Y – Revista Online

O nosso corpo

Tudo o que alcançamos ou somos, passa também pelo corpo. Este é a condição necessária para a nossa evolução. É o centro das nossas percepções e da nossa noção de espaço e tempo. Através do ásana, nós vamos descobrindo esse desconhecido que é o nosso corpo e a sua potência se abre à nossa consciência. Associar-lhe-emos o mudrá e o pránáyáma, como caminhos de aprofundamento da consciência do corpo.

 

O corpo, quando não rejeitado é fonte de questionamento permanente. É um objecto eminentemente filosófico. Tem um impacto sobre a nossa percepção do universo.

 

Este entendimento foi comum a muitas civilizações e filósofos. Encontramos tais preocupações nos tempos modernos, com o Prof. Manuel Sérgio a propor que a genérica designação de educação física seja substituída, com ganho, por motricidade humana. Mas já a encontrávamos na alta antiguidade grega, com Platão ente outros, que não desenvolveremos agora, a expressar as suas preocupações sobre a educação na República. Este filósofo entendia ser necessário trabalhar o corpo juntamente com a mente. Pois seria preciso à equilibrada educação e desenvolvimento das qualidades do cidadão aprimorar, em simultâneo, as capacidades físicas e a as mentais. A supremacia das primeiras leva à agressividade, a supremacia das segundas, desenvolve excesso de sensibilidade. A educação deveria permitir uma interacção entre estas duas vertentes. Ora este desenvolvimento equilibrado é conseguido pelo Yôga.

 

A Oriente o corpo sempre esteve no centro do desenvolvimento do ser humano, individualmente considerado. Fosse, em tempos mais recentes, para o rejeitar como fonte de sofrimento, fosse para o cultuar, como morada excelsa do púrusha [1], a perspectiva tântrica, recuperada na Idade Média, com a afirmação de que o corpo é um templo. Esta perspectiva de conciliação com o corpo, por onde tudo passa, proporciona o desenvolvimento saudável das aptidões físicas, assim como a sensibilidade e a clareza mental.

 

No Yôga outras potencialidades são desenvolvidas, através do corpo. Seja pela prática de ásana [2], de mudrá [3] ou de pránáyáma [4]. O uso das mãos, no mudrá, é disso evidência. Os mudrá contêm significados profundos.

 

O Yôga constitui-se como o caminho para o desenvolvimento integral do ser humano, em todas as suas dimensões. A longa aprendizagem do ásana leva o aluno/discípulo à descoberta do corpo.

 

A flexibilidade, a elasticidade, a descontracção, a resistência, a capacidade de adaptação, desenvolvem-se no corpo físico a par com o desenvolvimento, no corpo mental, da serenidade, elasticidade, rapidez de raciocínio, concentração, força de vontade, etc.

 

O corpo energético que funciona como ponte entre o corpo físico e os corpos emocional, mental e proporciona o alcançar do intuicional, é fortemente trabalhado pelas técnicas do Yôga. Pelo que o trabalho sobre o corpo físico não é um fim em si, mas uma forma de ir mais longe, de alcançar outras dimensões e outros estados mentais, que não se alcançariam a não ser através da intervenção do corpo. O ásana pretende proporcionar ao sádhaka o fortalecimento da estrutura biológica, fortalecendo as qualidades endócrinas, mentais, psicológicas, vitalizando o corpo e proporcionando saúde e resistência a doenças. O que permitirá suportar fluxo evolutivo proposto pelo Yôga.

 

Ter em vista que a nossa acção sobre o corpo, é tão só uma forma de mobilizar, potenciar, activar o corpo energético, de modo a que a progressão não tenha limites, mesmo em idade avançada, constitui uma grande diferença em relação a outras propostas que visam, com o treino, predominantemente, o corpo físico. Poder-se-á, desta forma, alcançar uma progressão geométrica, com resultados quase inesgotáveis e gratificantes.

 

Ora a acção sobre o corpo é indispensável, pois somos, também, o corpo que temos. O modelo mental que se deve cultivar é o de um corpo flexível, como se os próprios ossos fossem flexíveis e leves, como se fôssemos plumas que se movem sentindo a resistência do ar. Como se este nos amparasse e nos permitisse voar como aos pássaros. Com a concentração e respiração estas sensações são perceptíveis a um praticante de nível médio.

