Relação Mestre / Discípulo – A Pedagogia nas artes orientais

«Cet écrit rassemble les enseignements que j’ai reçus de mês maîtres vénérables alors que j’étais à la recherche de mon centre et d’une relation véritable avec l’Univers.»

Lucas Estrella Schultz, La sagesse du guerrier, pg. 9.

 

A abordagem que faremos deste tema será muito pessoal. Sempre enquadrada nos ensinamentos recebidos, pelo menos na forma como foram compreendidos e descodificados. Tudo o que somos e fazemos, seja nas artes do Budô ou no Yôga, devem-se muito mais à generosidade dos nossos mestres do que a nós próprios. Aos nossos mestres estamos gratos, mesmo daqueles que em tempos o caminho, que o viandante faz caminhando, nos afastou.

Quando se analisam as questões da pedagogia nas artes orientais pode fazer-se uma abordagem dita científica, ou uma abordagem feita pelo lado da tradição. A nossa opção é pelo lado da tradição.

Primeiramente abordaremos a tradição do Yôga, posteriormente a tradição do Budô.

Para aqueles que rejeitam a tradição, a existência de um Mestre é algo de indesejável. É algo de condenável. Criticam todos os que o têm e que seguem as suas orientações. Consideram que o importante é saber umas coisas de metodologia do treino desportivo, “sacar” umas técnicas aos que as conhecem e agora fazer o que lhes apetecer. Não perceberam certamente o que está em causa nas artes do Budô ou no Yôga. Não entenderam o que essas artes têm de aperfeiçoamento pessoal e desenvolvimento interno. Na tradição indiana, os shástra, ou seja, as palavras de autoridade, as escrituras do Hinduísmo, dizem que o Mestre é o pai e a mãe e o Senhor. Por isso são-lhe devidos dedicação, entrega, amor, obediência, respeito, lealdade. A tal ponto que nas artes do Oriente o conhecimento, muitas vezes, só era transmitido de pai, ou de mãe, a filho/a. Se não houvesse a relação de consanguinidade, o discípulo deveria demonstrar total dedicação ao mestre.

Em sânscrito, o Mestre é designado como guru, que significa ‘gu’ trevas, ‘ru’ dissipar. Ou seja, o Mestre é um dissipador de trevas. O seu papel é indicar ao discípulo o caminho. E este deverá o discípulo percorrê-lo. O mestre substitui o verdadeiro Mestre – o Mestre interno [1], fonte primordial do auto-aperfeiçoamento e de auto-superação. E fá-lo-á enquanto o iniciado não conseguir, só por si, entrar em comunicação consciente com este. Ora, torna-se necessário o contacto físico com o Mestre, seja continuadamente, seja de modo esporádico. A influência que o mestre deve exercer sobre o discípulo representa algo de supra-individual, diríamos transpessoal, em que a individualidade do Mestre e do discípulo apenas são um suporte. O guru ou, na tradição japonesa, o sensei, são o veículo da descida da energia, Shaktípata. Com a passagem de tal energia o discípulo consegue, em termos de evolução pessoal, o que só com grande esforço conseguiria pela prática paciente do Yôga ou das artes do Budô.  Em tal relação, a pedagogia, tal como é concebida no Ocidente, não faz sentido. Não cabe ao Mestre descobrir como ensinar o discípulo. Antes cabe ao discípulo descobrir como aprender. Para o discípulo que não souber aprender, nenhum mestre conseguirá ensiná-lo. Para aquele que souber aceitar o discipulado, sempre aprenderá ainda que o mestre nada ensine. Pois tem o siddhi da aprendizagem muito desenvolvido, a tal ponto que bastará a proximidade física do mestre para se desenvolver. Na tradição do Yôga, a relação com o Mestre, processa-se através da proximidade física na qual são realizados o Guru Sêva, o Parampará e Kripá Guru. Por isso o discípulo ao escolher um mestre, porque é o discípulo que escolhe, deve estar preparado para o seguir. Aqueles que são desajustados, imaturos, também se decepcionam, acreditando que o mestre não ensina, quando muitas vezes preciosos ensinamentos lhes estão a ser depositados nas mãos sem que o percebam.

