Repetição da cosmogonia

TEXTO PARA A REUNIÃO DE OUTUBRO 2019

Portanto, preeminentemente, o Centro é o âmbito do sagrado, a zona da realidade absoluta. De modo semelhante, todos os demais símbolos da realidade absoluta (árvores da vida e imortalidade, fontes da juventude, etc.) encontram-se também situados em lugares centrais. A estrada que leva para o centro é um “caminho difícil” (duro hana), e isso pode ser verificado em todos os níveis da realidade: difíceis convoluções de um templo (como em Borobudur); peregrinação a lugares sagrados (Meca, Hardwar, Jerusalém); viagens cheias de perigos, realizadas por expedições heróicas, em busca do Velo de Ouro, das Maçãs Douradas, da Erva da Vida; desespero dentro de labirintos; dificuldades daquele que procura pelo caminho em direção a seu ego, ao “centro” do seu ser, e assim por diante. A estrada é árdua, repleta de perigos, porque, na verdade, representa um ritual de passagem do âmbito profano para o sagrado, do efêmero e ilusório para a realidade e a eternidade, da morte para a vida, do homem para a divindade. Chegar ao centro equivale a uma consagração, uma iniciação; a existência profana e ilusória de ontem dá lugar a uma nova, a uma vida que é real, duradoura, eficiente.
Se o acto da Criação realiza a passagem daquilo que não é manifesto para o que é manifesto, ou, falando cosmologicamente, do caos para o Cosmo; se a Criação teve lugar a partir de um centro; se, consequentemente, todas as variedades do ser, desde o inanimado até o vivente, podem alcançar a existência apenas numa área de domínio sagrado — tudo isso ilumina de uma forma maravilhosa para nós o simbolismo das cidades sagradas (centros do mundo), as teorias geomânticas que orientam a fundação de cidades, os conceitos a justificar os rituais que acompanham sua construção. Nós estudamos esses rituais de construção, e as teorias que eles implicam, numa obra anterior, e a ela remetemos o leitor. Aqui pretendemos destacar apenas duas importantes propostas:
1. Toda criação repete o ato cosmogônico pré-eminente, a criação do mundo.
2. Conseqüentemente, qualquer coisa que é fundada tem sua fundação no centro do mundo (desde que, como sabemos, a própria Criação teve lugar a partir de um centro).
Entre os muitos exemplos de que dispomos, vamos escolher apenas um, que, por ser interessante também em outros aspectos, reaparecerá mais tarde, em nossa exposição. Na Índia, antes que uma única pedra seja colocada, “o astrólogo mostra qual é o ponto da fundação que está exatamente acima da cabeça da serpente que sustenta o mundo. O pedreiro produz uma pequena estaca de madeira, a partir de um galho da árvore Khadira, e, com o uso de um coco, crava a estaca no chão, bem nesse lugar particular, de maneira que a estaca fixe a cabeça da serpente naquele ponto, com toda a segurança… Se essa serpente algum dia sacudir a cabeça com muita violência, sacudirá todo o mundo até que ele fique em pedaços”. Uma pedra fundamental é colocada em cima da estaca. Assim, a pedra angular fica posicionada exatamente no “centro do mundo”. Mas, ao mesmo tempo, o ritual de fundação repete o ato cosmogônico, porque, “prender” a cabeça da serpente, cravar uma estaca sobre ela, representa uma imitação do gesto primordial de Soma (Rg- V e da , II, 12, 1) ou de Indra, quando este “atirou a serpente em sua toca” (VI, 17, 9), quando seu raio “cortou sua cabeça” (I, 52, 10). A serpente simboliza o caos, aquilo que é disforme e não manifestado. Indra vem sobre Vrtra (IV, 19, 3) não dividido (aparvan), não despertado (abudhyam), dormindo (abudhyamanam), mergulhado no mais profundo sono (susupanam), estendido (asayanam). O lançamento do raio e a decapitação são equivalentes ao ato da Criação, com a passagem daquilo que não é manifestado para o que é manifestado, do disforme para o que foi formado. Vrtra tinha confiscado as águas e as mantinha no interior das montanhas. Isso significa que Vrtra era o
senhor absoluto — do mesmo modo que Tiamat ou qualquer divindade em forma de serpente — em relação a todo o caos anterior à Criação; ou que a grande serpente, mantendo as águas apenas para si mesma, tinha deixado todo o mundo louco por causa da seca. Independente de esse confisco ter ocorrido antes do ato de Criação, ou se deve ter lugar depois da fundação do mundo, o significado permanece o mesmo: Vrtra “impede” que o mundo seja criado, ou
de durar muito. Como símbolo daquilo que não é manifestado, do que é latente, ou do disforme, Vrtra representa o caos que existia antes da Criação.
Em nossos comentários sobre a lenda do Mestre Manole (cf. nota 35, acima), tentamos explicar os rituais de construção através da imitação do gesto cosmogônico. A teoria implicada nesses rituais resume-se nisto: nada pode durar se não for “animado”, se não receber uma “alma”, por intermédio de um sacrifício; o protótipo do ritual de construção é o sacrifício que teve lugar no momento de fundação do mundo. Na verdade, em certas cosmogonias arcaicas, o mundo recebeu existência por meio do sacrifício de um monstro primordial, simbolizando o caos (Tiamat), ou através do sacrifício de um gigante cósmico (Ymir, Pan-Ku, Purusa). Para garantir a realidade e a durabilidade de uma construção, existe uma repetição do ato divino da construção perfeita: a Criação dos mundos e do homem. Como primeiro passo, a “realidade” do lugar é garantida por intermédio da consagração do terreno, isto é, por sua transformação em um Centro; então, a validade do ato de construção é confirmada pela repetição do sacrifício divino.
Naturalmente, a consagração do Centro ocorre num espaço de qualidade diferente do espaço profano. Por meio do paradoxo do ritual, cada espaço consagrado coincide com o centro do mundo, da mesma forma que a hora de qualquer ritual coincide com o momento mítico do “princípio”. Através da repetição do ato cosmogônico, o momento concreto, no qual a construção tem lugar, é projetado para o tempo mítico, in illo tempore, quando ocorreu a
fundação do mundo. Assim, a realidade e a durabilidade de uma construção ficam garantidas, não apenas pela transformação do espaço profano em espaço transcendental (o Centro), mas também pela transformação do tempo concreto em tempo mítico. Seja qual for o tipo de ritual, como vamos ver adiante, ele se desenvolve não só num espaço consagrado (isto é, num lugar diferente, em essência, do espaço profano), mas também num “tempo sagrado”, “era uma vez” (in illo tempore, ab origine), ou seja, quando o ritual foi celebrado pela primeira vez por um deus, um ancestral, ou um herói.

Eliade, Mircea; O Mito do eterno retorno, Ed. Mercuryo 1991, pg. 23-26

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