 

A tomada de consciência do corpo permite tornar conscientes as sensações pelas quais o corpo passa. Com o tempo e com a tomada de consciência o corpo modifica-se. O aperfeiçoar do corpo altera os limites da capacidade de perceber as sensações corporais, aperfeiçoa a capacidade de visualização e alarga os horizontes do movimento e das suas consequências, Os ásana utilizados passam a ter uma nova dimensão, ainda que sejam os mesmos e, concomitantemente, tornam-se mais eficazes. Tal corpo adquire mais características de um fluído do que de um sólido. Tal corpo fica mais perto da leveza do ar, do que da densidade da terra. Fica mais puro, como o diamante.

 

Pela ausência de contracção, a energia flui, pois onde há contracção não há passagem de energia. E vai-se criando um modo favorável ao expressar aquilo que de criativo há na mente de cada um. Também como forma, através do artístico, de acesso ao intuicional.

 

Tudo isto passa pela execução de ásana, a disciplina física do Yôga. E com esta disciplina constrói-se um corpo novo, no qual o ser humano vai percebendo o quanto já transcendeu a condição humana. E esta disciplina, para o ser, tem de reunir, em simultâneo as seguintes condições:

 

 

 

Características do ásana
Ásana Técnica corporal Estável
Confortável
Estética
Respiração coordenada Consciente
Profunda
Ritmada
Atitude interior Localização interior
Mentalização (verbalização positiva, cor e imagens)
Bháva

 

 

Ásana é a técnica mais visível do Yôga. Pátañjali define como sthira sukham ásanam (YS, II-46), ou seja “posição firme e agradável”.

 

Claro que para lá chegar o caminho é longo e exige resistência, pois só se considera firme e agradável a posição que se consegue manter por 3 horas. Pois o objectivo não são os bhôgásana, isto é, os ásana de prazer, mas sim a criação do corpo adamantino.

 

A atitude interior deve ser cultivada. Deve-se manter a atenção no que se vai passando nos diferentes corpos, nos diferentes veículos, máyákôsha, através dos quais o Ser (purúsha) se manifesta:

 

– annamáyákôsha (o corpo ilusório feito de alimento: o corpo molecular, denso)
– pránamáyákôsha (o corpo ilusório feito de prána [bioenergia]; o corpo energético).
– kamamáyákôsha (o corpo ilusório feito de emoções; o corpo emocional; o corpo “astral”)
– manômáyákôsha o corpo ilusório feito de pensamentos concretos; o corpo mental concreto)
– vijñánamáyákôsha (o corpo ilusório feito de pensamentos abstractos; o corpo mental abstracto)
– ánandamáyákôsha (o corpo ilusório feito de felicidade; o corpo intuicional)

 

Ásana deve ser praticado como uma forma de aperfeiçoar o exercitar a consciência testemunho, túriya [5] ou sakshí. Esta consciência é a do que contempla, sem se envolver com o que observa. No caso de ásana, observa a acção, a execução, a reacção dos restantes corpos a esta execução. Percebe o fluxo de energia, de emoções, assim como o fluxo mental durante a execução. Mantém-se atenta, sem interferir e amplia a consciência que o sádhaka tem de si, através do exercício, através da prática corporal. É omnipresente no corpo, nas energias que fluem, nas emoções que surgem, nos pensamentos que se desenvolvem. Observa sem interferir e sem julgar. Tal facto amplia mais e mais a consciência, aproximando o sádhaka, mais e mais, do samádhi. Atento para conhecer, para ampliar a consciência de si mesmo. E é nesse ampliar diário de consciência que se conquista o samádhi. Um dos aspectos maiores do valor da prática de ásana é esta possibilidade de auto-observação consciente.

 

Eliade ensina que êkagráta é o mais elevado nível de concentração, significando ‘concentração da mente num só ponto’. Refere que todas as práticas psico-fisiológicas do Yôga pretendem conduzir o sádhaka a este estado de concentração. E acerca do ásana diz:

 

“A nível do corpo o âsana é um ekâgratâ, uma concentração num único ponto: o corpo está «concentrado» numa única posição.” [6]

 

Para este autor, durante o ásana, a mente concentra-se num só ponto – o corpo. Vai ao encontro do ensinamento de que onde estiver a consciência está o sangue, está o prána, está a mente. E está, acima de tudo, a capacidade de aprofundar a vivência da execução do ásana.