 

Guru Sêva

 

É o serviço ao Mestre. O discípulo deve demonstrar ser dedicado ao mestre, superando logo algumas provas, como sejam tratar das coisas do mestre, prestar alguns serviços duros e vulgares, como limpar o local da prática, carregar os objectos do mestre, fazer comida, preparar as mesas para alguma festa ou comemoração que seja feita, mesmo sem que nenhuma técnica objectiva lhe seja ensinada. Se tudo aceitar sem questionar, então estará apto a passar ao estágio seguinte, onde lhe começa a ser ensinada arte. Nas artes do Budô são conhecidas muitas histórias destas. Se questionar o mestre, este irá exigir-lhe muito mais provas de dedicação. Se porventura o discípulo tudo aceitar sem questionar, passará à fase seguinte, o parampará.

 

Parampará

 

Passada a fase anterior, que em boa verdade também é Yôga, pois é uma forma de Karma Yôga, o mestre transmitirá o conhecimento da arte ao discípulo. Fá-lo-á através do parampará que “significa um depois do outro. Mas o sentido é «transmissão oral», ou seja, é a única forma pela qual o verdadeiro conhecimento pode ser passado de Mestre a discípulo, de boca a ouvido, através dos séculos e milénios.” [2] Curiosamente, alguns dos contos populares são altamente iniciáticos e são as mães que transmitem esse conhecimento através de gerações, contando as histórias, chamadas infantis, às crianças. Não sabem o que estão a transmitir, mas o conhecimento é perpetuado. Isso também é parampará. Mas aí falta-lhes a orientação de um mestre para descodificar o que está em causa. A mãe servirá sempre de grande mestre, mesmo quando ela própria não sabe descodificar o que está a ensinar. Quando a transmissão por parampará é feita sem a consciência do que está a ser ensinado, tanto por parte do emissor, como por parte do receptor, falta-lhes o que na tradição tântrica se chama de ensinamento da boca do mestre à orelha do discípulo – vâktrat vaktrântaram, pois se trata de conhecimento secreto (gupta vidyá) e misterioso (amnaya) [3]. No mesmo sentido, Eliade, pois, na tradição tantrica “a revelação se dirija a todos, a via tântrica comporta uma iniciação que só pode ser feita por um guru; daí a importância do Mestre, o único que pode transmitir, de «boca a ouvido», a doutrina secreta, esotérica [4].” Relação que é essencial na evolução do discipulo, transmitindo-lhe um quadro conceptual de orientação pessoal em relação as fenómenos que vão ocorrendo na sua transformação e ascese, tudo como explica Sannella, embora em sentido crítico, “o mestre transmite, tanto em palavras como, muitas vezes, por meio de iniciação directa, o conhecimento esotérico ou a visão que o discípulo está prestes a descobrir por si mesmo. Em outras palavras, o mestre proporciona a estrutura da interpretação com a qual, então presta serviços aos acólito, como uma luz que o guia na sua jornada psicoespiritual [5].”

 

KRIPÁ GURU

 

Tendo o discípulo passado a fase anterior, percebidas as lições que o Mestre lhe dá, os ensinamentos que lhe são transmitidos, por vezes de forma informal, quando ele menos espera, fora da sala de prática, é chegado momento de receber a iniciação, o Kripá Guru, ou seja a graça do mestre, o seu toque, a sua bênção. Kripá guru é o toque do Mestre, o toque intencional que transmite força. Nalgumas escolas também é conhecido por Shaktípata – o toque de Shaktí. É a bênção através da qual o Mestre transmite ao discípulo a energia que transforma, que transmuta. É o chintamani, a pedra filosofal. É a capacidade que o mestre tem de transmitir e de transmutar. Tal como a pedra filosofal toca e transforma o chumbo em ouro, também o mestre transforma o seu discípulo em ouro. É o toque de Midas. É a capacidade que o mestre tem de interferir e transformar o discípulo como pessoa, de interferir e alterar a sua vida o seu karma. Por vezes carregando-o.

