia. Uma das mais antigas línguas que se conhecem. É também a linguagem técnica do Yoga.

Não estranhará tal escolha como nome da revista, pois parece poder defender-se que o Yoga e pelo menos as artes marciais do Oriente asiático tiveram uma origem comum. Mas a este tema voltaremos em artigos futuros.

Surya é o fogo que aquece e ilumina, mas que também cega e queima. Dá vida e destrói. Da fusão entre o oceano e o sol surgiu a vida. Pois esta obtém a sua energia de Surya.

Surya tem dois aspectos:

a – O primeiro como Surya – é o que aquece, mas é o que queima. É o que ilumina, mas é o que cega. É o que dispensa vida, mas é o que destrói.

b – O segundo aspecto é Savitur – é o poder de dar vida. É o poder básico motivante para a auto-superação. É também o sol que se pode olhar, ao nascente e ao poente. É a este poder inspirador da auto-superação que o Gayatri Mantra se dirige:

OM BHUR BHUVA SVAHA

OM TAT SAVITURA VARENYAM

BHARGO DEVASYA DHIMAHI

DHYO YO NAH PRACHODAYATO

Mantra que numa das traduções possíveis, entre muitas propostas por vários autores, significará: «Amável luz de Savitur, o nosso voto é ter-te em nós, como guia das nossas acções e pensamentos.»
 

Surya é referido variadas vezes nos Upanishada. Este termo tem como raiz sad, sentar-se. Significa sentar-se aos pés do Mestre, sentar-se perto do Mestre, pois assim era transmitido o conhecimento

Os Upanishada são estudos resultantes de transmissão oral dos mestres aos discípulos, ao longo de milénios, e que foram passados a escrito, os mais antigos em 800 a. C. Existem cerca de 112 Upanishada. No seu conteúdo incluem grande parte dos ensinamentos filosóficos do hinduísmo. Utilizam uma linguagem poética. Os mais antigos são o Bhihad-Aranyaka e o Chandogya.

No BHIHAD-ARANYAKA UPANISHADA aparecem, entre outras, as seguintes referências:

Surya é a luz do homem. «É com a luz de Surya que o homem descansa, se levanta, faz o seu trabalho e regressa.»

4. 3-4

«Considero Surya (…) como o dirigente da luz, a origem de todos os seres na Terra.»

2.1. 1-20

No ISA UPANISHADA aparecem as seguintes referências:

«Ó Surya dador de vida, produto do Senhor da Criação, profeta solitário dos céus! Espalha a tua luz e retira o esplendor que cega, para que possa ver a tua forma exultante (…).»

Neste texto há referência ao aspecto Savitur de Surya, quando aquele que apela diz «espalha a tua luz e retira o esplendor que cega.»

No KATHA UPANISHADA aparecem, entre outras, as seguintes referências:

«O lugar de onde Savitur nascente vem e onde se volta a pôr; onde todos os deuses nascem, e para além do qual nenhum homem pode ir.»

«No espaço ele é Surya, e é o vento e o céu; no altar ele é o sacerdote, e é o soma no jarro. (…) Ele é a verdade e o poder.»

«Como Surya, que observa a Terra não é tocado pelas impurezas terrestres, assim também o Espírito que habita em todas as coisas não é tocado pelos sofrimentos externos.»

«Lá não brilha Surya, nem Chandra, nem as estrelas; os relâmpagos, lá, não brilham, e muito menos o fogo terrestre.»

«Por medo dele arde o fogo, e por medo dele brilha Surya. Por medo dele seguem as nuvens e os ventos, e a própria morte, o seu caminho».

No PRASNA UPANISHADA aparecem, entre outras, as seguintes referências:

«Surya é vida e Chandra é matéria. Tudo aquilo que tem forma, sólida ou subtil, é matéria: por conseguinte, forma é matéria.

Quando Savitura nascente da manhã entra nos céus a Oriente, banha na sua luz toda a vida que há no Oriente, e depois o Sul, e o Ocidente, e o Norte, e todo o céu é iluminado por aquela luz que dá vida a todas as vidas.»

« Surya ergue-se em dourado fulgor! Surya de mil raios mantendo-se fiel numa centena de regiões; o deus omnisciente, o alvo de todas as preces; a luz e fogo supremos, a vida infinita de todos os seres.»

«Mas todo aquele que, na sua procura interior, seguir o caminho do Norte com firmeza, pureza, fé e sabedoria, alcança as regiões de Surya.

«Mas de todos aqueles em quem não há malícia, mentira ou má-fé, que vivem em firmeza, pureza e verdade, desses são as fulgurantes regiões de Surya

«Vida é o fogo que arde, é Surya que dá luz.»

«Como quando, antes de cair a escuridão, os raios de Savitura poente parecem todos tornar-se um só no seu círculo de luz, embora à hora de Savitura nascente todos se voltem a espalhar, assim também todos os poderes dos sentidos se tornam um no superior poder da mente.»

«Mas se, com os três sons do eterno OM, ele apoiar a sua mente em meditação no Ser Supremo, então irá até às regiões da luz de Surya

No SVETASVATARA UPANISHADA aparecem, entre outras, as seguintes referências:

«Eu canto os hinos dos velhos tempos com adoração: possam os meus hinos pessoais seguir o caminho de Surya

«Há uma região para lá da escuridão onde não existe dia nem noite, nem o que é ou o que não é. Só lá está Shiva, o deus do amor. É a região do glorioso esplendor de deus, de quem veio a luz de Surya e de quem, no princípio veio a sabedoria dos antigos.»

No MAITRI UPANISHADA aparecem, entre outras, as seguintes referências:

«Aquele que está em Surya, e no fogo, e no coração do homem é único. Todo aquele que sabe isto é uno com o único.»

6.17

«Glória seja dada a Aditya, o deus de Surya, que habita no céu e que se lembra deste mundo. Dá este mundo àquele que te adora.»

6.35

No TAITTIRIYA UPANISHADA aparecem, entre outras, as seguintes referências:

«Eu sou o alimento que come o comedor de alimento.

«Eu ultrapassei o universo, e a luz de Surya é a minha luz.»

3.10.6

As referências supramencionadas não são exaustivas, nem pretendem sê-lo, mas permitem-nos aferir da importância de Surya, na tradição hindu.

Como o tema deste artigo é SURYA, cabe tecer mais alguns comentários sobre umas das práticas de ásana mais antigas do Yoga – o Surya Namaskara. Ásana é a técnica física do Yoga. Ásana são as posições psicofísicas.

Não iremos descrever toda a sequência de execução, não só porque já existem várias obras sobre Yoga que o fazem, como também a execução do ásana deve aprender-se com um Mestre de Yoga e não por um artigo. Assim transcrevemos parte do texto, não publicado, duma conferência nossa, Yoganidra. Técnica de Relaxação, que proferimos em 1997:

 

SURYA NAMASKARA

Esta prática é um antigo vestígio da forma como o Yoga era praticado. A sua prática fazia-se de modo continuado, sem paragens estanques entre cada um dos ásana. Ficam os desenhos da sequência em que deve ser exercitado.

Cumpre tecer ainda alguns comentários sobre o Surya Namaskara, no sentido de melhor se compreender o seu fundamento e simbolismo, de acordo com os preceitos do Tantra/Sámkhya:

 

Púrusha – É a causa não causada. É a origem de tudo. É o não manifestado. É o momento de MáhaPrálaya – a grande noite da dissolução cósmica. Tu-do é imobilidade. A própria posição induz à estabilidade. O Universo como o conhecemos ainda não foi criado.
Ocorre o início de tudo. Damaru o tambor de Shiva vibrou. A inspiração é a vibração que dá origem ao ritmo da alternância: união/oposição; prá-na/apana; trabalho/repouso. A causa causada manifesta-se. Shaktí move-se. O Universo expande-se, durante algum tempo, definindo um espaço.
Shaktí manifesta-se nas formas conscientes e nas menos conscientes. O prána expande-se em todas as direcções. Surge a matéria e o ritmo. O espaço e o tempo existem. Tudo é possível. Todos os caminhos estão abertos. Tudo é provável, mas é preciso escolher.
Da independência e da capacidade de agir passou ao declínio. Procura os limites das formas menos conscientes. Estabelece a ligação entre o que há em cima e o que há em baixo. Está prestes a alcançar os limites, a partir dos quais não pode expandir mais. Está prestes a alcançar o limite.
Continua a explorar os limites do espaço e do tempo que pode alcançar.
As mãos estão prisioneiras. Atingiu o estado de menor cons-ciência. A ligação à terra reforça-se. É uma passagem entre dois estados. Situa-se entre a extensão e a contracção. Simbolicamente poder-se-ia dizer que o Sol desceu do céu.
Esta fase simboliza a terra no seu aspecto passivo. A sombra invade a terra. O nível de consciência é mínimo. É o abandono do corpo sobre a terra. É o abandono da consciência. É a noite e a passividade.