 

A inclusão do pránáyáma, auxilia no aprofundar da vivência do corpo durante o ásana. Logo aprofunda a vivência do nosso ser. Impor ritmo, como se faz no pránáyáma, permite que a observação da consciência testemunho se intensifique, pois o ritmo permite que se vá além da respiração. Pois o ritmo impõe um padrão e cada ciclo desse padrão possibilita aprofundar a introspecção, tornando mais intensa a percepção do corpo e do que se desenvolve neste. Permite descobrir e intensificar a percepção do que ocorre a cada inspiração e a cada expiração e a cada retenção. A consciência vai-se ampliando. Pode utilizar-se na contagem do ritmo um bíja, como o pránava. E o corpo vai mais longe, a permanência é mais intensa.

 

Em conclusão dir-se-á, juntamente com o Padre Stilwell [7], Prof de Teologia da Universidade Católica que:

 

São raros os momentos em que como corpo e mente unidos nos abrimos e nos experimentamos como ponto nodal de consciência, e mais rara ainda a sua apreciação devida.

 

 

[1] Como Shrí DeRose ensina: «homem. Na cosmogonia sámkhya, o Ser, o princípio masculino imutável, que a metafísica do Tantra identiica com Shiva», in Yôga Sútra de Pátañjali, p. 113.

[2] Posição física ou psico-física.

[3] Gestos reflexológicos, magnético e simbólicos, feitos com as mãos.

[4] Expansão da bioenergia a través de exercícios respiratórios.

[5] “O quarto [estado de consciência] (turíya) possui uma dimensão distinta, na qual o sádhaka se encontra iluminado (…). Alguns o apelidam de Eterno Agora, além

[6] Mircéa Eliade, Patañjali e o Yoga, Relógio D’Água Editores, 2000, Lisboa, pag. 72

[7] Peter Stilwell apud Stobbaerts, A Arte do Movimento e a Meditação, p. 12.

O Dragão e o Um

Epístolas aos meus discípulos:

Meus queridos, hoje irei falar-vos um pouco do dragão e do um. Falar-vos-ei nessa medida de numerologia.

Neste momento, o A. já estará de cabelos em pé a pensar: “mas que diabo tal coisa tem a ver com Yôga?”. O J. pensará: “Numerologia? Mas agora ele enveredou pela minha área? E quais números? Binários? Vamos lá a ver, pois isto cheira-me a conversa estranha e eu não papo grupos.” Já a Sílvia, estará neste momento derretida, quase em samádhi, com a mente paralisada em apenas uma frase: “Ah! Os números…”

À parte a brincadeira, os números têm tudo a ver com o Yôga. Desde logo na sua fundamentação filosófica, o sámkhya, que significa nada enumeração, descrição numérica. E explica a cosmogonia através da enumeração de 24 princípios. Para além da estrutura numérica, tanto do Pátañjala Rája Yôga, como do SwáSthya Yôga, em oito partes ou módulos. Mas não me alongarei nesses aspectos, por vós por demais conhecidos.

Como sabem, vou estabelecendo elos de ligação individuais com cada um de vós, para além dos elos comuns que a todos nos juntam. E, um dia destes, numa dessas trocas de informação e de vivências bilaterais, a nossa querida senescal dizia-me algo como: “por vezes passamos pelas coisas, sem as vermos.” E é bem verdade. A C., ficou, noutra ocasião, espantada por lhe ter afirmado que, muitas vezes, o que está melhor escondido é o que está à vista de toda a gente. E assim é.

De cada vez que leio o pequeno e velhinho Prontuário do Yôga Antigo, descubro coisas novas, aprendo coisas novas. No entanto, já o li tantas vezes. E o que vou descobrindo sempre lá esteve, visível, não escondido. Eu é que não conseguia ver. O mesmo acerca da numerologia e do Yôga. E se outra fonte não existisse, teríamos no nosso Mestre, no Yôga. Mitos e Verdades, na p. 33, a referência à numerologia, com o tom coloquial que ele gosta de utilizar, assim como quem não quer a coisa, do seguinte modo: “para quem gosta de malabarismos numerológicos…”. Acrescenta uma informação muito importante, atentem nela: “o nove, número da Iniciação”. Em seu socorro, Shrí DeRose proclama a autoridade dos Shástra, citando o próprio Bhagavad Gitá: “segundo aqueles que conhecem a ciência dos cálculos.”