O mestre não deve permitir o envaidecimento do discípulo. É necessário ser tolerante, bondoso, mas impor disciplina. O praticante mais adiantado, se o é, deve dsiciplinar o ego e ajudar os mais novos, sem se considerar mais do que eles. Deve manter cordialidade.

Há vários tipos de kripá que o mestre pode dedicar ao discípulo. Desde logo os mais comuns são [6]:

Adí kripá. É o toque simples, uma bênção que qualquer pessoa pode receber, como forma de receber força, paz, saúde, bem-estar, desenvolvimento interior.

Maha kripá. É uma transmissão forte, que transforma o discípulo em professor e este em Mestre. Deverá estabelecer laços de carinho e respeito entre o Mestre que concedeu e o discípulo que recebeu. Insufla o poder de preparar outros instrutores.

Tantra kripá é um toque energizante que estimula chakra e kundaliní através da libido.

Uma tradição na qual esta transmissão tenha sido interrompida perde-se para sempre. No Ocidente, todos os que peroram contra a existência de um mestre que deverá ser seguido não sabem, de facto, do que estão a falar. A esses, a pedagogia.

 

O MESTRE

 

                        É certo que no Ocidente muitas das pessoas que passaram pelas artes orientais estão fartas de certos “mestres”, verdadeiros vendilhões, que de mestres têm pouco. Uns orientais, outros ocidentais, que resolveram assumir as vestes do Mestre. Mas isso resulta do facto de, na nossa civilização, se querer tudo para ontem. O Mestre habitualmente não facilita, como já acima vimos. Exige provas de lealdade, de dedicação. E muitos, fartos de obedecer vão embora. Procuram um caminho rápido, onde lhes seja prometida iluminação instantânea num workshop, como é moda apelidar-se hoje, de fim-de-semana. E esperam sair de lá com técnicas “secretas”, com as quais passam a ser “grandes mestres”. Em Inglaterra, na segunda metade do séc. XX, com a febre dos filmes de Bruce Lee, toda a gente queria praticar Kung Fu. Então muitos donos de restaurantes chineses abriram ao lado do restaurante uma escola de “kung Fu”. E alguns milhares de britânicos pagaram preços elevados por aulas dadas por um cozinheiro. Recentemente chegou-me ao conhecimento que alguém que durante muitos anos se dedicou ao “ferro”, agora, repentinamente, faz “regressões” acompanhadas de sessões de massagem corporal. E algumas incautas já se apressam a inscrever-se para “regredirem” nas mãos de tal “mestre”. O problema do surgimento de falsos mestres é a existência de mercado para os mesmos: quanto mais místicos, espirituais, compreensivos, com roupas exóticas e maneiras afectadas se apresentarem mais sucesso têm. E se a isso tudo juntarem uma voz profunda, tratarem os que os procuram por filho e filha, derem ao seu método um nome estranho e prometerem resultados para ontem, é sucesso garantido. Um pouco mais de maturidade e de paciência daqueles que procuram e alguns falsos “mestres” não teriam tanto sucesso. Acerca das maravilhosas “meditações” que alguns desses mestres dão, é assim mesmo que os seus seguidores se expressam, dos “milagres” que fazem, dos poderes que ostentam, mais valia seguirem o grande mestre “bom senso ananda” como, à guisa de brincadeira, Mestre Van Lysebeth aconselha num dos seus livros.

A questão da necessidade, ou não, da pedagogia, afim de se discutir que tipo de pessoas queremos formar, como fazê-lo, como as motivar, como conseguir ensiná-las, não tem sentido numa arte oriental se soubermos distinguir o trigo do joio. Isto é, há que estabelecer distinções claras e não confundir o Mestre com o professor ou com o instrutor. E nesta confusão também está a origem de muitos erros. Pois a relação com o instrutor não é nem pode ser igual à relação do discípulo com o mestre.