O mundo subterrâneo. A serpente que vive nas entranhas do mundo – Kundaliní. As entranhas da terra detêm os segredos dos antigos. A ser-pente é um arquétipo de vida. É um símbolo do paradoxo, pois simboliza simultaneamente: a) – ignorância/ausência de consciência; b) – ciência e saber antigo, que o homem perdeu, que a Shaktí perdeu no alicerce. Contém a ideia do potencial da vida. A terra dá forma a tudo, dá vida a tudo o que é inerte. E possibilita o retorno.
Dá-se a renascença. É a passagem entre dois estados: ausência de consciência/início da consciência. Simboliza o poder criativo, feminino. Simboliza também o triângulo dos granthi.
O retorno, a ascensão. O progresso após o declínio representa a intervenção da vontade. Uma vontade sistemática e disciplinada.
No retorno ocorre o início da extensão vertical.
A proximidade do retorno à unidade. A união com aquilo que é único está próxima.
O fim dos tempos está próximo. O início de uma nova noite cósmica – MáhaPrálaya, aproxima-se..
A dualidade cessou. Shiva e Shaktí estão unos. É o princípio e o fim de tudo.
E damos por terminada, por agora, esta matéria.

JOÃO CAMACHO

 Yogachárya Docente formado pela Uni-Yoga – União Nacional de Yoga de Portugal

1º Dan de Judo – Associação de Judo Tradicional de Portugal

(C)Copyright, João Camacho, 1998

Shiva e Shaktí (2) – O Tantrismo

Na perspectiva tântrica a realidade última, não manifestada, irredutível e imutável, chama-se Shiva-Shakti – a causa incausada. É o átomo de energia original da física moderna.

Mas a dado momento iniciou-se a vibração, nada[1]. A causa da manifestação universal foi Shaktí, natureza criadora, a causa causada. O movimento, a expansão, a mutação, a diversidade, a mente e a matéria e em consequência as limitações da consciência foram produzidos por Shaktí, ou seja o big-bang da física moderna [2].

Para o tantrismo o Universo resulta destes princípios contraditórios mas complementares, feminino/masculino; causa não manifestada/causa da manifestação universal; positivo/negativo. Para o tantrismo o mundo fenoménico é real.

Shaktí ao manifestar-se afasta-se da causa incausada. É o afastamento dos astros depois do big-bang da física.

Shaktí é o poder. É ela que, através da sua práxis transformadora, delimita o espaço e o tempo e todas as formas em mutação de apresentação da energia primordial. É ela que no seu devir perde parte da consciência do uno, do imutável, do perene e manifesta-se por várias formas, em vários graus de consciência, desde os mais subtis aos mais grosseiros. Certas coisas são mais conscientes do que outras, mas a inconsciência nunca é absoluta.

Shaktí é o poder que se manifesta sob a forma de Universo, é a matriz cósmica, a Mãe universal, a energia primordial em devir, a origem de tudo o que foi causado.

E longe da mutação e instabilidade não totalmente consciente de Shaktí, encontra-se o princípio não manifestado, imutável – Shiva

Este princípio imutável, indiferenciado, designa-se também por Mahabindu, ou Nirguna Brahman, ou Paramshiva, ou, como acima o referimos, Shiva-Shakti.

Também no homem se encontra esta dualidade, entre o mental e o material. Entre o poder que se manifesta como actividade corporal e mental e uma supraconsciência desconhecida do homem comum.

Antes do big-bang, Shaktí repousa em potência em Shiva, unidos e indistintos. Quando Shaktí na forma de prakrutí cria o mental, a energia, os sentidos, a matéria sensível e chega ao último dos tattva, a terra, a matéria sólida, a sua consciência adormece, ficando latente.

É por isso que Shaktí é conhecida no plano individual como Kundaliní Shaktí, a serpente ígnea, adormecida e enrolada sobre si própria, à volta do liñgam, três vezes e meia, na base da coluna vertebral.

Ao nível cósmico é Mahá kundaliní.

Kundaliní adormecida representa a prakrutí no fim do estado involutivo.

Uma vez acordada ascenderá, como fogo, até ao sahásrara chakra, unindo-se a este, cessando a dualidade, adquirindo a consciência plena.

Na sua ascensão, o estado de obscurecimento da consciência em que Shaktí se encontra, vai-se dissipando. E vai despertando os chakra, num movimento inverso ao movimento criador. Por onde vai passando vai despertando e dinamizando os chakra. Ao chegar ao sahásrara atinge-se a meta do nossa arte.

Se o movimento ascendente se fizer com as nádí desobstruídas, os granthi, nós, estarão abertos num só sentido, não deixando Kundaliní descer de novo ao seu estado de inconsciência.

Localizam-se os granthi no múládhára chakra, no anáhata chakra e no Ajña chakra.

Tudo é reflexo da existência de Shiva, do princípio imutável. Não só aquilo que no homem permanece igual a si mesmo – o púrusha – como também o real fenoménico, em permanente mutação. Este não é entendido pelo tantrismo como uma ilusão, porque resulta da energia criadora de Shaktí. Nesta cosmogonia não há lugar ao conceito de Deus, nem de criação do mundo. Sendo Shiva imutável, é igual a si próprio, não cria, nem é criado. Nada faz, limitando-se apenas a ser. A sua manifestação ocorre por via da acção de Shaktí, a sua esposa, por extensão energia[3].

Acontece que Shaktí não é ilusória, é real, é a causa manifestada. Assim máyá, o real fenoménico, não deve ser entendido como ilusão, mas sim como a percepção do movimento e da mudança. Contudo, máyá, não deixa de produzir, no ser humano, a ignorância, avidyá. Pois este convence-se não existir nada mais do que a dualidade que observa, permanecendo assim em sofrimento. E a ignorância não lhe permite ver o que está para além. Não lhe permite ver a substância, a unidade, a imutabilidade e infinidade do Ser. A ignorância é assim a mãe de todos os sofrimentos do ser humano. Em qualquer dos casos o tantrismo não nega o real fenoménico (drishya – aquilo que pode ser conhecido), como o Vêdánta o faz. Apenas o encara como a causa causada.

E tudo o que acontece tem que estar contido na causa que lhe é anterior, pois coisa alguma pode surgir do nada.

A consciência permanece em tudo e em todo o lado, de tal modo que um dos textos tântricos antigos, o Visvasara Tantra, citado por Van Lysebeth, afirma que tudo o que está aqui, está em toda a parte. O que não está aqui, não está em parte nenhuma[4].

Shaktí é o poder que preside à organização do mundo fenoménico. No seu devir, na sua práxis transformadora até ao MaháPralaya, ou seja a grande dissolução, a grande noite cósmica, Shaktí retorna de novo a Shiva, passando os dois princípios, o imutável e o movimento, a causa incausada e a causa causada, a serem de novo um só, no que respeita á realidade absoluta, realizando a unidade. Após o que novo ciclo se iniciará. No âmbito humano a morte será o processo inverso ao do nascimento.

A cosmogonia tântrica não é religiosa, nem mística, nem dogmática. Apenas especulativa. Como se demonstrou não se socorre dos conceitos de divindade ou de criação do mundo.

O tantrismo tem 36 tattva, dos quais 24, como já acima o referimos, são comuns ao Sámkhya. Íshvarakhrushna, codificador do Sámkhya clássico, afirmou que o Sámkhya, quando ampliado, revela o Tantra em grande extensão[5].

Estrutura-se do seguinte modo:

 

Primeiro os dois grandes princípios, origem de tudo o que existe.

  1. SHIVA e 2. SHAKTÍ.

O motor imóvel do Universo.

  1. SADASHIVA

É a energia volitiva (ICCHÁ).

  1. ÍSHVARA

A seguinte manifestação, a energia do conhecimento (GÑÁNA), a vibração.

  1. SUDDHA VIDYÁ.

Após o conhecimento, a surge a energia da acção (KRIYÁ).

6 – MAYÁSHAKTÍ

Depois Shaktí manifesta-se na forma de energia da dualidade, dando origem aos tattva físicos.

Por sua vez este tattva, Mahashaktí, contém em si três funções distintas:

  1. a) – Srsti, a emanação;
  2. b)  – Sthiti, a evolução;
  3. c)  – Pralaya (Samhára), a dissolução ou reabsorção.

Pelo que surgem os cinco KAÑCHUKA (envoltórios):

  1. KALÁ

São os limites da infinita força de Shiva.

  1. VIDYÁ

São os limites da força do conhecimento;

  1. RÁGA

São os limites da força do desejo, o poder da selecção.

  1. KÁLA

São os limites da força do tempo.

