Raízes longínquas das artes marciais

TEXTO PARA CÍRCULO DE LEITURA DE JUNHO 2019

Boas tardes,
Sensei Patrão, meu amigo e, neste momento, Tokugawa, solicitou-me que vos fizesse uma apresentação das artes marciais indianas, nestas 24 horas de Kumite. Onde se procurem as raízes longínquas das artes marciais. E assim o farei. Porém, nada poderei acrescentar ao que já sabeis. Pois as praticais.
O Todê, a mão chinesa, ou o Tê, a mão, ou o Okinawa Tê, a mão de Okinawa. Ou até Karate, a mão vazia, nada mais são do que desenvolvimentos das artes que me pediram para apresentar.
As artes da espada? Bom, os samurais, até ao sec. XII usavam uma espada direita, com duas lâminas. Como algumas espadas chinesas. E passaram a usá-la curva, após a invasão, ou a tentativa falhada de invasão do Japão pelos Mongóis. Estes usavam uma túnica de seda por baixo da roupa ou da armadura. E as setas saiam com facilidade em vez de rasgarem ainda mais os tecidos ao serem retiradas. E as lâminas da espada não cortavam os tecidos porque não conseguiam cortar as fibras da seda. Por isso criaram uma lâmina curta e afiada que permitia cortar as fibras da seda e os tecidos humanos que estavam por detrás delas. Mas, também nas artes marciais indianas se usaram estes dois tipos de lâmina e outros. Também por experiências similares.
Os portugueses chegaram à Índia a usarem duas espadas, como Myamoto Musashi. E antes de terem chegado ao Japão. Não usavam escudo, mas duas espadas. Uma mais longa e outra mais curta. E desenvolveram uma técnica que permitia usar a espada de modo diferente. Passando o dedo indicador para a frente da guarda. Mais tarde as espadas passaram a ter umas partes metálicas que permitiam proteger esse dedo. Este desenvolvimento permitia uma estocada na horizontal, com precisão e força suficiente para perfurar. E a posição do dedo permitia-lhes, em seguida puxar a espada com facilidade. Mas não tinham os indianos uma espada que se agarrava com o punho fechado e que se brandia totalmente na horizontal na estocada?
Também as artes da flexibilidade, como o Jujutsu, ou Judô lá as vamos encontrar. Temos aí técnicas de controlo, de chaves às articulações, estrangulamentos, assim como técnicas de projecção.
As artes do tiro com arco? Bom, conto-vos uma história de Arjuna, o maior guerreiro de sempre, na mitologia indiana. E praticante de Yôga. Ficou para a história como um extraordinário guerreiro, virtualmente invencível, fosse em combate individual com as mãos nuas ou com armas e armadura. Ou fosse em campo de batalha integrado num exército. Como Mestre de Yôga, deve ter-se presente o Bhagavad Gítá. Esta escritura que é considerada quase uma bíblia pelo povo hindu e escrita por volta de 400 a. C. é uma conversa entre Krishna, a divindade solar, o deus-menino, e Arjuna. Horas antes do início de uma gigantesca batalha onde morreram centenas de milhares de soldados. Batalha integrada numa guerra que envolveu muitos povos da zona central da Ásia, sobretudo a Índia e a China. Zimmer, um reputado Orientalista diz que as dimensões desta guerra, para a época, uma espécie de guerra mundial. Mas esta conversa, do Bhagavad Gítá, inicia-se com Arjuna a afirmar que teme combater pois reconhece do outro lado gurus, mestres, de grande valor. E como poderia ele, em consciência, matar tais sábios? E no decurso da conversa, Krishna transmite-lhe o ensinamento do Yôga.
Mas queria referir-vos o arco. Conta o Mahá Bhárata que num treino em que Arjuna e os seus irmãos treinavam as artes da guerra sob a orientação de seu Mestre, Drona, este pediu aos restantes discípulos e príncipes que apontassem a flecha, com o arco, para um pássaro que estava no cimo de uma torre o castelo. E foi-lhes perguntando, um a um, o que viam. Reponderam-lhe que viam a torre, as pedras, a argamassa entre elas, as ervas que cresciam nas fendas, o pássaro, as penas do pássaro, as asas, a cauda, as unhas, o mastro onde o pássaro estava poisado, etc… Drona, zangado, a todos foi dando umas pauladas com o bastão que tinha nas mãos. Quando perguntou a Arjuna, a resposta que recebeu foi: “Vejo o olho do pássaro!”. Ou seja, via apenas o local par aonde ia disparar. Via apenas um ponto – o olho do pássaro. E a mente concentrada num só ponto – êkágratá – é o mais elevado nível de concentração.
