Santôsha e Tapas

Cultivar o contentamento e o aprimoramento do carácter.

 Introdução

 

Na base de todas as linhagens de Yôga estão os preceitos éticos, que se encontram expostos nos Yôga Sútra de Pátañjali. São os yama e os niyáma.

Os yama são o mahá vatra, ou seja, o grande voto universal que, como ensina Pátañjali, no cap. II – 31, não estão limitados por casta, lugar, tempo, nem circunstâncias.

                        Os yama e os niyama consistem nos seguintes preceitos:

 

Yama

Proscrições éticas´

Estes preceitos são as obrigações do ser humanos enquanto ser social. São as suas obrigações para com a sociedade.

I. Ahimsá Não agressão
Ii. Satya A verdade
III – Astêya Não roubar
Iv – Brahmacharya Não dissipação da sexualidade
V. Aparigraha Não-possessividade
Niyama

Prescrições éticas

Estes preceitos são as obrigações de cada ser humano para consigo próprio

Vi. Shaucha A limpeza
Vii. Santôsha O contentamento
Viii. Tapas A auto-superação
IX. Swádhyáya O auto-estudo
X. Íshwara Pranidhána A auto-entrega.

 

 

Iremos abordar, neste artigo, apenas dois dos preceitos: santôsha e tapas.

 

Parte I

Santôsha

Cultivar o contentamento

II – 42

Santôshád anuttamah lábhah

A observância do contentamento constante conduz à superlativa felicidade.

 

Contentamento é a atitude psicológica de estar satisfeito com aquilo que se tem. O contentamento e o seu contrário, o descontentamento são independentes das circunstâncias que os geram. É definido no Mahábharatá (XII – 21.2) como «o mais alto céu»[1].

O yôgi deve cultivar a capacidade de extrair contentamento de todas as situações a que esteja submetido.

O discípulo deve cultivar a arte de estar contente com o Mestre que escolheu.

 

Sháriraka santôsha

Contentamento físico é estar contente com aquilo que tem. É estar contente com o desempenho físico nas técnicas da metodologia que ensinamos. É ser auto-suficiente e não esperar nada de ninguém. É estar contente com aquilo que possui. É estar contente com a sequência de ásana que é capaz de executar.

É, todavia, também, estar contente com a capacidade de agir e fazer do contentamento uma ferramenta para a auto-superação, para ir mais longe.

 

Vachika santôsha

É essencialmente a prática de mauna evitando as discussões estéreis e inúteis.

 

Kama santôsha

Quando o yôgin deixa de ser arrastado pelas vagas de emoções que assolam o ser humano está em santôsha, alheio à alternância e às circunstâncias emocionais exteriores ou interiores.

 

Manásika santôsha

O contentamento que se procura não é o dos desejos satisfeitos, mas sim o do contentamento consigo próprio. Oriundo do desapego dos frutos da acção.

Está em santôsha aquele que mantém o seu ritmo e a sua alegria, alheio às circunstâncias, pois sempre encontra motivo para se impulsionar e para agir, com alegria, para a auto-superação e para a expansão da Nossa Cultura. É aquele que consegue espontânea e necessariamente colocar-se em atitude de alegria interior seja num ambiente de guerra ou de paz, faça chuva ou faça sol. De tal modo que o yôgi deve ser um dispersor de alegria. A sua alegria deve incluir as tristezas alheias.

Aquele que progride mantém-se cada vez mais em santôsha.

 

Disposição moderadora[2]:

A observância de santôsha não deve induzir à acomodação daqueles que usam o pretexto do contentamento para não se aperfeiçoar.

Parte II

Tapas

disciplina, austeridade

 

II – 43


A disciplina própria produz a destruição das impurezas, o que conduz ao aperfeiçoamento da sensibilidade corporal e dos sentidos físicos.

Káyêndriya siddhir ashuddhi kshayát tápasah

 

Tapas provém da raiz tap que significa calor. O calor mágico descrito nos shástra que faz despertar a kundaliní, transcender a condição humana e que produz siddhi. Designa todas as práticas, por vezes ascéticas, que produzam calor. A produção de tal energia calórica, o seu armazenamento e a sua utilização (….), é o objectivo das mais antigas formas da prática de Yôga[3].

Manter uma prática diária do método que preconizamos é uma manifestação desta norma.

Manter uma alimentação adequada à nossa filosofia também.

O yôgin deve manter o constante esforço sobre si mesmo, afim de se superar em todos os momentos.

Em todas as circunstâncias e todos os dias o yôgin deve fazer melhor.

Cultivar a humildade e a cortesia é uma forma de demonstração de tapas.

 

Sháriraka Tapas

As austeridades físicas podem ser, de acordo com a sua qualidade, tamas, rajas, sattva.

Tapas pode ser jejuar, manter-se entre quatro fogueiras sob um sol tórrido ou secar lençóis encharcados em água gelada cimo de uma montanha no meio da neve – tamas; ou praticar môuna por longo tempo – rajas; ou pode ser o estudo dos shástra ou a prática regular e disciplinada de meditação – sattva.