Desde logo, instrutor é aquele que ministra sessões práticas de Yôga, ou de outra arte oriental a adeptos comuns que querem conhecer esta ou aquela arte. Já o professor é o que ensina a prática e a teoria para o domínio da técnica e da sua fundamentação. Pode inclusive ministrar seminários teóricos e pode preparar futuros instrutores. E veja-se o quão longe estamos ainda da relação entre mestre e discípulo. Já o Mestre é aquele que interfere na maneira de ser do discípulo. O praticante participa em sessões práticas da arte que escolheu. O aluno recebe aulas do professor. O discípulo assumiu uma relação de empatia e de lealdade com o Mestre. É aquele que aprende para a vida e não só para a sala de aula e aceita que o Mestre através dos seus ensinamentos interfira em sua vida privada. Pois com aquilo que o Mestre lhe ensina para a vida transforma-o, modificando-se, transmutando-se, polindo-se, revelando-se cada vez mais um diamante.

A relação entre Mestre e discípulo deve ser baseada em reciprocidade e aceitação. O Mestre admoesta o discípulo quando se torna necessário e este acata a admoestação.

 

Características do Mestre

 

Mas voltando à pedagogia, o Mestre, para o ser já passou, por sua vez, por este percurso, que conhece intensa e profundamente e sabe como transmitir a sua arte e quando deve transmitir os segredos desta. Os métodos de ensinar a sua arte não lhe são estranhos. O tipo de pessoas que se quer formar também ele sabe. Não se vai é esforçar um pouco que seja para interessar o discípulo pela aprendizagem. O discípulo é que escolhe o mestre e não o contrário. O Mestre apenas o aceita ou rejeita. O problema não é o da pedagogia, mas sim como reconhecer um Mestre. Algumas características de um Mestre são:

– Tem autoridade para com os seus discípulos. Mas reverencia o seu próprio mestre.

– É claro na sua percepção e conhecimento.

– Constante e determinado no seu estudo.

– Livre dos desejos dos frutos das suas acções.

– Não troca de linha ou de mestre.

– O Mestre verdadeiro sempre se coloca depois do seu próprio mestre, em hierarquia e em mérito, nunca considerando que já evoluiu mais que o Mestre e por isso já o pode abandonar.

– Não contesta o seu próprio Mestre, nem emite juízos críticos ou desfavoráveis a seu respeito.

– E nunca perde oportunidade de referir o nome e o mérito do seu próprio Mestre.

Os shastra também indicam quais são as características do discípulo. O Kularnava Tantra, uma obra medieval, ensina que [7]:

 

“O Guru deve desistir de tomar como discípulo (….) o discípulo de outro; (….) o que instiga aos demais; (….) o que é dado a fazer o proibido e a omitir o que se lhe recomenda; o que divulga segredos; o que está sempre empenhado em buscar falhas nos outros; o que é ingrato; traiçoeiro; desleal ao seu Mestre; (….) o que está sempre querendo exigir; (….) o que decepciona a todos; o que é orgulhoso e que se crê o melhor de todos; o insincero; (….) de raciocínio incorrecto; que gosta de brigar; rebate aos demais sem razão; o indigno de confiança; que fala mal das pessoas por trás; o que fala como um brahmane conquanto não tenha esse conhecimento; plagiador; (…) condenado por todos; aquele que é duro; traidor ao seu Mestre; que se engana a si mesmo; (….) que incita a coisas falsas e malvadas; dado aos ciúmes; intoxicação (por drogas); egoísmo; de mente ciumenta, dura e colérica; instável; (….) criador de confusão; (….) sem (….) paz nem conduta correcta; que faz zombaria das palavras do seu Mestre; amaldiçoado por um guru. Estes são os que deve rejeitar.”