A propósito dos números binários deixem-me dizer-lhes que nalgumas tradições os números pares e, em especial, o número dois (2) eram vistos com uma conotação maléfica. Pois o dois implica a oposição, a divisão. E reparem, rajas[i] e tamas[ii], contradizem-se, e só com satttwa[iii] se ultrapassam os contrários e se consegue a harmonia. Dois é imperfeito, três é perfeito. Há uns anos atrás, participei, como conferencista, numa conferência dedicada ao simbolismo nas artes orientais, organizada e promovida pelo Centro de Artes Orientais. Recordo-me de Sensei Patrão, na sua conferência, chamar a atenção para os números binários, apelidando-os de duais. São dipolo, “di – pólo”, “dia – bolo”, “diablo”, “diabo”. É uma demonstração curiosa.

Se o 9 (nove) é o número da iniciação, o 10 é o número da criação. 1 + 0 = 1. Pitágoras assentou a sua filosofia e os ensinamentos esotéricos da sua escola filosófica nos números. Pitágoras[iv] disse, sobre os números, duas coisas muito importantes e de grande transcendência:

1 – Todas as coisas têm número.

2 – Os números são coisas.

Com a primeira afirmação, Pitágoras segue os ensinamentos do sámkhya, mas, ao mesmo tempo, antecipa em mais de 2000 anos a ciência moderna, que a tudo quantifica para conhecer.

Já se afasta da moderna ciência ao afirmar que os números são coisas. E demonstra-o. Diz que a soma dos primeiros 4 algarismos é sempre igual a dez, para além da nossa vontade: 1 + 2 + 3 + 4 = 10. Ou seja, resistem à nossa vontade, pois são coisas com existência própria para além da nossa mente. O dez, a década de Pitágoras. Não vou desenvolver esse aspecto, por agora.

Na tradição hindu, o Dragão da Sabedoria, o Um, como sabem, em sânscrito êka, ou saka. O Dragão é igualmente a serpente. É o dragão, ou a serpente que, na tradição bíblica, tentou Eva. O Dragão é um antigo símbolo para a luz primordial, representando a sabedoria do caos. Na antiga filosofia oriental, o Bem e o Mal, como potências com autonomia própria, não existem na origem da criação. São apenas dois aspectos da luz primordial. Como dizia a um de vós, já não sei a quem, a luz ilumina, mas cria sombras. Estas precisam daquela para viver. A luz, por sua vez, também pode cegar. O Bem e o Mal são conceitos morais, que se referem à condensação, no plano material destas energias de sinal oposto. Ora, o Dragão, ou serpente, representa a Sabedoria, a regeneração da vida, a recriação. Daí que Sêsha, ou Anata, no fundo a serpente ou o Dragão infinito, representam a continuidade do mundo, pois está com a boca no rabo, desenhando com o corpo um circulo, que faz lembrar a serpente nórdica, Ragnarok, que no fim dos tempos acordará e porá fim ao mundo. Mas, dizíamos, Sêsha é uma abstracção alegórica, que simboliza o tempo infinito. Sendo o Dragão o Um, comunga da capacidade de criação do cosmos.

Noutro dia voltarei a este assunto e falar-vos-ei do um pouco mais sobre números.

 

SwáSthya

 

(C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya.

Discípulo de Shrí DeRose.

«Sou irmão de dragões e companheiro de coruja.»

 

 

[i] Movimento, actividade, dinamismo.

[ii] Inércia.

[iii] Equlíbrio, leveza, bondade.

[iv] Pitágoras (571 a.n.E. ou 570 a.n.E. a 497 a.n.E. ou 496 a.n.E.), filósofo grego considerado um dos maiores matemáticos da antiguidade.

Nyása

                           Nyása significa a identificação entre o sujeito cognoscente eo objecto cognoscível, o que implica a supressão do acto de conhecer. De modo geral significa a identificação do sádhaka com seres ou objectos, à sua escolha. Nyása é uma técnica da tradição tântrica.