  1. NIYATI

São os limites da força de causa-efeito (KARMA). E Shaktí continuará a sua saga transformadora, cada vez mais longe do princípio consciente, agora através dos tattva já conhecidos quando expusemos o Sámkhya. É nesta fase do seu percurso descendente que se manifestam o

PÚRUSHA e a PRAKRUTÍ;

em seguida

BUDDHI; AHAMKÁRA; MANÁS;

depois os

JÑANAINDRIYA;

os

KARMAINDRIYA;

os

TANMATRA;

e finalmente os

MAHABHÚTA.

 

Porém, a motivação do adepto tântrico não é a estéril discussão teórica. Sabe que só com a prática poderá conseguir aquilo que quer: a expansão da consciência até à percepção da realidade última. O que conseguirá no estado de samádhi. Só possível com o despertar da Kundaliní [6].

 

 

(C) Copyright, João Camacho, Yôgachárya

 

[1] Como veremos à frente nada é o som, neste caso a vibração primordial.

[2]  Cfr. O Tao da Física; nesta obra o Dr. Fritjof Capra defende que uma consistente visão do mundo começa a emergir da física moderna, em harmonia com a antiga sabedoria oriental.

[3] Shiva sem Shaktí é Shava (cadáver).

[4] Van Lysebeth, Tantra, el culto de lo femenino.

[5] Santos, ob. cit., pg. 85.

[6] Muito mais haveria a dizer sobre este sistema filosófico. Contudo esse não é o tema do nosso curso. Aconselhamos, assim, autores como Daniélou; DeRose; Eliade; Feuerstein; Mokerjee; Mokerjee & Khanna; Riviére; Sarma; Shivánanda; Van Lysebeth; Woodrofe.

Shiva e Shaktí (1) – O Tantrismo

 João Camacho, Yôgachárya

                        Tantra é uma filosofia matriarcal, sensorial e desrepressora.

É o nome dado aos ensinamentos antigos, de transmissão oral (parampará), do período pré-clássico da Índia, época proto-histórico, com mais de 5 000 anos, pois no dizer de Mokerjee e Khann[1] Tantric ritual-simbols are found in Harappan Culture (Indus Valley) Civilization, c. 3000 BC) in the form of Yogic postures, and in the Mother and the fertility cult.

A Índia era habitada, naquela época, proto-histórica, pelo povo drávida, cuja sociedade e cultura, de alto nível, eram matriarcais, sensoriais e desrepressoras, ou seja, era uma civilização tantrika.

O tantrismo era um gupta vídya[2] – conhecimento secreto.

Nesta sociedade matriarcal la propriété, la maison, les terres, les serviteurs appartiennent aux femmes e o homem não passa de um fécondateur, un errant qui s`intéresse aux arts, à la guerre, au jeu, ou bien se consacre à la vie intellectuelle ou spirituelle.[3]

                           As mulheres eram proprietárias dos meios de produção, situação comum a muitas sociedades primitivas urbanas e agrícolas. A importância económica preponderante da mulher, a descendência matrilinear, ou seja, a linha de descendência feita por referencia à mãe, leva a que a sacralidade feminina passe a primeiro plano.

A fertilidade da terra é solidária da fecundidade feminina. As mulheres são responsáveis pela abundância das colheitas, pois só elas é que conhecem o mistério da criação. É um mistério mítico e religioso, porque governa a origem da vida, da alimentação e da morte. A Terra Mãe reproduz-se por partenogénese. A mulher, qualquer das mulheres, comunga desta capacidade e reproduz-se, dá vida a outro ser também por partenogénese. Pelo menos assim o pensavam.

A sacralidade feminina, já conhecida no período paleolítico, com a agricultura, aumenta o seu poder, tornando-se dominante. A sacralidade feminina conduz

 

à sacralidade da sexualidade e conduz à orgia ritual. A mulher, a sexualidade, os ritmos lunares, o mistério da vegetação, da morte e renascimento cíclico, sazonal, com uma espantosa multiplicação pós-morte, estão interligados entre si num simbolismo e estrutura antropocósmica. E parece que o que causou a crescente sacralidade da mulher não terá sido propriamente o fenómeno da agricultura, mas o mistério do nascimento ® morte ® renascimento, identificado no ritmo da vegetação.[4]

 

Neste povo, que vivia no meio cultural e mítico descrito, surgiu o Tantra, como filosofia de vida, de comportamento, que é.

O tantrismo, sendo assim uma filosofia matriarcal, logo sensorial, desenvolveu técnicas relacionadas com o respirar, comer, excretar, dormir, ter mais saúde, mais beleza, mais juventude, mais longevidade, mais prazer e melhor sexualidade[5].

Alguns autores equivocadamente dizem que o Tantra só terá surgido no séc. VI, outros no séc. VIII, porque só nesta época é que surgiram as Escrituras sobre Tantra. Mas, na verdade, é muito mais antigo, e está em estreita associação com o proto-Yôga (….). Na verdade, os mestres tântricos acentuam que, não obstante suas doutrinas sejam recentes, elas não são criações totalmente novas, mas apenas reinterpretações da sabedoria sagrada arcaica[6].

Assim, estes textos, recentes, são os Tantras.

o Tantra é a mais antiga, rica, poética e artística tradição cultural da Índia.

Hay um tantrismo popular (….) pré-vêdico, extremamente antiguo y que se concentra en torno del culto de las Diosas Madres, las que se hallan en todas as partes.[7]

 

Porém a partir do séc. VI foi uma moda na Índia, que influenciou a sociedade, a arte, a filosofia, os costumes, a religião e a ética de forma profunda.

Os Tantra, costumam ter uma divisão quadrupla:

 

Jñanapada a gnose; a doutrina;
Yôgapada o ensino sobre a prática de Yôga;
Kriyápada  actividades rituais
Charyapada  ensinamentos sobre comportamento; regras de vida.

 

Os Tantra são escritos sob a forma de diálogos entre Shiva e a sua esposa Shaktí. Quando, nestas conversas Shiva ensina a Shaktí, a escritura tem o nome de ágama. Quando o ensinamento é transmitido pela Shaktí, que assume o nome de Bhairaví, sendo o discípulo Shiva, então têm o nome de nigama.

Os ágama são considerados ainda mais antigos que os Vêda.

Os Tantra são mais de 200 livros, com um milhão e meio de shloka, que são estrofes com quatro versos de oito sílabas. Os mais conhecidos textos são os Mahanirvanatantra, Kulanarva Tantra, Tantrakaumadí, Shaktísangana, Rudrayámala, Káliká, Tantrasattva, Syama Rahashya, Mantra Mahôdadhi, Sharadatika e Satchakranirupana.

Existem três linhas de tantra e sete escolas principais. A nossa linha de Yôga baseia-se nas raízes dakshinacharatántrika, linha branca, mão direita, a mais antiga. Não utiliza fumo, drogas, álcool, carnes e recomenda contenção de orgasmo. As outras linhas são a negra, ou de mão esquerda, própria da Idade Média, e a cinzenta. As sete escolas são:

 

1 – Dakshinacharatantrika (tantrismo branco);

2 – Vamacharatântrika (tantrismo negro);

3 – Vêdacharatântrika;

4 – Vhaisnavacharatantrika;

5 – Shaivacharatantrika;

6 – Siddhantacharatantrika;

7 – Kaulachara tantrika (tantrismo cinzento).

 

É uma filosofia que nega e condena o sistema de organização social por castas, predominante na Índia durante milénios. É uma filosofia de liberdade. Por isso foi condenada e perseguida pelo opressor ariano, após este ter invadido e escravizado o povo drávida.

A palavra tantra em si tem vários significados:

 

  1. a) Desde logo significa aquilo que é regido por uma regra geral, mas também é a maneira correcta de fazer qualquer coisa. Poderá significar ainda autoridade, prosperidade, riqueza, encordoamento (de um instrumento musical).

 

  1. b) – É aquilo que esparge o conhecimento.

 

  1. c) – É o conhecimento relativo a tattwa (verdade) e mantra (ciência do som e ultra-som).

 

  1. d)Tantra também significa tecer, tecido, trama ou teia do tecido, pois para o tantra o Universo é um tecido onde tudo imbrica, tudo se interrelaciona, tudo actua sobre tudo; mas ainda continuidade, sucessão, descendência, ou processo contínuo.

 

  1. e) – Significa também sistema, teoria, doutrina, obra científica, secção de uma obra. Também é a designação de qualquer doutrina ou obra que se inspire nesta filosofia.

 

  1. f) – Tantra resulta de tantri, explicar, expor, pelo que pode também designar um tratado sobre um determinado tema, mesmo que este nada tenha que ver com o

 

  1. g) – Tantra também designa toda a doutrina não vêdica.