 

Assim as qualidades de um discípulo para que um Mestre o aceite devem ser as seguintes, ainda de acordo com o Kularnava Tantra [8]:

 

“O discípulo escolhido deve estar dotado de (….) boas qualidades. (….) Deve ser alguém digno de confiança; (….) não intoxicado (por drogas); (….) serviçal; (….) não dado a atacar os outros; (….) com aversão a ouvir louvores a si próprio, porém genial perante as críticas; (….) deve ser alguém que fale do guru; (….) sempre na proximidade ao guru; agradável ao guru; constantemente ocupado em seu serviço, com mente, palavras e corpo; que cumpre as ordens do Guru; que difunde as glórias do Guru; conhecedor da autoridade da palavra do Guru; (….) que segue as intenções do Guru; que actua como um servidor do Guru; sem orgulho de classe social, honra ou riqueza na presença do Guru; que não cobiça os bens do Guru.”

 

SAT GURU NYASA SÁDHANA

 

A relação entre Mestre e discípulo deverá ser tão intensa que deve permitir a ocorrência de nyása. Nyása  significa a identificação entre o sujeito cognoscente e o objecto cognoscível, o que implica a supressão do acto de conhecer. De modo geral significa a identificação do sádhaka com seres ou objectos, à sua escolha. Porém a prática de nyása com o Mestre leva o discípulo a evoluir mais e mais rapidamente. Mestre DeRose, o codificador mundial do Swásthya Yôga, ensina que [9]:

 

“NyásaNyása significa identificação. Consiste num exercício de origens tântricas que visa a produzir um fenómeno muito peculiar em que o praticante se identifica de tal maneira com o objecto da sua concentração que passa a possuir as características desse objecto. Terminado o nyása, as características cessam. Contudo, se o yôgin praticar sistematicamente nyása sobre um mesmo objecto, gradativamente suas qualidades vão sendo incorporadas pelo praticante. Assim, se o sádhaka pratica nyása com o seu Mestre, vai compreender melhor o ensinamento dele. Passa a incorporá-lo como seu. É possível executar nyása, não apenas com pessoas vivas ou mortas, mas também com objectos da Natureza, tais como uma flor ou uma pedra. E, ainda, com egrégoras e com seres mitológicos.”

 

O mesmo assegura Elíade, que relaciona nyása, a nível superior, com um maior grau de interiorização, e está a citar o Mahânirvânatantra, o nyása, a identificação, pode ser feita com “um simples acto de meditação”[10].

Havendo com o Mestre a relação que se tem proposto é possível conseguir-se uma prática muito intensa que se apelida de Sat Guru Nyása Sádhana. É uma prática fortíssima, que é recebida por via directa pelo discípulo, de dentro para fora. Consiste, num processo de maiêutica, dar à luz, desencadeado pela presença do Mestre. Esta prática desencadeia-se somente na presença do Sat Guru, isto é, do Mestre dos outros Mestres, da mesma linhagem. É um catalisador das energias do sádhaka[11], que passa a executar todas as técnicas do Yôga, muito melhor do que até aí e algumas que nem sequer conhecia, sem que o Sat Guru transmita qualquer ensinamento concreto. Também pode ser designada por Jada Kriyá  [12].

Esta prática é uma forma inferior de Kripá e não depende nem da gradação do ashtánga sádhana [13], nem de todas as suas variações, ou da opção de desenvolvimento horizontal ou vertical, nem em que nível desta se encontra o sádhaka. No dizer de Riviére, «basta la sencilla presencia del Guru para transformar al discípulo; la visión del maestro, unas palabras, son suficientes para despertar fuerzas latentes interiores» [14] do sádhaka. É uma prática de identificação com o Sat Guru, o mestre dos outros mestres, dentro da mesma tradição, que permitirá ao sádhaka evoluir só com a mera presença do Sat Guru, por identificação. Também Shivananda a refere, embora lhe dê outras designações. Este ilustre mestre hindu afirma que “El Gurú (….) no necessita enseñar nada. Incluso su mera presencia o compañia es elevadora, inspiradora y estimuladora del alma. Su misma compañía es autoiluminación. Un Gurú puede despertar a la kundaliní de un aspirante a través de la vista, del tacto, de la palabra o del mero Sankalpa (pensamiento).” [15] Desta citação se retira, claramente, entre outros aspectos, a confirmação de que a pedagogia não tem lugar. Em verdade, nas artes orientais o Mestre deve ensinar como e quando quiser. O discípulo é que se deve esforçar por aprender, mesmo que o Mestre nada ensine. Recordo-me sempre das palavras do nosso amigo Sensei José Patrão, ao afirmar que mesmo nas circunstâncias em que o Mestre não aja da forma mais nobre, devemos sempre lembrar-nos que do estrume também se faz um jardim lindíssimo. O que importa é que o mestre desenvolve em cada um dos seus discípulos, o modo como consegue transformá-los. Mestre Shivananda chama ao Sat Guru Nyása Sádhana de Shaktí Sanchara. Ou seja, “mediante Shakti Sanchara, la Kundaliní dispierta por la gracia del Gurú en el discípulo.”

