Shiva e Shaktí (1) – O Tantrismo

 João Camacho, Yôgachárya

                        Tantra é uma filosofia matriarcal, sensorial e desrepressora.

É o nome dado aos ensinamentos antigos, de transmissão oral (parampará), do período pré-clássico da Índia, época proto-histórico, com mais de 5 000 anos, pois no dizer de Mokerjee e Khann[1] Tantric ritual-simbols are found in Harappan Culture (Indus Valley) Civilization, c. 3000 BC) in the form of Yogic postures, and in the Mother and the fertility cult.

A Índia era habitada, naquela época, proto-histórica, pelo povo drávida, cuja sociedade e cultura, de alto nível, eram matriarcais, sensoriais e desrepressoras, ou seja, era uma civilização tantrika.

O tantrismo era um gupta vídya[2] – conhecimento secreto.

Nesta sociedade matriarcal la propriété, la maison, les terres, les serviteurs appartiennent aux femmes e o homem não passa de um fécondateur, un errant qui s`intéresse aux arts, à la guerre, au jeu, ou bien se consacre à la vie intellectuelle ou spirituelle.[3]

                           As mulheres eram proprietárias dos meios de produção, situação comum a muitas sociedades primitivas urbanas e agrícolas. A importância económica preponderante da mulher, a descendência matrilinear, ou seja, a linha de descendência feita por referencia à mãe, leva a que a sacralidade feminina passe a primeiro plano.

A fertilidade da terra é solidária da fecundidade feminina. As mulheres são responsáveis pela abundância das colheitas, pois só elas é que conhecem o mistério da criação. É um mistério mítico e religioso, porque governa a origem da vida, da alimentação e da morte. A Terra Mãe reproduz-se por partenogénese. A mulher, qualquer das mulheres, comunga desta capacidade e reproduz-se, dá vida a outro ser também por partenogénese. Pelo menos assim o pensavam.

A sacralidade feminina, já conhecida no período paleolítico, com a agricultura, aumenta o seu poder, tornando-se dominante. A sacralidade feminina conduz

 

à sacralidade da sexualidade e conduz à orgia ritual. A mulher, a sexualidade, os ritmos lunares, o mistério da vegetação, da morte e renascimento cíclico, sazonal, com uma espantosa multiplicação pós-morte, estão interligados entre si num simbolismo e estrutura antropocósmica. E parece que o que causou a crescente sacralidade da mulher não terá sido propriamente o fenómeno da agricultura, mas o mistério do nascimento ® morte ® renascimento, identificado no ritmo da vegetação.[4]

 

Neste povo, que vivia no meio cultural e mítico descrito, surgiu o Tantra, como filosofia de vida, de comportamento, que é.

O tantrismo, sendo assim uma filosofia matriarcal, logo sensorial, desenvolveu técnicas relacionadas com o respirar, comer, excretar, dormir, ter mais saúde, mais beleza, mais juventude, mais longevidade, mais prazer e melhor sexualidade[5].

Alguns autores equivocadamente dizem que o Tantra só terá surgido no séc. VI, outros no séc. VIII, porque só nesta época é que surgiram as Escrituras sobre Tantra. Mas, na verdade, é muito mais antigo, e está em estreita associação com o proto-Yôga (….). Na verdade, os mestres tântricos acentuam que, não obstante suas doutrinas sejam recentes, elas não são criações totalmente novas, mas apenas reinterpretações da sabedoria sagrada arcaica[6].

Assim, estes textos, recentes, são os Tantras.

o Tantra é a mais antiga, rica, poética e artística tradição cultural da Índia.

Hay um tantrismo popular (….) pré-vêdico, extremamente antiguo y que se concentra en torno del culto de las Diosas Madres, las que se hallan en todas as partes.[7]

 

Porém a partir do séc. VI foi uma moda na Índia, que influenciou a sociedade, a arte, a filosofia, os costumes, a religião e a ética de forma profunda.

Os Tantra, costumam ter uma divisão quadrupla:

 

Jñanapada a gnose; a doutrina;
Yôgapada o ensino sobre a prática de Yôga;
Kriyápada  actividades rituais
Charyapada  ensinamentos sobre comportamento; regras de vida.

 

Os Tantra são escritos sob a forma de diálogos entre Shiva e a sua esposa Shaktí. Quando, nestas conversas Shiva ensina a Shaktí, a escritura tem o nome de ágama. Quando o ensinamento é transmitido pela Shaktí, que assume o nome de Bhairaví, sendo o discípulo Shiva, então têm o nome de nigama.

Os ágama são considerados ainda mais antigos que os Vêda.

Os Tantra são mais de 200 livros, com um milhão e meio de shloka, que são estrofes com quatro versos de oito sílabas. Os mais conhecidos textos são os Mahanirvanatantra, Kulanarva Tantra, Tantrakaumadí, Shaktísangana, Rudrayámala, Káliká, Tantrasattva, Syama Rahashya, Mantra Mahôdadhi, Sharadatika e Satchakranirupana.