                          Insistindo, os epistemologistas identificam três momentos quando abordam a teoria do conhecimento: há um sujeito cognoscente – o que quer conhecer; há um objecto cognoscível – aquele que vai ser conhecido ou que é passível de o ser; a uni-los ocorrerá o acto de conhecer, de apreensão do objecto. O que o nyása procura é a abolição destes três actos e a sua redução a um só. O sujeito cognoscente e o objecto cognoscível passarão a ser um só.

                         Ora e ainda por referência ao pújá, esta técnica é muito mais intensa e eficaz quando há empatia daquele que faz o  pújá com o instrutor ou mestre a quem o dirige. Tal identificação, nyása, facilita o caminho para o samádhi.

                        Com a prática de nyása o sádhaka consegue conectar-se com o objecto para o qual direccionou a consciência, chegando à sua essência. Observador e observado, fundem-se como se fossem um só. Pátañjali refere este aspecto, aproximando o  nyása dos estados meditativos:

I-41

«Naquele que tiver controlado totalmente a instabilidade, ocorre uma identificação entre o

observador, o objecto observado e o acto da observação, assim como o cristal se identifica com a cor

do objecto próximo.»

                         Porém, para que a técnica de nyása seja conseguida, há que passar pela emoção, pelo afecto. É o corpo emocional (kamamáyákôsha) que mais participa nesta técnica. Terá de haver, no mínimo, uma relação de simpatia entre o observador e o objecto observado. É necessário, também, que a concentração do observador sobre o objecto observado seja frequente.

                       Este fenómeno ocorre tantas vezes, mesmo sem nos apercebermos. Ocorre entre familiares que vivem junto durante décadas, entre amigos que muito se admiram e se sentem envolvidos, entre membros de uma equipa. Por isso, também, devemos seleccionar os nossos amigos e aqueles com quem convivemos. Pois podemos, sempre, receber influências que não desejamos. Por isso é importante seleccionarmos as egrégoras às quais nos conectamos.

                          Nyása, como leram anteriormente, pode ser efectuado com pessoas vivas, mortas, com objectos inanimados, com figuras mitológicas, com arquétipos, com egrégoras, etc…

                           O nyása pode e deve ser efectuado com o mestre. A convivência com este, o envolvimento emocional, o afecto desenvolvido pelo mestre proporcionam um nyása intenso, que gerará compreensão e lucidez ao discípulo, catapultando-o mais rápido para o samádhi. O mestre, como ser humano que é, tem defeitos e qualidades na sua personalidade. Mas na média de tais aspectos tem a possibilidade de inspirar o discípulo a ir mais longe. E ao fazer nyása no mestre e nas suas qualidades o discípulo tem a possibilidade de gradualmente incorporar essas características. Tal prática permitirá também ao sádhaka persistir com disciplina e diligência (abhyása), ao longo dos anos, na fidelidade a um só método e na lealdade ao respectivo mestre.

                        Tanto o nyása como o dhyána necessitam de prátyáhara e de dháraná: abstracção dos sentidos físicos e concentração da mente no objecto que se pretende conhecer.

                    Ouçamos o que diz sobre pratyáhára, mais uma vez, o grande mestre que foi Pátañjali:

II-54

«Quando os sentidos já não estão em contacto com os seus objectos e assumem a própria natureza de

chitta, isso é prátyáhára.»

II-55

«Com isso obtém-se o total controlo dos sentidos.»

                     Sobre dháraná, Patañjali, o sábio das mil ciências, ensina:

III-1

«Dháraná (concentração) consiste em centrar a consciência (chitta) em uma área delimitada.»

[a propósito, Eliade, traduz ‘área delimitada’, por ‘num só ponto’ – êkagrata].

                      Sobre o dhyána, aprende-se, com o mesmo mestre:

III-2

«Dhyána (meditação) consiste em manter a continuidade da atenção sobre aquela área específica da

consciência.»

                         Num outro artigo, que publicarei, versando esta mesma temática, citarei alguns autores que consideram nyása como uma técnica de meditação de nível superior (vide, por todos, Eliade). Se se atentar que nyása consiste na identificação do sujeito cognoscente com o objecto cognoscível, lendo-se o modo como Pátañjali define o samádhi, somos levados a concordar:

III-3

«Samádhi (hiperconsciência) é quando chitta assume a natureza do objecto sobre o qual se medita,

esvaziando-se da sua própria natureza.»