Perante tal ligação de aprendizagem o modo de ensinar de nada interessa. Ao discípulo compete aprender, seja lá como for que o Mestre ensine. Desde que, de facto, seja um Mestre. É obvio que alguém que diz não seguir um mestre, que diz que nunca teve um Mestre, não pode ser, ele próprio Mestre. Nem aqueles que com ele aprendem as técnicas objectivas, devem vê-lo como tal, muito menos aceitar a sua interferência na sua vida, ou admitir excessos ou exageros, sob a capa de ser Mestre. Pois alguém que não tem um Mestre não o pode ser. Em tal situação devem relacionar-se apenas com um instrutor da arte, seja qual for o título que ostente ou a graduação que porte – é um instrutor não um Mestre.

Por último, e fazendo já a ponte para as artes do Budô, aqueles que mais criticam quem tem um mestre, que afirmam nunca o ter tido e de não seguirem nenhum, são os que mais sofrem de mestrofrenia, ou seja, a necessidade compulsiva de se afirmarem mestres e de serem reconhecidos, amplamente, como tal. Recusam-se a aceitar a autoridade de um mestre, mas querem agir como se a tivessem. Esta deve ser a doença das variantes desportivas das artes tradicionais.

 

As artes do Budô

 

Também no Budô a relação que se estabelece com o mestre pode ser entendida em paralelo com o que acima se expôs. Lembramo-nos que com Sensei Glyn Bannister, nosso mestre de Jûdô, as grandes lições que aprendemos foram-nos dadas fora do dôjô. Uma delas, quando decidimos participar num Estágio Internacional de Budô, em Inglaterra. O nosso mestre perguntou-nos se não me quereríamos propormo-nos a exame para 3.º dan e para o título de doshi. Respondemos-lhe que sim, desde que ele próprio considerasse ser chegado o momento. Solicitámos o syllabus e descobrimos, quando este veio, que a exigência técnica da instituição internacional em causa era bastante elevada. A ponto do nosso mestre nos ter dito ao telefone, a título de brincadeira, que se deveriam ter enganado e enviado o programa técnico para o exame para 10.º dan. Encontrámo-nos para analisarmos o programa e o meu mestre disse-nos que nos 3 meses que faltavam para o estágio nós teríamos que trabalhar muito. Perguntou-nos se ainda estaríamos dispostos? Respondemos: “Não sei Sensei. Acha que eu sou capaz?” Obtive como resposta o seu olhar desiludido. E disse-me: “Não vale a pena. Tu, no teu coração, já chumbaste este exame.” Foi uma grande lição. Uma lição fora do dôjô, sentados a beber um chá. Entendemos que tínhamos que nos atirar à tarefa com a certeza de a cumprir. Não com a atitude de quem vai tentar, mas de quem vai concretizar. E fizêmo-lo. Passamos o exame.

 

SHITEI

 

Shitei é a relação que se estabelece entre o Mestre e o discípulo nas artes do Budô. Shi significa o Mestre, tei o discípulo.