Tapas purifica o corpo e fortalece-o, pois tapas também é praticar com disciplina as técnicas físicas da nossa arte.

Manter uma pratica diária do nosso método é uma manifestação desta norma. Manter uma alimentação adequada também. O yôgin deve manter o constante esforço sobre si mesmo, afim de se superar em todos os momentos.

Em todas as circunstâncias e em todos os dias o yôgi deve fazer melhor, aprimorando-se.

Cultivar a humildade é uma forma de demonstração de tapas.

Mas também é verdade que o tapas físico não deve conduzir o sádhaka aos exageros faquiristas, que pouco têm a ver com a atitude equilibrada e ponderada de um yôgi. E tanto assim é que, no Bhagavad-Gitá, explica Krshna a Arjuna:

 

XVII – 5,6.

Os homens que passam por terríveis austeridades,

(….)

unidos à hipocrisia e ao egoísmo,

apaixonados, desejosos e violentos,

 

E inconscientes, que torturam no seu corpo

esse agregado de elementos que o enforma,

também dentro do corpo a mim torturam,

tomando duras decisões demoníacas. [4]

 

Mais recentemente, Vishnudêvánanda também chamou a atenção para este facto, tentando corrigir uma atitude fanática dos seguidores das linhas espiritualistas de Yôga. Assim este mestre, numa conhecida obra sua, do séc. XX, admoestava os seus seguidores do seguinte modo[5]:

 

Também é importante contar com uma mente sã. Posto que o corpo e a mente estão intimamente concertados, é importante ter um estado mental alegre a todo o momento. A alegria e a saúde estão sempre de mão dada. O aspirante inteligente mantém o seu corpo são põe meio de exercício regular, posições de Yôga, controlo da respiração, uma dieta moderada, descanso e muito ar fresco. Há que evitar as drogas e os medicamentos tanto quanto seja possível, e, quando seja necessário, recorrer a curas naturais.

Há muitos aspirantes que se recusam a tomar medicamentos ainda que se encontrem gravemente doentes. Estas pessoas torturam o seu corpo desnecessariamente; permitem que a doença se espalhe e assim arruínam a sua saúde. Rapidamente se verão fisicamente incapacitados para continuar a sua prática. É muito melhor medicar-se durante um par de dias e retornar rapidamente à prática do que permitir que a doença alcance estados mais avançados, causando grandes dificuldades e atrasos no regresso a uma prática regular. Merece a pena ressaltar que a cura mais efectiva para muitos transtornos é o jejum, durante o qual o sistema digestivo descansa e se eliminam os venenos do corpo.

 

Vachika tapas

Conter o impulso de expressar comentários maldosos sobre outrem. O Bhagavad-Gitá ensina:

 

XVII

Palavras que não causam aflição,

verdadeiras, amigas, salutares,

recitação e práticas dos Vêdas,

eis a chamada ascese da linguagem.

 

 

Kama tapas

O Bhagavad-Gitá ensina que os três caminhos que conduzem o homem à angústia são o desejo, a ira e a avidez:

Quando um homem medita nos objectos

dos sentidos, desperta o seu apego

e, do apego, nasce, então, desejo

e, do desejo, é que brota a ira;

 

E a angústia causada pelo desejo, a ira e a avidez, não é própria do homem sábio, pois aquela conduz o homem à prostração.

O sádhaka deverá então praticar a austeridade de evitar o desejo, a ira e a avidez, pois estas emoções perturbam-lhe o psiquismo, afastando-o do samádhi.

 

Manásika tapas

A austeridade de manter lealdade ao seu Mestre constitui a mais nobre expressão de tapas.[6]

Deve também cultivar a disciplina de não misturar a nossa tradição ancestral com outros sistemas ou artes, assim como a de não adoptar várias linhas de Yôga em simultâneo.

Tapas é ainda a disciplina do cumprimento das restantes regras éticas.

Tapas é também (Bhagavad-Gitá):

 

XVII

Mente serena mais benevolência,

silêncio e domínio de si próprio,

pureza de carácter, sentimentos,

eis a chamada ascese desta mente.

 

Tapas é tão importante que Vyassa, ao comentar o Yôga Sútra de Pátañjali afirma que sem tapas, nenhum homem pode atingir a perfeição do Yôga.

 

Disposição moderadora:[7]

A observância de tapas não deve induzir ao fanatismo nem à repressão e, muito menos, a qualquer tipo de mortificação.

 

(C)Copyright,  João Camacho, Yôgachárya

[1] Feuerstein, The Shambhala Guide to Yôga, pg. 43.

[2] DeRose, Yôga Sútra de Pátañjali, p. 131.

[3] Heinrich Zimmer, Mitos e Símbolos na arte e civilização indianas, pg. 124.

[4] Bhagavad Guitá

[5] Vishnu Dêvanánada, Meditación y Mantra, pp. 283.

[6] DeRose, Yôga Sútra de Pátañjali, p. 131.

[7] DeRose, Yôga Sútra de Pátañjali, p. 132.

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