                     Todavia, o samádhi remete-nos para uma vivência intuicional. Já o nyása, ocorre ao nível do psiquismo, logo, do ego. Ocorre ao nível do kama manas, ao nível emocional e mental.

                      O nyása pode e deve ser feito com o respectivo mestre, usando como técnica o seu rosto, ou o seu nome, e sendo o respectivo mestre, haverá, porventura, empatia. Pois foi o discípulo que o escolheu e não o contrário. Mas, dizíamos, o nyása com o mestre, como ensina Shrí DeRose,

“funcionará como fio de conexão com as origens da linhagem representada por ele. Os mesmos resultados que consegui com o meu Mestre, hoje os meus discípulos alcançam através de mim, e assim sucessivamente.»

                       Através do nyása com o respectivo mestre, pode o sádhaka absorver sentimentos, atitudes e hábitos daquele que observa e que quer cultivar. O nyása com o respectivo mestre, que é alguém mais evoluído que o discípulo, tem a potencialidade de se transformar em dhyána e acelerar a evolução do praticante até ao samádhi. Aquele que faz nyása com o respectivo mestre, seguramente, conseguirá mais compreensão e entendimento, do caminho que lhe é proposto e acerca do próprio mestre e dos seus ensinamentos, compreensão que lhe brotará do coração, ajudando-o no seu caminho até ao samádhi.

                    Quanto ao samádhi, consiste numa experiência que é difícil de expor, de explanar. Shrí DeRose, por vezes, referia-se ao samádhi do seguinte modo: «O samádhi é um clube privado, e só os que lá chegam, sabem quem lá está.» Os que o vivenciaram, conhecem a experiência e não é necessário explicá-la. aos outros é quase impossível expô-lo. Também por esta razão, “os que sabem não falam, os que falam não sabem.

                   O samádhi divide-se sabíja e em nirbíja com semente e sem semente. No sabíja samádhi o sádhaka conservará a sua personalidade, logo manifestará as suas virtudes e os seus defeitos. Apenas a sua perspectiva em relação ao real, em relação ao mundo fenoménico, muda. Vê-se e aos outros, duma perspectiva muito mais ampla, consciente, muitas vezes, a um tempo, das causas e dos efeitos, de um modo que as pessoas comuns, que as pessoas que ainda não o vivenciaram não conseguem ter noção ou imaginar 1. Já no nirbíja as mudanças que ocorrem são de tal monta, que nem é possível referir.

                      Os que chegam ao samádhi, são pessoas especiais, que têm força, vontade, aptidão, que juntam a estas qualidades a coragem de voarem. Para esses, que têm essa coragem, a nossa proposta filosófica é, seguramente, o melhor caminho.

                     Mas deter-me-ei. Deixo-vos apenas algumas sugestões e exemplos de práticas de nyása:

                              – Se quereis desenvolver equilíbrio, por exemplo em vayútkásana e outros similares, deveis fazer nyása sobre os animais ungulados, v. g., as cabras da montanha. Animais que caminham sobre dois dedos mas com um equilíbrio incomparável.

                             – Se quereis desenvolver não só equilíbrio, mas também estabilidade, podeis fazer nyásacom uma pedra, grande, estável e imponente, que preencha o nosso coração de emoção. É a forma de adquirir tal firmeza, tal imobilidade.

                              – Se precisais de voar, de vos catapultar para os píncaros, para o cimo dos céus, numa coreografia que implica descidas aos infernos em voo picado, seguida da ascensão aos céus pelo esforço e mérito próprio daquele que conhece o caminho de regresso, do que se libertou, como só um iniciado é capaz, na qual deveis ter total liberdade de movimentos, onde a coreografia vos exige que sejais a um tempo fortes, rápidos, ferozes, leves e esvoaçantes, como uma corografia que um dia concebi para a nossa querida senescal, então o nyása com a águia, a senhora dos céus e com o seu voo, será indicado.

                            – Mas se quereis desenvolver tais qualidades, mas com algum mistério, que melhor do que o voo do falcão? Voará este para caçar, ou voará este porque ama a liberdade dos céus? E esta qualidade, a de manter mistério, poderá ser desenvolvida com nyása no falcão.

SwáSthya.