Um dos elementos fundamentais desta relação é o giri, ou seja, o dever. É a dívida que alguém tem, que está para lá da moral consciente, ou da dívida objectiva. O giri é a dedicação, a lealdade e a confiança inabalável que o discípulo (dêshi) deverá ter na escola que escolheu, na linhagem que segue, no mestre que o orienta, na via (). Tal relação está muito para além daquela que se estabelece entre o treinador, nas variantes desportivas das artes marciais japonesas, ou entre o instrutor ou o professor e o praticante. Giri é o sentido de obrigação e de dívida de honra que o discípulo tem para com o mestre [16].

Outro dos elementos determinantes do shitei é o jitoku [17], ou seja, o esforço, a reflexão e a procura pessoal, paralela ao ensinamento do mestre. Só o jitoku permite a compreensão do real sentido do que o mestre ensina, que está muito para além da mera execução técnica. Aprender desta forma permite dar vida ao que a tradição transmite.

É nas vertentes desportivas que os praticantes ficam pela mera cópia da técnica. Ao contrário do que gostam de apregoar. As vertentes desportivas das artes marciais, essas sim, não evoluem, antes involuem. Pegam na técnica objectiva, aplicam-lhe as metodologias do treino física, seleccionam-se para as provas através das pregas de gordura, como o fazia à mais de uma década um ilustre Karateka, licenciado em educação física. E depois chamam-lhe evolução e aplicam-lhe pedagogia. Determinam quais são os momentos em que deve haver picos na condição física, e devem coincidir com as datas das competições, pensa-se em modos de motivar os atletas, etc. E estamos a evoluir, dizem. Pedagogicamente falando, olhando para o que perdem das artes que praticam, mesmo só considerando as técnicas objectivas, na verdade, involuem.

Numa relação deste tipo costuma haver, paralelamente, uma linhagem externa, hoje em dia geralmente virada para o desporto, e uma linhagem interna, oculta, que não é conhecida nem referida, em cada uma das escolas do Budô. O aluno externo (soto dêshi) não é comparável com o discípulo interno – dêshi. Nestas linhagens muita vezes o discípulo é uchidêshi, ou seja, de grosso modo, um discípulo que vive com o mestre. Em todo o caso pode significar tão só o discípulo mais próximo do mestre, mas sempre por oposição ao discípulo externo.

Desde logo, aquele que chega 1.º dan não é um especialista, é verdadeiramente um principiante. Agora é que começou a caminhada.

A evolução da arte faz-se através dos níveis de Shu ha ri.

 

Shu Ha Ri

 

 

SHU

 

HA

 

RI

Para se perceber a relação entre o Mestre e o discípulo nas artes do Budô, voltamos a socorrer-nos dos conceitos Shu Ha Ri, que já foram tratados por nós numa conferência que proferimos e cujo texto se encontra publicado na Súrya online, do Centro de Artes Orientais. Reproduzimos em parte o que aí consta.

Shu ha ri são as três etapas de progressão tradicional nas artes marciais de acordo com a via de aprendizagem clássica (oshie [18]), concebidas também como caminho interno do praticante. Significa grosso modo, imitar, divergir, separar.

Através destas etapas um mestre leva o seu discípulo desta etapa até à condição de mestre.

 

SHU

 

                        Num dôjô tradicional, todos os que alcançam a graduação de dan, devem imitar os movimentos do Mestre que os ensina. Nem sequer se pode questionar, apenas imitar. A aprendizagem nesta fase implica um simples exercício de observação. E a partir dessa observação gestual, o praticante reprodu-la e assimila-a. É a assimilação da forma exterior da técnica. Esta etapa tem o nome de SHU. Esta palavra tem a sua origem em mamaru, que significa proteger, observar uma regra [19]. Na fase SHU pretende-se proteger a forma para a conservar. É a etapa onde se assimila fisicamente as bases fundamentais da arte. É a parte em que se estuda e memoriza a gestualidade da forma. A reprodução do modelo limita-se a uma reprodução física. O discípulo observa a arte do mestre, reproduzindo-a. Procura a reprodução que convém à sua própria constituição física. É o estudo pela imitação, decalcada do modelo exterior. Nesta fase o discípulo, que ainda não o é de forma confirmada ostenta o 1.º e o 2.º Dan.