Existem três linhas de tantra e sete escolas principais. A nossa linha de Yôga baseia-se nas raízes dakshinacharatántrika, linha branca, mão direita, a mais antiga. Não utiliza fumo, drogas, álcool, carnes e recomenda contenção de orgasmo. As outras linhas são a negra, ou de mão esquerda, própria da Idade Média, e a cinzenta. As sete escolas são:

 

1 – Dakshinacharatantrika (tantrismo branco);

2 – Vamacharatântrika (tantrismo negro);

3 – Vêdacharatântrika;

4 – Vhaisnavacharatantrika;

5 – Shaivacharatantrika;

6 – Siddhantacharatantrika;

7 – Kaulachara tantrika (tantrismo cinzento).

 

É uma filosofia que nega e condena o sistema de organização social por castas, predominante na Índia durante milénios. É uma filosofia de liberdade. Por isso foi condenada e perseguida pelo opressor ariano, após este ter invadido e escravizado o povo drávida.

A palavra tantra em si tem vários significados:

 

  1. a) Desde logo significa aquilo que é regido por uma regra geral, mas também é a maneira correcta de fazer qualquer coisa. Poderá significar ainda autoridade, prosperidade, riqueza, encordoamento (de um instrumento musical).

 

  1. b) – É aquilo que esparge o conhecimento.

 

  1. c) – É o conhecimento relativo a tattwa (verdade) e mantra (ciência do som e ultra-som).

 

  1. d)Tantra também significa tecer, tecido, trama ou teia do tecido, pois para o tantra o Universo é um tecido onde tudo imbrica, tudo se interrelaciona, tudo actua sobre tudo; mas ainda continuidade, sucessão, descendência, ou processo contínuo.

 

  1. e) – Significa também sistema, teoria, doutrina, obra científica, secção de uma obra. Também é a designação de qualquer doutrina ou obra que se inspire nesta filosofia.

 

  1. f) – Tantra resulta de tantri, explicar, expor, pelo que pode também designar um tratado sobre um determinado tema, mesmo que este nada tenha que ver com o

 

  1. g) – Tantra também designa toda a doutrina não vêdica.

 

  1. h) – Tantra resulta ainda do radical tan (estender, esticar) e do sufixo tra (instrumentalidade), pelo que temos tantra como instrumento de expansão da consciência a níveis supraconscientes.

 

[1] Mokerjee e Khanna The Tantric Way. Art. Science. Ritual, pg. 10.

[2] (….) hay en el Tantrismo una importante traditión oral, muy difícil de conocer porque tiene un aspecto esotérico y secreto; se llama la tradición de boca a oreja (vaktrât vaktrântaram), la doctrina secreta (guptavidya), misteriosa (âmnâya), in Jean Riviére, El Yôga Tântrico, pg. 34.

[3] Alain Daniélou, Shiva et Dionysos,  pg. 265.

[4] Ashtánga Anna – Retrospectiva histórica, Conferência do autor para obtenção do grau de Docente em Yôga, proferida na Uni-Yôga – União Nacional de Yôga de Portugal em 11 de Maio de 1996. Trabalho não publicado.

[5] DeRose, Yôga Mitos e Verdades, citado por Alexandre Ramos, Exercício físico e estados alterados de consciência – o exemplo do Yôga e das artes marciais, Junho de 1997, Lisboa, trabalho não publicado, realizado para a cadeira de Psicologia do Exercício e Saúde, no Mestrado Europeu em Exercício e Saúde, promovido e organizado pela Faculdade de Motricidade Humana.

[6] Feuerstein, Manual de Yôga, pg. 92. Também neste sentido, mas situando as origens do Tantra num passado ainda mais remoto do que os 5 000 anos que indicámos, Van Lysebeth situa-o à 9 000 anos, dizendo acerca de Çatal Hüyük, que era una verdadera ciudad de 10 000 de habitantes, de 9 000 mil años de antiguedad, la que en 1958 exhumó en Anatolia el arqueólogo inglês James Mellaart. (….) Era tántrica Çatal Hüyük? (….) los grandes temas del tantra, como el Culto de la Femineidad, están presentes en ella. (….) Sin embargo, incluso em ausencia de ritos sexuales, todo en Çatal Hüyük es puro tantra. in Tantra, el culto de lo Femenino, pg. 42 e 43. Sir Mortimer Wheeler, O Vale do Indo, acerca da civilização do Indo, descreve que as estatuetas de deusas-mães estão cobertas até à extravagância de pesadas jóias, embora (….) usem (….) só umas sainhas reduzidas (….), pg. 43 e explica, ainda, que nesta civilização a mãe ou deusa–mãe, símbolo da fertilidade, gozava de uma certa primazia, pg. 49.

[7] Jean Riviére, Ritual de Magia Tântrica Hindu (Yantra Chintamani), pg. 11.

 

Copyright, João Camacho.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *