O centro. O fio de Ariadne e a busca introspectiva – maithuna.

 

1. Coligi alguns apontamentos que se vos destinam. Vamos ver se ao passá-los à forma escrita os consigo apresentar como sútra, ou seja, com um fio condutor, o fio que sustenta a nossa caminhada no labirinto, o fio que une os fragmentos da nossa existência, quando somos confrontados, directamente, sem subterfúgios connosco e com aquilo que de facto somos. E esse confronto ocorre uma e outra vez, se o procuramos, evidentemente. O centro não estará definitivamente resolvido enquanto não nos libertarmos totalmente das amaras da acção dos triguna. Assim, passamos tantas vezes de um labirinto a outro – a constante procura do centro que deve ser tão imóvel quanto rápida. Alguns de vós afirmam ir entendendo o que vos digo umas vezes, e outras nem por isso. Deixando o que não conseguem decifrar para depois. Não tem importância que assim seja. Nestas coisas a que nos dedicamos, entendemos de imediato quando já experimentámos, percebemos o que está em causa quando, na nossa caminhada individual, nos estamos a aproximar da experiência referida. Ficamos sem saber do que se trata se ainda estamos longe, mas o importante é estarmos no caminho.
2. O confronto connosco, no trabalho de introspecção de que tantas vezes falamos, pode e causa muitas vezes sofrimento, dando-nos a sensação de estarmos perdidos, de não sermos capazes de nos encontrarmos mais. Podemos ter o delírio de ficarmos para sempre retidos no labirinto, sempre longe de encontrar seja o centro, seja o caminho para a saída. E quantas vezes, cada um de vós, não se sentiram já perdidos? Daí a importância do fio de Ariadne, do sútra condutor, que liga os rudráksha do japamálá.
E referir o sofrimento, numa linhagem tântrica, não será um contra-senso? Neste caso não. Continuamos no caminho da sensorialidade. Reparem, perguntem a uma mulher que já tenha sido mãe se o sofrimento das gestações e respectivos partos, não lhes causou uma alegria tal como nós, os homens, não conseguimos alcançar? Para as mães como para os bebés, o cordão umbilical energético não desaparece, antes dos nove meses de existência fora do corpo da mãe. Perguntem-lhes o que sentiram, como se sentiram – acreditem, mesmo que não o confessem, sentiram-se verdadeiras deusas-mães, capazes de realizar o milagre da vida. Capazes de o realizarem para além do pai e, por vezes, não obstante o pai, que não passa do lingdhara, ou seja, o portador do pénis. Sofrimento, para a mãe e para o novo ser? Sim Alegria infindável, auto-realização e auto-satisfação para as mulheres-deusas que concretizaram o milagre da criação? Também um inequívoco sim. Em relação aos nossos colegas homens, se querem mesmo sentir o que vos digo, e só o conseguirão de forma aproximada, fundam-se na Shaktí. Sejam um só com a Shaktí, coincidentia opositorum – a coincidência dos opostos. Em maithuna, se e quando o quiserem fazer, poderão ter a graça de a Shaktí-deusa, que aceda ao maithuna convosco, vos permitir esse fundor de corpos (os vários que identificamos no Yôga). E aí terão um vislumbre do ser, do sentir, da sensibilidade, da emoção de uma mulher. E, também ela perceberá a força viril, a masculinidade do macho, do homem-touro, a fonte e aorigem da sua força, que por vezes, não contida, se revela como brutalidade. E os dois poderão ser um – o andrógino. E tudo isto, porque nesse instante aquele homem e aquela mulher, são tão só Shiva e Shaktí.
Não deverão confundir maithuna com sexo. Poderão ter relações sexuais sempre que quiserem e muito bem entenderem, o que vos saberá muito bem, pelo menos assim vos desejo, sem que isso tenha algo a ver com o maithuna, a alquimia sexual. Claro que têm de comum que ambas as actividades, passam pela sexualidade e implicam uma boa dose de excitação. Mas a semelhança termina aí.

3. Ainda a propósito das últimas aulas e dos efeitos que possam ter tido sobre vós e sei de quase todos vós que foram intensos e se manifestaram, de maneira diferente em cada um. Nuns com mais intensidade, noutros com mais serenidade.
Uma aula de Yôga pode ser modulada de muitas formas, de modo a produzir mais efeitos aqui, menos ali, equilibrar exageros energéticos neste aspecto, intensificá-los quando são parcos naquele. Um mestre de Yôga deverá conseguir fazê-lo, orientando a prática de modo a intensificar ou diminuir este ou aquele efeito. Pode fazê-lo porque sabe o que está a manipular, conhece intimamente as energias que está a usar, a estimular. Por isso, pode acontecer que um discípulo sinta efeitos tão dispares de uma aula para a outra. Não que esteja algo mal com esse discípulo, que sentia efeitos tão intensos e depois suaves, nas mesmas zonas do corpo e com os mesmos exercícios.

