Shiva e Shaktí (2) – O Tantrismo

Na perspectiva tântrica a realidade última, não manifestada, irredutível e imutável, chama-se Shiva-Shakti – a causa incausada. É o átomo de energia original da física moderna.

Mas a dado momento iniciou-se a vibração, nada[1]. A causa da manifestação universal foi Shaktí, natureza criadora, a causa causada. O movimento, a expansão, a mutação, a diversidade, a mente e a matéria e em consequência as limitações da consciência foram produzidos por Shaktí, ou seja o big-bang da física moderna [2].

Para o tantrismo o Universo resulta destes princípios contraditórios mas complementares, feminino/masculino; causa não manifestada/causa da manifestação universal; positivo/negativo. Para o tantrismo o mundo fenoménico é real.

Shaktí ao manifestar-se afasta-se da causa incausada. É o afastamento dos astros depois do big-bang da física.

Shaktí é o poder. É ela que, através da sua práxis transformadora, delimita o espaço e o tempo e todas as formas em mutação de apresentação da energia primordial. É ela que no seu devir perde parte da consciência do uno, do imutável, do perene e manifesta-se por várias formas, em vários graus de consciência, desde os mais subtis aos mais grosseiros. Certas coisas são mais conscientes do que outras, mas a inconsciência nunca é absoluta.

Shaktí é o poder que se manifesta sob a forma de Universo, é a matriz cósmica, a Mãe universal, a energia primordial em devir, a origem de tudo o que foi causado.

E longe da mutação e instabilidade não totalmente consciente de Shaktí, encontra-se o princípio não manifestado, imutável – Shiva

Este princípio imutável, indiferenciado, designa-se também por Mahabindu, ou Nirguna Brahman, ou Paramshiva, ou, como acima o referimos, Shiva-Shakti.

Também no homem se encontra esta dualidade, entre o mental e o material. Entre o poder que se manifesta como actividade corporal e mental e uma supraconsciência desconhecida do homem comum.

Antes do big-bang, Shaktí repousa em potência em Shiva, unidos e indistintos. Quando Shaktí na forma de prakrutí cria o mental, a energia, os sentidos, a matéria sensível e chega ao último dos tattva, a terra, a matéria sólida, a sua consciência adormece, ficando latente.

É por isso que Shaktí é conhecida no plano individual como Kundaliní Shaktí, a serpente ígnea, adormecida e enrolada sobre si própria, à volta do liñgam, três vezes e meia, na base da coluna vertebral.

Ao nível cósmico é Mahá kundaliní.

Kundaliní adormecida representa a prakrutí no fim do estado involutivo.

Uma vez acordada ascenderá, como fogo, até ao sahásrara chakra, unindo-se a este, cessando a dualidade, adquirindo a consciência plena.

Na sua ascensão, o estado de obscurecimento da consciência em que Shaktí se encontra, vai-se dissipando. E vai despertando os chakra, num movimento inverso ao movimento criador. Por onde vai passando vai despertando e dinamizando os chakra. Ao chegar ao sahásrara atinge-se a meta do nossa arte.

Se o movimento ascendente se fizer com as nádí desobstruídas, os granthi, nós, estarão abertos num só sentido, não deixando Kundaliní descer de novo ao seu estado de inconsciência.

Localizam-se os granthi no múládhára chakra, no anáhata chakra e no Ajña chakra.

Tudo é reflexo da existência de Shiva, do princípio imutável. Não só aquilo que no homem permanece igual a si mesmo – o púrusha – como também o real fenoménico, em permanente mutação. Este não é entendido pelo tantrismo como uma ilusão, porque resulta da energia criadora de Shaktí. Nesta cosmogonia não há lugar ao conceito de Deus, nem de criação do mundo. Sendo Shiva imutável, é igual a si próprio, não cria, nem é criado. Nada faz, limitando-se apenas a ser. A sua manifestação ocorre por via da acção de Shaktí, a sua esposa, por extensão energia[3].

Acontece que Shaktí não é ilusória, é real, é a causa manifestada. Assim máyá, o real fenoménico, não deve ser entendido como ilusão, mas sim como a percepção do movimento e da mudança. Contudo, máyá, não deixa de produzir, no ser humano, a ignorância, avidyá. Pois este convence-se não existir nada mais do que a dualidade que observa, permanecendo assim em sofrimento. E a ignorância não lhe permite ver o que está para além. Não lhe permite ver a substância, a unidade, a imutabilidade e infinidade do Ser. A ignorância é assim a mãe de todos os sofrimentos do ser humano. Em qualquer dos casos o tantrismo não nega o real fenoménico (drishya – aquilo que pode ser conhecido), como o Vêdánta o faz. Apenas o encara como a causa causada.