 

  1. h) – Tantra resulta ainda do radical tan (estender, esticar) e do sufixo tra (instrumentalidade), pelo que temos tantra como instrumento de expansão da consciência a níveis supraconscientes.

 

[1] Mokerjee e Khanna The Tantric Way. Art. Science. Ritual, pg. 10.

[2] (….) hay en el Tantrismo una importante traditión oral, muy difícil de conocer porque tiene un aspecto esotérico y secreto; se llama la tradición de boca a oreja (vaktrât vaktrântaram), la doctrina secreta (guptavidya), misteriosa (âmnâya), in Jean Riviére, El Yôga Tântrico, pg. 34.

[3] Alain Daniélou, Shiva et Dionysos,  pg. 265.

[4] Ashtánga Anna – Retrospectiva histórica, Conferência do autor para obtenção do grau de Docente em Yôga, proferida na Uni-Yôga – União Nacional de Yôga de Portugal em 11 de Maio de 1996. Trabalho não publicado.

[5] DeRose, Yôga Mitos e Verdades, citado por Alexandre Ramos, Exercício físico e estados alterados de consciência – o exemplo do Yôga e das artes marciais, Junho de 1997, Lisboa, trabalho não publicado, realizado para a cadeira de Psicologia do Exercício e Saúde, no Mestrado Europeu em Exercício e Saúde, promovido e organizado pela Faculdade de Motricidade Humana.

[6] Feuerstein, Manual de Yôga, pg. 92. Também neste sentido, mas situando as origens do Tantra num passado ainda mais remoto do que os 5 000 anos que indicámos, Van Lysebeth situa-o à 9 000 anos, dizendo acerca de Çatal Hüyük, que era una verdadera ciudad de 10 000 de habitantes, de 9 000 mil años de antiguedad, la que en 1958 exhumó en Anatolia el arqueólogo inglês James Mellaart. (….) Era tántrica Çatal Hüyük? (….) los grandes temas del tantra, como el Culto de la Femineidad, están presentes en ella. (….) Sin embargo, incluso em ausencia de ritos sexuales, todo en Çatal Hüyük es puro tantra. in Tantra, el culto de lo Femenino, pg. 42 e 43. Sir Mortimer Wheeler, O Vale do Indo, acerca da civilização do Indo, descreve que as estatuetas de deusas-mães estão cobertas até à extravagância de pesadas jóias, embora (….) usem (….) só umas sainhas reduzidas (….), pg. 43 e explica, ainda, que nesta civilização a mãe ou deusa–mãe, símbolo da fertilidade, gozava de uma certa primazia, pg. 49.

[7] Jean Riviére, Ritual de Magia Tântrica Hindu (Yantra Chintamani), pg. 11.

 

Copyright, João Camacho.

Santôsha e Tapas

Cultivar o contentamento e o aprimoramento do carácter.

 Introdução

 

Na base de todas as linhagens de Yôga estão os preceitos éticos, que se encontram expostos nos Yôga Sútra de Pátañjali. São os yama e os niyáma.

Os yama são o mahá vatra, ou seja, o grande voto universal que, como ensina Pátañjali, no cap. II – 31, não estão limitados por casta, lugar, tempo, nem circunstâncias.

                        Os yama e os niyama consistem nos seguintes preceitos:

 

Yama

Proscrições éticas´

Estes preceitos são as obrigações do ser humanos enquanto ser social. São as suas obrigações para com a sociedade.

I. Ahimsá Não agressão
Ii. Satya A verdade
III – Astêya Não roubar
Iv – Brahmacharya Não dissipação da sexualidade
V. Aparigraha Não-possessividade
Niyama

Prescrições éticas

Estes preceitos são as obrigações de cada ser humano para consigo próprio

Vi. Shaucha A limpeza
Vii. Santôsha O contentamento
Viii. Tapas A auto-superação
IX. Swádhyáya O auto-estudo
X. Íshwara Pranidhána A auto-entrega.

 

 

Iremos abordar, neste artigo, apenas dois dos preceitos: santôsha e tapas.

 

Parte I

Santôsha

Cultivar o contentamento

II – 42

Santôshád anuttamah lábhah

A observância do contentamento constante conduz à superlativa felicidade.

 

Contentamento é a atitude psicológica de estar satisfeito com aquilo que se tem. O contentamento e o seu contrário, o descontentamento são independentes das circunstâncias que os geram. É definido no Mahábharatá (XII – 21.2) como «o mais alto céu»[1].

O yôgi deve cultivar a capacidade de extrair contentamento de todas as situações a que esteja submetido.

O discípulo deve cultivar a arte de estar contente com o Mestre que escolheu.

 

Sháriraka santôsha

Contentamento físico é estar contente com aquilo que tem. É estar contente com o desempenho físico nas técnicas da metodologia que ensinamos. É ser auto-suficiente e não esperar nada de ninguém. É estar contente com aquilo que possui. É estar contente com a sequência de ásana que é capaz de executar.

É, todavia, também, estar contente com a capacidade de agir e fazer do contentamento uma ferramenta para a auto-superação, para ir mais longe.

 

Vachika santôsha

É essencialmente a prática de mauna evitando as discussões estéreis e inúteis.

 

Kama santôsha

Quando o yôgin deixa de ser arrastado pelas vagas de emoções que assolam o ser humano está em santôsha, alheio à alternância e às circunstâncias emocionais exteriores ou interiores.

 

Manásika santôsha

O contentamento que se procura não é o dos desejos satisfeitos, mas sim o do contentamento consigo próprio. Oriundo do desapego dos frutos da acção.

Está em santôsha aquele que mantém o seu ritmo e a sua alegria, alheio às circunstâncias, pois sempre encontra motivo para se impulsionar e para agir, com alegria, para a auto-superação e para a expansão da Nossa Cultura. É aquele que consegue espontânea e necessariamente colocar-se em atitude de alegria interior seja num ambiente de guerra ou de paz, faça chuva ou faça sol. De tal modo que o yôgi deve ser um dispersor de alegria. A sua alegria deve incluir as tristezas alheias.

Aquele que progride mantém-se cada vez mais em santôsha.

 

Disposição moderadora[2]:

A observância de santôsha não deve induzir à acomodação daqueles que usam o pretexto do contentamento para não se aperfeiçoar.

Parte II

Tapas

disciplina, austeridade

 

II – 43


A disciplina própria produz a destruição das impurezas, o que conduz ao aperfeiçoamento da sensibilidade corporal e dos sentidos físicos.

Káyêndriya siddhir ashuddhi kshayát tápasah

 

Tapas provém da raiz tap que significa calor. O calor mágico descrito nos shástra que faz despertar a kundaliní, transcender a condição humana e que produz siddhi. Designa todas as práticas, por vezes ascéticas, que produzam calor. A produção de tal energia calórica, o seu armazenamento e a sua utilização (….), é o objectivo das mais antigas formas da prática de Yôga[3].

Manter uma prática diária do método que preconizamos é uma manifestação desta norma.

Manter uma alimentação adequada à nossa filosofia também.

O yôgin deve manter o constante esforço sobre si mesmo, afim de se superar em todos os momentos.

Em todas as circunstâncias e todos os dias o yôgin deve fazer melhor.

Cultivar a humildade e a cortesia é uma forma de demonstração de tapas.

 

Sháriraka Tapas

As austeridades físicas podem ser, de acordo com a sua qualidade, tamas, rajas, sattva.

Tapas pode ser jejuar, manter-se entre quatro fogueiras sob um sol tórrido ou secar lençóis encharcados em água gelada cimo de uma montanha no meio da neve – tamas; ou praticar môuna por longo tempo – rajas; ou pode ser o estudo dos shástra ou a prática regular e disciplinada de meditação – sattva.

Tapas purifica o corpo e fortalece-o, pois tapas também é praticar com disciplina as técnicas físicas da nossa arte.

Manter uma pratica diária do nosso método é uma manifestação desta norma. Manter uma alimentação adequada também. O yôgin deve manter o constante esforço sobre si mesmo, afim de se superar em todos os momentos.

Em todas as circunstâncias e em todos os dias o yôgi deve fazer melhor, aprimorando-se.

Cultivar a humildade é uma forma de demonstração de tapas.

Mas também é verdade que o tapas físico não deve conduzir o sádhaka aos exageros faquiristas, que pouco têm a ver com a atitude equilibrada e ponderada de um yôgi. E tanto assim é que, no Bhagavad-Gitá, explica Krshna a Arjuna:

 

XVII – 5,6.