 

 

SHU

 

HA

 

RI

[1] A prática implica sempre uma orientação segura, ministrada por um sensei, o que nasceu antes, palavra que também pode ser entendida como «aquele que indica a luz». Ora há sempre na relação Mestre-Discípulo uma transmissão para a luz. Contudo a relação com o Mestre possibilita que, cada um, no seu caminho, se projecte sobre si próprio descobrindo no seu interior o seu próprio mestre – o Eu. Ou seja «cada um tem em si o seu Mestre, cada um é guru de si próprio», vide p. 250, Henriques, António Renato, Yoga e consciência. 2.ª ed., Ed. Rígel, 1990: Porto Alegre (Brasil), pgs. 281. Dito de outro modo, «l’essence de tout art martial est de nous donner le moyen de voir clair en nous-même, de rester simple et sincère», Habersetzer, Le Guide Marabout du Karaté, pg. 51.

[2] Mestre DeRose, Yôga. Mitos e Verdades, p. 164.

[3] Riviére, El Yôga Tantrico, pg. 34.

[4] Micea Eliade, Pátañjali e o Yôga, ed. Relógio d’pg. 186.

[5] Lee Sannella, A experiência da Kundaliní, pg. 24

[6] Mestre DeRose, op. cit., pg. 164.

[7] Kularnava Tantra, Rito das cinco coisas proibidas, tradução para o inglês, e organização de M. P. Pandit, com introdução de Arthur Avalon, 1.ª ed. Em espanhol, Madrid, 1980, pg. 93-94.

[8] Idem, pg. 94-95.

[9] DeRose, Faça Yôga Antes Que Você Precise (Svásthya Yôga Shastra), Ed. Uni-Yôga, pg. 79 e 80.

[10] Elíade, El Yôga. Inmortalidade Y Libertad, Ed. Fondo de Cultura Economica, pg. 109.

[11] Praticante, adepto do sádhana, ou seja, da filosofia que escolheu.

[12] Shivánanda, Kundaliní Yôga, pág. 88.

[13] O Yôga antigo, denominado de Swásthya Yôga após a codificação, tem uma estrutura de prática organizada em oito módulos (ashtánga sádhana), que são os seguintes:

1) mudrá gesto reflexológico feito com as mãos
2) pújá retribuição ética de energia.
3) mantra vocalização de sons e ultra-sons.
4) pránáyáma expansão da bio energia através de exercícios respiratórios.
5) kriyá actividade de purificação de mucosas
6) ásana atitude corporal ou posição psicofísica.
7) yôganidrá técnica de relaxação
8) samyama Técnicas de concentração, meditação e outras práticas mais adiantadas.

 

[14] In El Yôga Tantrico, pág. 122.

[15] Shivananda, Kundaliní Yôga, Ed. Kier, pg. 83-84.

[16] Kim, Sun-Jin et al., Tuttle dictionary of the Martial Arts of Korea, China & Japan, pg. 96.

[17] Ji significa “o eu”, o “próprio ser”; “pessoal”; toku significa “ganho”, “vantagem”.

[18] Significa ensinamento. O mestre transmite a essência da escola, para além da simples perfeição técnica. Não há verdadeira arte marcial se o ensinamento se limita à técnica. Mas só um verdadeiro sensei consegue transmitir mais do que a técnica.

[19] Mazac, “L’evolution de as propre progression par l’étude du kata”, Bulletin de l’Académie de Judo Michigami.

[20] Stobbaerts, aiki do, a procura da unidade, pg. 83.

[21] Mazac, idem.

[22] Schultz, Lucas, La Sagesse du guerrier. Écoutez sa voix, vote guide sur le chemin de vie, pg. 91.

(C) Copyright, João Camacho, Yôgachárya

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