E tudo o que acontece tem que estar contido na causa que lhe é anterior, pois coisa alguma pode surgir do nada.

A consciência permanece em tudo e em todo o lado, de tal modo que um dos textos tântricos antigos, o Visvasara Tantra, citado por Van Lysebeth, afirma que tudo o que está aqui, está em toda a parte. O que não está aqui, não está em parte nenhuma[4].

Shaktí é o poder que preside à organização do mundo fenoménico. No seu devir, na sua práxis transformadora até ao MaháPralaya, ou seja a grande dissolução, a grande noite cósmica, Shaktí retorna de novo a Shiva, passando os dois princípios, o imutável e o movimento, a causa incausada e a causa causada, a serem de novo um só, no que respeita á realidade absoluta, realizando a unidade. Após o que novo ciclo se iniciará. No âmbito humano a morte será o processo inverso ao do nascimento.

A cosmogonia tântrica não é religiosa, nem mística, nem dogmática. Apenas especulativa. Como se demonstrou não se socorre dos conceitos de divindade ou de criação do mundo.

O tantrismo tem 36 tattva, dos quais 24, como já acima o referimos, são comuns ao Sámkhya. Íshvarakhrushna, codificador do Sámkhya clássico, afirmou que o Sámkhya, quando ampliado, revela o Tantra em grande extensão[5].

Estrutura-se do seguinte modo:

 

Primeiro os dois grandes princípios, origem de tudo o que existe.

  1. SHIVA e 2. SHAKTÍ.

O motor imóvel do Universo.

  1. SADASHIVA

É a energia volitiva (ICCHÁ).

  1. ÍSHVARA

A seguinte manifestação, a energia do conhecimento (GÑÁNA), a vibração.

  1. SUDDHA VIDYÁ.

Após o conhecimento, a surge a energia da acção (KRIYÁ).

6 – MAYÁSHAKTÍ

Depois Shaktí manifesta-se na forma de energia da dualidade, dando origem aos tattva físicos.

Por sua vez este tattva, Mahashaktí, contém em si três funções distintas:

  1. a) – Srsti, a emanação;
  2. b)  – Sthiti, a evolução;
  3. c)  – Pralaya (Samhára), a dissolução ou reabsorção.

Pelo que surgem os cinco KAÑCHUKA (envoltórios):

  1. KALÁ

São os limites da infinita força de Shiva.

  1. VIDYÁ

São os limites da força do conhecimento;

  1. RÁGA

São os limites da força do desejo, o poder da selecção.

  1. KÁLA

São os limites da força do tempo.

  1. NIYATI

São os limites da força de causa-efeito (KARMA). E Shaktí continuará a sua saga transformadora, cada vez mais longe do princípio consciente, agora através dos tattva já conhecidos quando expusemos o Sámkhya. É nesta fase do seu percurso descendente que se manifestam o

PÚRUSHA e a PRAKRUTÍ;

em seguida

BUDDHI; AHAMKÁRA; MANÁS;

depois os

JÑANAINDRIYA;

os

KARMAINDRIYA;

os

TANMATRA;

e finalmente os

MAHABHÚTA.

 

Porém, a motivação do adepto tântrico não é a estéril discussão teórica. Sabe que só com a prática poderá conseguir aquilo que quer: a expansão da consciência até à percepção da realidade última. O que conseguirá no estado de samádhi. Só possível com o despertar da Kundaliní [6].

 

 

(C) Copyright, João Camacho, Yôgachárya

 

[1] Como veremos à frente nada é o som, neste caso a vibração primordial.

[2]  Cfr. O Tao da Física; nesta obra o Dr. Fritjof Capra defende que uma consistente visão do mundo começa a emergir da física moderna, em harmonia com a antiga sabedoria oriental.

[3] Shiva sem Shaktí é Shava (cadáver).

[4] Van Lysebeth, Tantra, el culto de lo femenino.

[5] Santos, ob. cit., pg. 85.

[6] Muito mais haveria a dizer sobre este sistema filosófico. Contudo esse não é o tema do nosso curso. Aconselhamos, assim, autores como Daniélou; DeRose; Eliade; Feuerstein; Mokerjee; Mokerjee & Khanna; Riviére; Sarma; Shivánanda; Van Lysebeth; Woodrofe.

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