Os homens que passam por terríveis austeridades,

(….)

unidos à hipocrisia e ao egoísmo,

apaixonados, desejosos e violentos,

 

E inconscientes, que torturam no seu corpo

esse agregado de elementos que o enforma,

também dentro do corpo a mim torturam,

tomando duras decisões demoníacas. [4]

 

Mais recentemente, Vishnudêvánanda também chamou a atenção para este facto, tentando corrigir uma atitude fanática dos seguidores das linhas espiritualistas de Yôga. Assim este mestre, numa conhecida obra sua, do séc. XX, admoestava os seus seguidores do seguinte modo[5]:

 

Também é importante contar com uma mente sã. Posto que o corpo e a mente estão intimamente concertados, é importante ter um estado mental alegre a todo o momento. A alegria e a saúde estão sempre de mão dada. O aspirante inteligente mantém o seu corpo são põe meio de exercício regular, posições de Yôga, controlo da respiração, uma dieta moderada, descanso e muito ar fresco. Há que evitar as drogas e os medicamentos tanto quanto seja possível, e, quando seja necessário, recorrer a curas naturais.

Há muitos aspirantes que se recusam a tomar medicamentos ainda que se encontrem gravemente doentes. Estas pessoas torturam o seu corpo desnecessariamente; permitem que a doença se espalhe e assim arruínam a sua saúde. Rapidamente se verão fisicamente incapacitados para continuar a sua prática. É muito melhor medicar-se durante um par de dias e retornar rapidamente à prática do que permitir que a doença alcance estados mais avançados, causando grandes dificuldades e atrasos no regresso a uma prática regular. Merece a pena ressaltar que a cura mais efectiva para muitos transtornos é o jejum, durante o qual o sistema digestivo descansa e se eliminam os venenos do corpo.

 

Vachika tapas

Conter o impulso de expressar comentários maldosos sobre outrem. O Bhagavad-Gitá ensina:

 

XVII

Palavras que não causam aflição,

verdadeiras, amigas, salutares,

recitação e práticas dos Vêdas,

eis a chamada ascese da linguagem.

 

 

Kama tapas

O Bhagavad-Gitá ensina que os três caminhos que conduzem o homem à angústia são o desejo, a ira e a avidez:

Quando um homem medita nos objectos

dos sentidos, desperta o seu apego

e, do apego, nasce, então, desejo

e, do desejo, é que brota a ira;

 

E a angústia causada pelo desejo, a ira e a avidez, não é própria do homem sábio, pois aquela conduz o homem à prostração.

O sádhaka deverá então praticar a austeridade de evitar o desejo, a ira e a avidez, pois estas emoções perturbam-lhe o psiquismo, afastando-o do samádhi.

 

Manásika tapas

A austeridade de manter lealdade ao seu Mestre constitui a mais nobre expressão de tapas.[6]

Deve também cultivar a disciplina de não misturar a nossa tradição ancestral com outros sistemas ou artes, assim como a de não adoptar várias linhas de Yôga em simultâneo.

Tapas é ainda a disciplina do cumprimento das restantes regras éticas.

Tapas é também (Bhagavad-Gitá):

 

XVII

Mente serena mais benevolência,

silêncio e domínio de si próprio,

pureza de carácter, sentimentos,

eis a chamada ascese desta mente.

 

Tapas é tão importante que Vyassa, ao comentar o Yôga Sútra de Pátañjali afirma que sem tapas, nenhum homem pode atingir a perfeição do Yôga.

 

Disposição moderadora:[7]

A observância de tapas não deve induzir ao fanatismo nem à repressão e, muito menos, a qualquer tipo de mortificação.

 

(C)Copyright,  João Camacho, Yôgachárya

[1] Feuerstein, The Shambhala Guide to Yôga, pg. 43.

[2] DeRose, Yôga Sútra de Pátañjali, p. 131.

[3] Heinrich Zimmer, Mitos e Símbolos na arte e civilização indianas, pg. 124.

[4] Bhagavad Guitá

[5] Vishnu Dêvanánada, Meditación y Mantra, pp. 283.

[6] DeRose, Yôga Sútra de Pátañjali, p. 131.

[7] DeRose, Yôga Sútra de Pátañjali, p. 132.

Relação Mestre / Discípulo – A Pedagogia nas artes orientais

«Cet écrit rassemble les enseignements que j’ai reçus de mês maîtres vénérables alors que j’étais à la recherche de mon centre et d’une relation véritable avec l’Univers.»

Lucas Estrella Schultz, La sagesse du guerrier, pg. 9.

 

A abordagem que faremos deste tema será muito pessoal. Sempre enquadrada nos ensinamentos recebidos, pelo menos na forma como foram compreendidos e descodificados. Tudo o que somos e fazemos, seja nas artes do Budô ou no Yôga, devem-se muito mais à generosidade dos nossos mestres do que a nós próprios. Aos nossos mestres estamos gratos, mesmo daqueles que em tempos o caminho, que o viandante faz caminhando, nos afastou.

Quando se analisam as questões da pedagogia nas artes orientais pode fazer-se uma abordagem dita científica, ou uma abordagem feita pelo lado da tradição. A nossa opção é pelo lado da tradição.

Primeiramente abordaremos a tradição do Yôga, posteriormente a tradição do Budô.

Para aqueles que rejeitam a tradição, a existência de um Mestre é algo de indesejável. É algo de condenável. Criticam todos os que o têm e que seguem as suas orientações. Consideram que o importante é saber umas coisas de metodologia do treino desportivo, “sacar” umas técnicas aos que as conhecem e agora fazer o que lhes apetecer. Não perceberam certamente o que está em causa nas artes do Budô ou no Yôga. Não entenderam o que essas artes têm de aperfeiçoamento pessoal e desenvolvimento interno. Na tradição indiana, os shástra, ou seja, as palavras de autoridade, as escrituras do Hinduísmo, dizem que o Mestre é o pai e a mãe e o Senhor. Por isso são-lhe devidos dedicação, entrega, amor, obediência, respeito, lealdade. A tal ponto que nas artes do Oriente o conhecimento, muitas vezes, só era transmitido de pai, ou de mãe, a filho/a. Se não houvesse a relação de consanguinidade, o discípulo deveria demonstrar total dedicação ao mestre.

Em sânscrito, o Mestre é designado como guru, que significa ‘gu’ trevas, ‘ru’ dissipar. Ou seja, o Mestre é um dissipador de trevas. O seu papel é indicar ao discípulo o caminho. E este deverá o discípulo percorrê-lo. O mestre substitui o verdadeiro Mestre – o Mestre interno [1], fonte primordial do auto-aperfeiçoamento e de auto-superação. E fá-lo-á enquanto o iniciado não conseguir, só por si, entrar em comunicação consciente com este. Ora, torna-se necessário o contacto físico com o Mestre, seja continuadamente, seja de modo esporádico. A influência que o mestre deve exercer sobre o discípulo representa algo de supra-individual, diríamos transpessoal, em que a individualidade do Mestre e do discípulo apenas são um suporte. O guru ou, na tradição japonesa, o sensei, são o veículo da descida da energia, Shaktípata. Com a passagem de tal energia o discípulo consegue, em termos de evolução pessoal, o que só com grande esforço conseguiria pela prática paciente do Yôga ou das artes do Budô.  Em tal relação, a pedagogia, tal como é concebida no Ocidente, não faz sentido. Não cabe ao Mestre descobrir como ensinar o discípulo. Antes cabe ao discípulo descobrir como aprender. Para o discípulo que não souber aprender, nenhum mestre conseguirá ensiná-lo. Para aquele que souber aceitar o discipulado, sempre aprenderá ainda que o mestre nada ensine. Pois tem o siddhi da aprendizagem muito desenvolvido, a tal ponto que bastará a proximidade física do mestre para se desenvolver. Na tradição do Yôga, a relação com o Mestre, processa-se através da proximidade física na qual são realizados o Guru Sêva, o Parampará e Kripá Guru. Por isso o discípulo ao escolher um mestre, porque é o discípulo que escolhe, deve estar preparado para o seguir. Aqueles que são desajustados, imaturos, também se decepcionam, acreditando que o mestre não ensina, quando muitas vezes preciosos ensinamentos lhes estão a ser depositados nas mãos sem que o percebam.

 

Guru Sêva

 

É o serviço ao Mestre. O discípulo deve demonstrar ser dedicado ao mestre, superando logo algumas provas, como sejam tratar das coisas do mestre, prestar alguns serviços duros e vulgares, como limpar o local da prática, carregar os objectos do mestre, fazer comida, preparar as mesas para alguma festa ou comemoração que seja feita, mesmo sem que nenhuma técnica objectiva lhe seja ensinada. Se tudo aceitar sem questionar, então estará apto a passar ao estágio seguinte, onde lhe começa a ser ensinada arte. Nas artes do Budô são conhecidas muitas histórias destas. Se questionar o mestre, este irá exigir-lhe muito mais provas de dedicação. Se porventura o discípulo tudo aceitar sem questionar, passará à fase seguinte, o parampará.

