Celebro os ciclos

              Deixo-vos um texto, inspirado, que escrevi à nossa senescal.

              Hoje passei numa floresta que cheirava a floresta. Com um cheiro húmido, a uma infinidade de plantas, árvores de várias espécies e algo de abafado, um certo cheiro a decomposição de matéria verde, orgânica. Há muitos anos que não sentia tal cheiro. Foi inebriante, foi tão bom, tão sereno. Abri a janela do carro, fechei os olhos e deixei-me envolver na experiência. Por vezes, estes pequenos momentos, estes instantes, chegam a compensar todas as chatices de um ano inteiro.

              Quando assim é sinto-me parte de toda a Natureza. Sinto-me sólido, denso e ancião como as pedras, sinto-me arguto, ágil, feroz, sereno, sem esperança, mas sem desânimo, como os animais, eterno na mudança, igual no renascimento; como as plantas, sinto-me um parente afastado dos Elementais.

              Sinto-me em comunhão com esta grande família, como se já lhe tivesse pertencido, como se tivesse que buscar em mim a harmonia que anseio.

              Recentemente falei-te que o equinócio de Outono havia chegado. Ainda não há muito tempo assinalávamos a chegada das estações, procurava despertar-vos para o fecho e o início de ciclos, através da mudança das estações. Procurava, convosco, celebrar a mudança das estações. Assinalávamo-las com cânticos (mantra), dança (ásana), festas (as delícias que compravam ou preparavam com as vossas mãos e o vosso amor). (…) Ainda assim, eu celebro cada giro da Roda com as minhas práticas, por vezes, na floresta, ou no cimo da montanha.

              Eu celebro outros momentos, alguns adequados a descobrir o passado, outros nos quais se deve olhar, contemplar, o futuro. E trabalho esses momentos com toda a liberdade, onde presto homenagem aos que me precederam e aos que amo, assim como aos que me hão-de suceder. Honro a luz do sol, queimando um tronco, ou melhor parte dele, de carvalho (dru para os celtas) na lareira, no Inverno, num fogo que adquire, por esta razão, contornos de sagrado, assinalando o Solstício de Inverno. Honro o sol cuja luz é diminuta. Honro a nova criança-Sol que acabou de nascer (chamam-lhe de natal, chamam-lhe de Menino Jesus), é um festival de paz e uma celebração da minguante luz solar. Honro a Grande Mãe, na sua forma de azevinho, na sua forma de hera, e outras ervas tidas como sagradas, com que procuro decorar a minha casa, por altura do que se chama de Natal. Por volta desse tempo, vou de noite para a minha varanda, e sento-me nesta, no azulejo do chão, e deixo-me por ali ficar, a comungar com as cortantes temperaturas de -4 ou -5 graus que às vezes se registam, de noite, onde moro. Deixo-me ficar por lá a receber no corpo a luz da Lua.

              Em Janeiro ou Fevereiro, procuro da terras altas e geladas onde procuro harmonizar-me com outro tipo de frio, com a neve e as suas especiais características. Em Fevereiro, procura intensificar a minha purificação, aproveito para mais uma fase de bhutta shuddhi, eliminando bloqueios, de modo a receber, condignamente, nos meus corpos, a Primavera e o novo renascimento. É na Primavera que vos tenho proposto novos objectivos, que vos convido para actividades artísticas, pois celebro-a, assim como à terra que está verdejante. Maio é um verdadeiro festival de luz, cor, cheiro, flores, fertilidade, prazer.

              No Solstício de verão, momento principal de reunião e de união de forças e de energias, procuro saudar os velhos amigos. Procuro honrar com ritmo, o movimento do sol, agora forte e pujante. Em Agosto celebro o ápice do Verão.

              Estamos no equinócio de Outono, que é o momento final de um ciclo. É tempo de devolver à terra o que esta nos facultou.

              Mas também honro as minhas jornadas, da minha vida, dos ciclos de crescimento e de recuo, de frutificação, de colheita, de paragens e de recomeços. A minha vida como a de todos, mesmo que disso não tenham consciência, é uma sucessão de ciclos. Que se vão desenvolvendo desde o nascimento até à morte desta, de novo, até que a morte sobrevenha.

              Mas estes ciclos, de mudança e renovação, não ocorrem só na minha vida, mas também na estirpe de onde provenho, na herança da Nossa Cultura, com os quais a minha vida se conecta, dos meus antepassados até hoje. Dos meus mestres, até vós, dos meus mestres até ti. Toda a minha herança, e os ciclos pelos quais passaram fazem parte de mim. É a antiga sabedoria da Renovação, Destruição, Conservação, contida e expressa nas lendas e ensinamentos de Shiva.

(…)

              Honro a natureza, nas árvores, na floresta, nas ervas, no jardim, nos pássaros, na montanha.

              Sei que, tanto os obstáculos como a evolução, têm muitas facetas. Por isso deixo que o sol me energize; deixo que a água do oceano me purifique; deixo que o vento gelado, pouco a pouco, faça a vida esvair-se de mim, pouco a pouco vá levando o meu sopro; deixo que os bosques e as florestas me renovem, me façam sentir como se fosse de novo uma criança; deixo que Pashupati me proteja na montanha. Deixo que as árvores me falem e que a sua linguagem flua por mim. Deixo que fluxos de energia passem pelas minhas mãos na montanha. Deixo que as grutas, às vezes, tão só, meros buracos numa parede rochosa escarpada, me protejam, deixo que estas experiências me perpassem nas minhas jornadas internas, enquanto busco, sozinho, o caminho para o centro. Dessas jornadas, por vezes, regresso, de outras dimensões, com conhecimento. A introspecção, a intuição, a percepção do subtil, é algo natural e comum aos seres humanos.

              Faço o que posso para transmitir um pouco do que aprendi, daquilo que me foi ensinado, preocupo-me em ensinar qual o caminho através do qual poderão encontrar maior equilíbrio, que terão de buscar na própria vida. Procuro, com o conhecimento obtido, ser um catalisador, que faça desvendar em vós o que cada um tem de melhor.

 Cantanhede, Setembro de 2008

© João Camacho

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