A progressão do yôgi de acordo com as escolas tântricas medievais

Algumas tradições tântricas medievais, apontam para uma progressão do yôgi da seguinte forma:
# Pashu, o homem comum, o homem animal, que ainda não iniciou o caminho. Sendo que Shiva, o mahêshwara (o primeiro nascido), o Sadyôjata (o nascido espontaneamente), se apresente tão só, com a humildade dos sábios, como Pashupati, o senhor dos animais, pois, em verdade, esses são os que mais necessitam de Shiva e dos seus ensinamentos.
# Sádhaka (o praticante), sádhika (a praticante). O pashu transmutou-se em aprendiz. É aquele que transpôs o 1º véu da ignorância, iniciou os passos rumo à libertação. É o que segue o sádhana com afinco e disciplina e no Yôga tântrico não importa qual seja o passado desse sádhaka, ou a sua origem, só importa o que acontece depois do início do caminho.
# Vira. Seguidamente passa a herói ou adepto. Neste estado já pode distinguir e ultrapassar as aparências do mundo material. São iniciados que pela prática do Yôga adquiriram o poder de dominar o mundo físico e o mundo subtil. Já transcenderam a condição humana. Um vira pode já ser um mestre que domina todas as energias em si latentes e em sua volta. É capaz de dominar as forças elementares da natureza. Tem a capacidade de atravessar o labirinto interno e aceder aos níveis superiores.
# Siddha, o realizado. Este é o estado seguinte, tembém apelidado de kaula (membro do grupo), palavra que corresponde a companheiro. Encontra-se num estado de verdade. Pode dominar as pulsões naturais, não necessitanto nem de rituais, nem de virtude. Ele é, no seu corpo, mestre da criação. Domina o poder da serpente.
# Divya. É um estado acima e para além do anterior, É um senhor da energia e do fogo, em si e fora de si.

Voltando ainda aos efeitos energéticos, a tradição hindu aponta a existência de 10 principais deusas, apelidadas de mahá vidyá (as grandes sabedorias). Estas dez grandes deusas são Kálí, a negra, a personificação da ira, da fúria de Durga; Tára; Tripurá Sundarí, Bhuvanêshwarí; Dhúmávatí, Bagalámukhí; Bhairaví; Mantagí; Kamalá e Chinnamastá. Entre estas, para os aspectos energéticos que foram sentindo, umas vezes mais intensos outras vezes mais suaves, é Chinnamastá, a da cabeça cortada, que tem importância especial. Esta deusa costuma ser representada nua, com uma guirlanda de crânios ao redor do toco do pescoço. Segura a sua prápria cabeça cortada com a mão esquerda. Muitas vezes é ainda representada sentada ou em pé sobre um lótus e sobre um casal, Shiva e Shaktí, em cópula, com esta por cima daquele. Do pescoço, jorram duas correntes de sangue, com as quais a deusa pretende alimentar as suas duas servas, Jayá e Vijayá, que recebem, cada uma deles, um dos jorros de sangue na boca, ou num recipiente, dependendo das representações gráficas que se olhem. O cortar da cabeça, tal como já acontece no mito de Ganêsha, representa a morte daquele que, uma vez iniciado, renasce. Mas agora num estado ontológico superior. O cortar da cabeça significa o cortar das amarras do mundo profano, o libertar-se para o mundo sagrado. Por outro lado, este sacrifício da mãe divina, representa o sacrifício das correntes esquerda e direita, pingalá e idá, que têm de ser sacrificadas para permitir o livre fluxo de energia pelo canal central, sushumna nadí. Sem o sacrifício destas duas correntes, consegue-se equilíbrio, mas não exactamente o despertar da kundaliní. Tanto assim é que o outro nome desta deusa é Sushumnêshwara Bhásiní, ou seja, “a que brilha com o som do canal central”. O casal por baixo da deusa, é a estimulação sexual que desperta a kundaliní pelo facto de terem sido sacrificadas as duas correntes, prána e apána.

Mestre João Camacho, O sono de Ganêsha. O poder adormecido; Edição comemorativa do duplo aniversário (25/50) de João Camacho, Yôgachárya. Págs. 17-22