 

Parampará

 

Passada a fase anterior, que em boa verdade também é Yôga, pois é uma forma de Karma Yôga, o mestre transmitirá o conhecimento da arte ao discípulo. Fá-lo-á através do parampará que “significa um depois do outro. Mas o sentido é «transmissão oral», ou seja, é a única forma pela qual o verdadeiro conhecimento pode ser passado de Mestre a discípulo, de boca a ouvido, através dos séculos e milénios.” [2] Curiosamente, alguns dos contos populares são altamente iniciáticos e são as mães que transmitem esse conhecimento através de gerações, contando as histórias, chamadas infantis, às crianças. Não sabem o que estão a transmitir, mas o conhecimento é perpetuado. Isso também é parampará. Mas aí falta-lhes a orientação de um mestre para descodificar o que está em causa. A mãe servirá sempre de grande mestre, mesmo quando ela própria não sabe descodificar o que está a ensinar. Quando a transmissão por parampará é feita sem a consciência do que está a ser ensinado, tanto por parte do emissor, como por parte do receptor, falta-lhes o que na tradição tântrica se chama de ensinamento da boca do mestre à orelha do discípulo – vâktrat vaktrântaram, pois se trata de conhecimento secreto (gupta vidyá) e misterioso (amnaya) [3]. No mesmo sentido, Eliade, pois, na tradição tantrica “a revelação se dirija a todos, a via tântrica comporta uma iniciação que só pode ser feita por um guru; daí a importância do Mestre, o único que pode transmitir, de «boca a ouvido», a doutrina secreta, esotérica [4].” Relação que é essencial na evolução do discipulo, transmitindo-lhe um quadro conceptual de orientação pessoal em relação as fenómenos que vão ocorrendo na sua transformação e ascese, tudo como explica Sannella, embora em sentido crítico, “o mestre transmite, tanto em palavras como, muitas vezes, por meio de iniciação directa, o conhecimento esotérico ou a visão que o discípulo está prestes a descobrir por si mesmo. Em outras palavras, o mestre proporciona a estrutura da interpretação com a qual, então presta serviços aos acólito, como uma luz que o guia na sua jornada psicoespiritual [5].”

 

KRIPÁ GURU

 

Tendo o discípulo passado a fase anterior, percebidas as lições que o Mestre lhe dá, os ensinamentos que lhe são transmitidos, por vezes de forma informal, quando ele menos espera, fora da sala de prática, é chegado momento de receber a iniciação, o Kripá Guru, ou seja a graça do mestre, o seu toque, a sua bênção. Kripá guru é o toque do Mestre, o toque intencional que transmite força. Nalgumas escolas também é conhecido por Shaktípata – o toque de Shaktí. É a bênção através da qual o Mestre transmite ao discípulo a energia que transforma, que transmuta. É o chintamani, a pedra filosofal. É a capacidade que o mestre tem de transmitir e de transmutar. Tal como a pedra filosofal toca e transforma o chumbo em ouro, também o mestre transforma o seu discípulo em ouro. É o toque de Midas. É a capacidade que o mestre tem de interferir e transformar o discípulo como pessoa, de interferir e alterar a sua vida o seu karma. Por vezes carregando-o.

O mestre não deve permitir o envaidecimento do discípulo. É necessário ser tolerante, bondoso, mas impor disciplina. O praticante mais adiantado, se o é, deve dsiciplinar o ego e ajudar os mais novos, sem se considerar mais do que eles. Deve manter cordialidade.

Há vários tipos de kripá que o mestre pode dedicar ao discípulo. Desde logo os mais comuns são [6]:

Adí kripá. É o toque simples, uma bênção que qualquer pessoa pode receber, como forma de receber força, paz, saúde, bem-estar, desenvolvimento interior.

Maha kripá. É uma transmissão forte, que transforma o discípulo em professor e este em Mestre. Deverá estabelecer laços de carinho e respeito entre o Mestre que concedeu e o discípulo que recebeu. Insufla o poder de preparar outros instrutores.

Tantra kripá é um toque energizante que estimula chakra e kundaliní através da libido.

Uma tradição na qual esta transmissão tenha sido interrompida perde-se para sempre. No Ocidente, todos os que peroram contra a existência de um mestre que deverá ser seguido não sabem, de facto, do que estão a falar. A esses, a pedagogia.

 

O MESTRE

 

                        É certo que no Ocidente muitas das pessoas que passaram pelas artes orientais estão fartas de certos “mestres”, verdadeiros vendilhões, que de mestres têm pouco. Uns orientais, outros ocidentais, que resolveram assumir as vestes do Mestre. Mas isso resulta do facto de, na nossa civilização, se querer tudo para ontem. O Mestre habitualmente não facilita, como já acima vimos. Exige provas de lealdade, de dedicação. E muitos, fartos de obedecer vão embora. Procuram um caminho rápido, onde lhes seja prometida iluminação instantânea num workshop, como é moda apelidar-se hoje, de fim-de-semana. E esperam sair de lá com técnicas “secretas”, com as quais passam a ser “grandes mestres”. Em Inglaterra, na segunda metade do séc. XX, com a febre dos filmes de Bruce Lee, toda a gente queria praticar Kung Fu. Então muitos donos de restaurantes chineses abriram ao lado do restaurante uma escola de “kung Fu”. E alguns milhares de britânicos pagaram preços elevados por aulas dadas por um cozinheiro. Recentemente chegou-me ao conhecimento que alguém que durante muitos anos se dedicou ao “ferro”, agora, repentinamente, faz “regressões” acompanhadas de sessões de massagem corporal. E algumas incautas já se apressam a inscrever-se para “regredirem” nas mãos de tal “mestre”. O problema do surgimento de falsos mestres é a existência de mercado para os mesmos: quanto mais místicos, espirituais, compreensivos, com roupas exóticas e maneiras afectadas se apresentarem mais sucesso têm. E se a isso tudo juntarem uma voz profunda, tratarem os que os procuram por filho e filha, derem ao seu método um nome estranho e prometerem resultados para ontem, é sucesso garantido. Um pouco mais de maturidade e de paciência daqueles que procuram e alguns falsos “mestres” não teriam tanto sucesso. Acerca das maravilhosas “meditações” que alguns desses mestres dão, é assim mesmo que os seus seguidores se expressam, dos “milagres” que fazem, dos poderes que ostentam, mais valia seguirem o grande mestre “bom senso ananda” como, à guisa de brincadeira, Mestre Van Lysebeth aconselha num dos seus livros.

A questão da necessidade, ou não, da pedagogia, afim de se discutir que tipo de pessoas queremos formar, como fazê-lo, como as motivar, como conseguir ensiná-las, não tem sentido numa arte oriental se soubermos distinguir o trigo do joio. Isto é, há que estabelecer distinções claras e não confundir o Mestre com o professor ou com o instrutor. E nesta confusão também está a origem de muitos erros. Pois a relação com o instrutor não é nem pode ser igual à relação do discípulo com o mestre.

Desde logo, instrutor é aquele que ministra sessões práticas de Yôga, ou de outra arte oriental a adeptos comuns que querem conhecer esta ou aquela arte. Já o professor é o que ensina a prática e a teoria para o domínio da técnica e da sua fundamentação. Pode inclusive ministrar seminários teóricos e pode preparar futuros instrutores. E veja-se o quão longe estamos ainda da relação entre mestre e discípulo. Já o Mestre é aquele que interfere na maneira de ser do discípulo. O praticante participa em sessões práticas da arte que escolheu. O aluno recebe aulas do professor. O discípulo assumiu uma relação de empatia e de lealdade com o Mestre. É aquele que aprende para a vida e não só para a sala de aula e aceita que o Mestre através dos seus ensinamentos interfira em sua vida privada. Pois com aquilo que o Mestre lhe ensina para a vida transforma-o, modificando-se, transmutando-se, polindo-se, revelando-se cada vez mais um diamante.

A relação entre Mestre e discípulo deve ser baseada em reciprocidade e aceitação. O Mestre admoesta o discípulo quando se torna necessário e este acata a admoestação.

 

Características do Mestre

 

Mas voltando à pedagogia, o Mestre, para o ser já passou, por sua vez, por este percurso, que conhece intensa e profundamente e sabe como transmitir a sua arte e quando deve transmitir os segredos desta. Os métodos de ensinar a sua arte não lhe são estranhos. O tipo de pessoas que se quer formar também ele sabe. Não se vai é esforçar um pouco que seja para interessar o discípulo pela aprendizagem. O discípulo é que escolhe o mestre e não o contrário. O Mestre apenas o aceita ou rejeita. O problema não é o da pedagogia, mas sim como reconhecer um Mestre. Algumas características de um Mestre são:

– Tem autoridade para com os seus discípulos. Mas reverencia o seu próprio mestre.

– É claro na sua percepção e conhecimento.

– Constante e determinado no seu estudo.

– Livre dos desejos dos frutos das suas acções.