O que poderei dizer-vos mais? Olharemos para a arte marcial, dita do amor, o Aikido? A ideia de centro (madhyama), é patente na tradição das artes marciais indianas. A ideia de estar em comunhão com o Universo? Também. Tomar consciência do macro e do microcosmos é uma constante do Yôga e das raízes das artes marciais indianas.
Poderei falar-vos de mokuso, ou de zen? Terão certamente noção de que as técnicas de meditação têm no Yôga o nome, sânscrito, de dhyána. O sânscrito é uma língua muito gutural. Mais gutural do que o alemão ou o inglês. Ora, Bôddhidharma, ou Daruma, ou Bôddhisatwa, ou Damô, alguns dos vários nomes com que é conhecido, patriarca do budismo, decidiu ir pregar o budismo para a China, por volta do sec. V da era Cristã. E foi avisado várias vezes que a viagem era longa e perigosa, encontraria desertos e florestas, vales e montanhas, salteadores e animais selvagens. Como vós, nestas 24 horas de Kumite. E aconselharam-no a levar consigo uma escolta armada. E Daruma reflectiu sobre isso. E ponderou que não podia desistir da viagem por medo de ser morto. Que espécie de alto sacerdote ele seria se se revelasse tão apegado à vida e com tanto medo da morte!? Também não poderia ir com uma escolta militar armada até aos dentes que lhe garantisse segurança pois como teria, depois, moral para falar de ahimsa, a não-violência, se se fizesse acompanhar de uma escolta?! Acresce que, dizem as escrituras, na presença de um mestre que esteja em ahimsa a violência cessa. E sentou-se em estado meditativo e surgiu-lhe à mente, através dos canais intuicionais, Shiva, o criador do Yôga, a dançar uma das suas danças, o Tándava. E esta dança é uma antiga arte marcial, gupta vídya, ou seja de conhecimento reservado, contida no Yôga Antigo. E Daruma marchou rumo à China. Quando chegou à corte do Imperador, perguntaram-lhe como teria conseguido fazer tal viagem, sozinho, sem escolta e sobrevivido? E Daruma, respondeu – de mãos vazias. Dir-me-ão alguns de vós – Karate. Mas queria referir-vos as artes da meditação. E começo por este aspecto – mãos vazias. Vazias as mãos, como a mente – paragem das ondas mentais, como o ensina Pátañjali. Daruma foi expulso da corte. E foi radicar-se num mosteiro que veio a ficar célebre – Shaolin. E aí ensinou aos monges desse mosteiro, fracos, doentes e frequentemente agredidos, ensinou-lhes as técnicas de pránáyáma (expansão da bio-energia através de exercícios respiratórios), as de kriyá (técnicas de purificação), ásana (procedimentos orgânicos) , as de combate (Shiva Natarája nyása)e também as de meditação. Ensinou-lhes dhyána. Esta palavra sofreu uma corruptela, pois a língua chinesa é muito mais doce. E passou de dhyána, a dhyán e a ch’an. E foi como ch’an que os monges chineses levaram o budismo e as técnicas de meditação para o Japão a partir do sec. VI. Também aqui, o termo veio a sofrer uma alteração. Para a língua japonesa, ch’an, não soava bem. Então passou a zen.
Ora praticais toda a sorte de artes marciais indianas. O que posso dizer-vos mais?
Ah os nomes.
Como já vos disse, o Yôga é a mais antiga escola filosófica que existe na Índia. Em paralelo com o Sámkhya e com o Tantra. E a arte marcial contida no Yôga tem o nome de Tándava, ou de Samhara-Tándava. Devo dizer-vos que Hara é outro dos nomes de Shiva, o auspicioso, e que o fonema sam, significa “com”, “integrado”. Tándava é a dança da dissolução cósmica. No Yôga Antigo chamamos-lhe Shiva Natarája nyása – identificação com Shiva na sua forma de bailarino real.

Mestre João Camacho

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