– Não troca de linha ou de mestre.

– O Mestre verdadeiro sempre se coloca depois do seu próprio mestre, em hierarquia e em mérito, nunca considerando que já evoluiu mais que o Mestre e por isso já o pode abandonar.

– Não contesta o seu próprio Mestre, nem emite juízos críticos ou desfavoráveis a seu respeito.

– E nunca perde oportunidade de referir o nome e o mérito do seu próprio Mestre.

Os shastra também indicam quais são as características do discípulo. O Kularnava Tantra, uma obra medieval, ensina que [7]:

 

“O Guru deve desistir de tomar como discípulo (….) o discípulo de outro; (….) o que instiga aos demais; (….) o que é dado a fazer o proibido e a omitir o que se lhe recomenda; o que divulga segredos; o que está sempre empenhado em buscar falhas nos outros; o que é ingrato; traiçoeiro; desleal ao seu Mestre; (….) o que está sempre querendo exigir; (….) o que decepciona a todos; o que é orgulhoso e que se crê o melhor de todos; o insincero; (….) de raciocínio incorrecto; que gosta de brigar; rebate aos demais sem razão; o indigno de confiança; que fala mal das pessoas por trás; o que fala como um brahmane conquanto não tenha esse conhecimento; plagiador; (…) condenado por todos; aquele que é duro; traidor ao seu Mestre; que se engana a si mesmo; (….) que incita a coisas falsas e malvadas; dado aos ciúmes; intoxicação (por drogas); egoísmo; de mente ciumenta, dura e colérica; instável; (….) criador de confusão; (….) sem (….) paz nem conduta correcta; que faz zombaria das palavras do seu Mestre; amaldiçoado por um guru. Estes são os que deve rejeitar.”

 

Assim as qualidades de um discípulo para que um Mestre o aceite devem ser as seguintes, ainda de acordo com o Kularnava Tantra [8]:

 

“O discípulo escolhido deve estar dotado de (….) boas qualidades. (….) Deve ser alguém digno de confiança; (….) não intoxicado (por drogas); (….) serviçal; (….) não dado a atacar os outros; (….) com aversão a ouvir louvores a si próprio, porém genial perante as críticas; (….) deve ser alguém que fale do guru; (….) sempre na proximidade ao guru; agradável ao guru; constantemente ocupado em seu serviço, com mente, palavras e corpo; que cumpre as ordens do Guru; que difunde as glórias do Guru; conhecedor da autoridade da palavra do Guru; (….) que segue as intenções do Guru; que actua como um servidor do Guru; sem orgulho de classe social, honra ou riqueza na presença do Guru; que não cobiça os bens do Guru.”

 

SAT GURU NYASA SÁDHANA

 

A relação entre Mestre e discípulo deverá ser tão intensa que deve permitir a ocorrência de nyása. Nyása  significa a identificação entre o sujeito cognoscente e o objecto cognoscível, o que implica a supressão do acto de conhecer. De modo geral significa a identificação do sádhaka com seres ou objectos, à sua escolha. Porém a prática de nyása com o Mestre leva o discípulo a evoluir mais e mais rapidamente. Mestre DeRose, o codificador mundial do Swásthya Yôga, ensina que [9]:

 

“NyásaNyása significa identificação. Consiste num exercício de origens tântricas que visa a produzir um fenómeno muito peculiar em que o praticante se identifica de tal maneira com o objecto da sua concentração que passa a possuir as características desse objecto. Terminado o nyása, as características cessam. Contudo, se o yôgin praticar sistematicamente nyása sobre um mesmo objecto, gradativamente suas qualidades vão sendo incorporadas pelo praticante. Assim, se o sádhaka pratica nyása com o seu Mestre, vai compreender melhor o ensinamento dele. Passa a incorporá-lo como seu. É possível executar nyása, não apenas com pessoas vivas ou mortas, mas também com objectos da Natureza, tais como uma flor ou uma pedra. E, ainda, com egrégoras e com seres mitológicos.”

 

O mesmo assegura Elíade, que relaciona nyása, a nível superior, com um maior grau de interiorização, e está a citar o Mahânirvânatantra, o nyása, a identificação, pode ser feita com “um simples acto de meditação”[10].

Havendo com o Mestre a relação que se tem proposto é possível conseguir-se uma prática muito intensa que se apelida de Sat Guru Nyása Sádhana. É uma prática fortíssima, que é recebida por via directa pelo discípulo, de dentro para fora. Consiste, num processo de maiêutica, dar à luz, desencadeado pela presença do Mestre. Esta prática desencadeia-se somente na presença do Sat Guru, isto é, do Mestre dos outros Mestres, da mesma linhagem. É um catalisador das energias do sádhaka[11], que passa a executar todas as técnicas do Yôga, muito melhor do que até aí e algumas que nem sequer conhecia, sem que o Sat Guru transmita qualquer ensinamento concreto. Também pode ser designada por Jada Kriyá  [12].

Esta prática é uma forma inferior de Kripá e não depende nem da gradação do ashtánga sádhana [13], nem de todas as suas variações, ou da opção de desenvolvimento horizontal ou vertical, nem em que nível desta se encontra o sádhaka. No dizer de Riviére, «basta la sencilla presencia del Guru para transformar al discípulo; la visión del maestro, unas palabras, son suficientes para despertar fuerzas latentes interiores» [14] do sádhaka. É uma prática de identificação com o Sat Guru, o mestre dos outros mestres, dentro da mesma tradição, que permitirá ao sádhaka evoluir só com a mera presença do Sat Guru, por identificação. Também Shivananda a refere, embora lhe dê outras designações. Este ilustre mestre hindu afirma que “El Gurú (….) no necessita enseñar nada. Incluso su mera presencia o compañia es elevadora, inspiradora y estimuladora del alma. Su misma compañía es autoiluminación. Un Gurú puede despertar a la kundaliní de un aspirante a través de la vista, del tacto, de la palabra o del mero Sankalpa (pensamiento).” [15] Desta citação se retira, claramente, entre outros aspectos, a confirmação de que a pedagogia não tem lugar. Em verdade, nas artes orientais o Mestre deve ensinar como e quando quiser. O discípulo é que se deve esforçar por aprender, mesmo que o Mestre nada ensine. Recordo-me sempre das palavras do nosso amigo Sensei José Patrão, ao afirmar que mesmo nas circunstâncias em que o Mestre não aja da forma mais nobre, devemos sempre lembrar-nos que do estrume também se faz um jardim lindíssimo. O que importa é que o mestre desenvolve em cada um dos seus discípulos, o modo como consegue transformá-los. Mestre Shivananda chama ao Sat Guru Nyása Sádhana de Shaktí Sanchara. Ou seja, “mediante Shakti Sanchara, la Kundaliní dispierta por la gracia del Gurú en el discípulo.”

Perante tal ligação de aprendizagem o modo de ensinar de nada interessa. Ao discípulo compete aprender, seja lá como for que o Mestre ensine. Desde que, de facto, seja um Mestre. É obvio que alguém que diz não seguir um mestre, que diz que nunca teve um Mestre, não pode ser, ele próprio Mestre. Nem aqueles que com ele aprendem as técnicas objectivas, devem vê-lo como tal, muito menos aceitar a sua interferência na sua vida, ou admitir excessos ou exageros, sob a capa de ser Mestre. Pois alguém que não tem um Mestre não o pode ser. Em tal situação devem relacionar-se apenas com um instrutor da arte, seja qual for o título que ostente ou a graduação que porte – é um instrutor não um Mestre.

Por último, e fazendo já a ponte para as artes do Budô, aqueles que mais criticam quem tem um mestre, que afirmam nunca o ter tido e de não seguirem nenhum, são os que mais sofrem de mestrofrenia, ou seja, a necessidade compulsiva de se afirmarem mestres e de serem reconhecidos, amplamente, como tal. Recusam-se a aceitar a autoridade de um mestre, mas querem agir como se a tivessem. Esta deve ser a doença das variantes desportivas das artes tradicionais.

 

As artes do Budô

 

Também no Budô a relação que se estabelece com o mestre pode ser entendida em paralelo com o que acima se expôs. Lembramo-nos que com Sensei Glyn Bannister, nosso mestre de Jûdô, as grandes lições que aprendemos foram-nos dadas fora do dôjô. Uma delas, quando decidimos participar num Estágio Internacional de Budô, em Inglaterra. O nosso mestre perguntou-nos se não me quereríamos propormo-nos a exame para 3.º dan e para o título de doshi. Respondemos-lhe que sim, desde que ele próprio considerasse ser chegado o momento. Solicitámos o syllabus e descobrimos, quando este veio, que a exigência técnica da instituição internacional em causa era bastante elevada. A ponto do nosso mestre nos ter dito ao telefone, a título de brincadeira, que se deveriam ter enganado e enviado o programa técnico para o exame para 10.º dan. Encontrámo-nos para analisarmos o programa e o meu mestre disse-nos que nos 3 meses que faltavam para o estágio nós teríamos que trabalhar muito. Perguntou-nos se ainda estaríamos dispostos? Respondemos: “Não sei Sensei. Acha que eu sou capaz?” Obtive como resposta o seu olhar desiludido. E disse-me: “Não vale a pena. Tu, no teu coração, já chumbaste este exame.” Foi uma grande lição. Uma lição fora do dôjô, sentados a beber um chá. Entendemos que tínhamos que nos atirar à tarefa com a certeza de a cumprir. Não com a atitude de quem vai tentar, mas de quem vai concretizar. E fizêmo-lo. Passamos o exame.

 

SHITEI

 

Shitei é a relação que se estabelece entre o Mestre e o discípulo nas artes do Budô. Shi significa o Mestre, tei o discípulo.

Um dos elementos fundamentais desta relação é o giri, ou seja, o dever. É a dívida que alguém tem, que está para lá da moral consciente, ou da dívida objectiva. O giri é a dedicação, a lealdade e a confiança inabalável que o discípulo (dêshi) deverá ter na escola que escolheu, na linhagem que segue, no mestre que o orienta, na via (). Tal relação está muito para além daquela que se estabelece entre o treinador, nas variantes desportivas das artes marciais japonesas, ou entre o instrutor ou o professor e o praticante. Giri é o sentido de obrigação e de dívida de honra que o discípulo tem para com o mestre [16].

Outro dos elementos determinantes do shitei é o jitoku [17], ou seja, o esforço, a reflexão e a procura pessoal, paralela ao ensinamento do mestre. Só o jitoku permite a compreensão do real sentido do que o mestre ensina, que está muito para além da mera execução técnica. Aprender desta forma permite dar vida ao que a tradição transmite.

É nas vertentes desportivas que os praticantes ficam pela mera cópia da técnica. Ao contrário do que gostam de apregoar. As vertentes desportivas das artes marciais, essas sim, não evoluem, antes involuem. Pegam na técnica objectiva, aplicam-lhe as metodologias do treino física, seleccionam-se para as provas através das pregas de gordura, como o fazia à mais de uma década um ilustre Karateka, licenciado em educação física. E depois chamam-lhe evolução e aplicam-lhe pedagogia. Determinam quais são os momentos em que deve haver picos na condição física, e devem coincidir com as datas das competições, pensa-se em modos de motivar os atletas, etc. E estamos a evoluir, dizem. Pedagogicamente falando, olhando para o que perdem das artes que praticam, mesmo só considerando as técnicas objectivas, na verdade, involuem.

Numa relação deste tipo costuma haver, paralelamente, uma linhagem externa, hoje em dia geralmente virada para o desporto, e uma linhagem interna, oculta, que não é conhecida nem referida, em cada uma das escolas do Budô. O aluno externo (soto dêshi) não é comparável com o discípulo interno – dêshi. Nestas linhagens muita vezes o discípulo é uchidêshi, ou seja, de grosso modo, um discípulo que vive com o mestre. Em todo o caso pode significar tão só o discípulo mais próximo do mestre, mas sempre por oposição ao discípulo externo.

Desde logo, aquele que chega 1.º dan não é um especialista, é verdadeiramente um principiante. Agora é que começou a caminhada.

A evolução da arte faz-se através dos níveis de Shu ha ri.

 

Shu Ha Ri

 

 

SHU

 

HA

 

RI

Para se perceber a relação entre o Mestre e o discípulo nas artes do Budô, voltamos a socorrer-nos dos conceitos Shu Ha Ri, que já foram tratados por nós numa conferência que proferimos e cujo texto se encontra publicado na Súrya online, do Centro de Artes Orientais. Reproduzimos em parte o que aí consta.

Shu ha ri são as três etapas de progressão tradicional nas artes marciais de acordo com a via de aprendizagem clássica (oshie [18]), concebidas também como caminho interno do praticante. Significa grosso modo, imitar, divergir, separar.

Através destas etapas um mestre leva o seu discípulo desta etapa até à condição de mestre.

 

SHU

 

                        Num dôjô tradicional, todos os que alcançam a graduação de dan, devem imitar os movimentos do Mestre que os ensina. Nem sequer se pode questionar, apenas imitar. A aprendizagem nesta fase implica um simples exercício de observação. E a partir dessa observação gestual, o praticante reprodu-la e assimila-a. É a assimilação da forma exterior da técnica. Esta etapa tem o nome de SHU. Esta palavra tem a sua origem em mamaru, que significa proteger, observar uma regra [19]. Na fase SHU pretende-se proteger a forma para a conservar. É a etapa onde se assimila fisicamente as bases fundamentais da arte. É a parte em que se estuda e memoriza a gestualidade da forma. A reprodução do modelo limita-se a uma reprodução física. O discípulo observa a arte do mestre, reproduzindo-a. Procura a reprodução que convém à sua própria constituição física. É o estudo pela imitação, decalcada do modelo exterior. Nesta fase o discípulo, que ainda não o é de forma confirmada ostenta o 1.º e o 2.º Dan.

 

 

SHU

 

HA

 

RI

[1] A prática implica sempre uma orientação segura, ministrada por um sensei, o que nasceu antes, palavra que também pode ser entendida como «aquele que indica a luz». Ora há sempre na relação Mestre-Discípulo uma transmissão para a luz. Contudo a relação com o Mestre possibilita que, cada um, no seu caminho, se projecte sobre si próprio descobrindo no seu interior o seu próprio mestre – o Eu. Ou seja «cada um tem em si o seu Mestre, cada um é guru de si próprio», vide p. 250, Henriques, António Renato, Yoga e consciência. 2.ª ed., Ed. Rígel, 1990: Porto Alegre (Brasil), pgs. 281. Dito de outro modo, «l’essence de tout art martial est de nous donner le moyen de voir clair en nous-même, de rester simple et sincère», Habersetzer, Le Guide Marabout du Karaté, pg. 51.

[2] Mestre DeRose, Yôga. Mitos e Verdades, p. 164.

[3] Riviére, El Yôga Tantrico, pg. 34.

[4] Micea Eliade, Pátañjali e o Yôga, ed. Relógio d’pg. 186.

[5] Lee Sannella, A experiência da Kundaliní, pg. 24

[6] Mestre DeRose, op. cit., pg. 164.

[7] Kularnava Tantra, Rito das cinco coisas proibidas, tradução para o inglês, e organização de M. P. Pandit, com introdução de Arthur Avalon, 1.ª ed. Em espanhol, Madrid, 1980, pg. 93-94.

[8] Idem, pg. 94-95.

[9] DeRose, Faça Yôga Antes Que Você Precise (Svásthya Yôga Shastra), Ed. Uni-Yôga, pg. 79 e 80.

[10] Elíade, El Yôga. Inmortalidade Y Libertad, Ed. Fondo de Cultura Economica, pg. 109.

[11] Praticante, adepto do sádhana, ou seja, da filosofia que escolheu.

[12] Shivánanda, Kundaliní Yôga, pág. 88.

[13] O Yôga antigo, denominado de Swásthya Yôga após a codificação, tem uma estrutura de prática organizada em oito módulos (ashtánga sádhana), que são os seguintes:

1) mudrá gesto reflexológico feito com as mãos
2) pújá retribuição ética de energia.
3) mantra vocalização de sons e ultra-sons.
4) pránáyáma expansão da bio energia através de exercícios respiratórios.
5) kriyá actividade de purificação de mucosas
6) ásana atitude corporal ou posição psicofísica.
7) yôganidrá técnica de relaxação
8) samyama Técnicas de concentração, meditação e outras práticas mais adiantadas.

 

[14] In El Yôga Tantrico, pág. 122.

[15] Shivananda, Kundaliní Yôga, Ed. Kier, pg. 83-84.

[16] Kim, Sun-Jin et al., Tuttle dictionary of the Martial Arts of Korea, China & Japan, pg. 96.

[17] Ji significa “o eu”, o “próprio ser”; “pessoal”; toku significa “ganho”, “vantagem”.

[18] Significa ensinamento. O mestre transmite a essência da escola, para além da simples perfeição técnica. Não há verdadeira arte marcial se o ensinamento se limita à técnica. Mas só um verdadeiro sensei consegue transmitir mais do que a técnica.

[19] Mazac, “L’evolution de as propre progression par l’étude du kata”, Bulletin de l’Académie de Judo Michigami.

[20] Stobbaerts, aiki do, a procura da unidade, pg. 83.

[21] Mazac, idem.

[22] Schultz, Lucas, La Sagesse du guerrier. Écoutez sa voix, vote guide sur le chemin de vie, pg. 91.

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