 (C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya

Discípulo do Mestre DeRose

«Sou irmão de dragões e companheiro de corujas.»

Glosas (des)conexas?

Meus queridos

 

Deixo-vos algumas glosas. Também elas resultantes de conversas unilaterais com alguns de vós. Se (des)conexas, logo se verá.

 

1 – No bhúta shuddhi procura-se também a purificação das emoções e esta, em concreto, recebe o nome de káma shuddhi. O que se dedica ao káma shuddhi tem, habitualmente, a capacidade de limpar os ambientes que frequenta, possuindo energia vital suficiente para interferir, de modo positivo, na vida daqueles com que contacta.

 

2 – Ainda a propósito de purificação, há escolas, que propõem, para que o adepto se purifique, que se comece com a contaminação. Primeiro deveríamos contaminar até a um nível incompatível com a vida humana e então purificar. Esse é, v. g., o caminho iniciático dos xamãs. São intoxicados com, v. g., nicotina, em quantidades suficientes para matar um boi. Enquanto lutam, entre a vida e a morte, ainda vão sendo lavados, regularmente, com um veneno de absorção através da pele. Se sobreviverem, são-lhes administradas substâncias alucinogenas, afim de lhes provocarem tais alucinações que os enlouqueçam. Se conseguirem curar-se do corpo e da alma, são xamãs. Não conseguindo… bom nesse caso a tribo dá graças aos deuses por os terem livrado de um mau xamã. Na nossa escola não seguimos esse caminho. Preferimos seguir o preceito de que mais importante do que limpar é não sujar. Então diminuímos a quantidade de substâncias tóxicas que ingerimos ou que produzimos com as emoções viscosas.

 

3 – No pújá, que é comum a todas as tradições orientais, a repetição deste acto, vai criando no coração do aluno carinho e consideração pelo instrutor e pela Escola e pelos que a representam. Por isso, se os alunos de algum instrutor não têm esse carinho pelo mestre deste, é porque o pújá não costuma ser feito, ou é feito de modo deficiente.

 

4 – A reverência do aluno pelo instrutor, cria laços entre estes. Laços que perduram para lá da sala de aula, de modo a que nunca nenhum dos dois estará sozinho, doravante. Estejam em qualquer tempo ou local, estarão, sempre, amparados um pelo outro. E essa ligação é também com a egrégora, que protege todos os seus membros, como se fosse um anjo da guarda, perante os obstáculos que sempre surgem na vida.

 

5 – Claro que o pújá correlaciona-se com actos como os do guru sêva[i] e o karma Yôga. Não estará a fazer um bom bhavana pújá[ii] o aluno e o instrutor que deixa a sala de prática com coisas desarrumadas, ou partidas, ou por pintar, ou por limpar e nada faz. Assim como os instrutores que não auxiliam o seu mestre nessas tarefas, ou não tomam a iniciativa de as executar, não fazem um bom bhavana pújá, nem um bom karma Yôga, quanto ao guru sêva, nem é necessário comentar. Há que estar atento aos detalhes.

 

6 – Aconselho a que leiam O Fenómeno Humano de Theilhard de Chardin. Para os católicos, lembro que este autor era teólogo, filósofo e católico. E era um homem ligado à Igreja Católica.

 

7 – O discípulo deve ser leal e fiel. E para que um discípulo o seja deverá, enquanto aluno, ser educado a sê-lo. Deverá o seu instrutor educá-lo. Pois o aluno deve demonstrar ter lealdade e fidelidade. Porém, quem quer pessoas leais ao seu lado deve educá-las a sê-lo. E não demonstram grande lealdade os alunos que nunca participam em nenhuma, ou quase nenhuma das actividades que se programam. É da responsabilidade do instrutor educá-los. Educá-los no guru sêva, educá-los com o seu exemplo e com o serviço que presta ao seu próprio mestre, educá-los com o exemplo vivo. O alunos devem ser educados e treinados na arte de prestar serviço ao Mestre, à Escola. E uma das formas de prestar esse serviço é estar presente nas iniciativas que se programam, fortalecendo com a sua adesão, o evento e fortalecendo a egrégora, oferecendo-se para participar colaborando no que lhe for possível, ou seja, concretizando o apoio que diz manifestar.

 

8 – Considerando que a educação começa no berço, cabe a cada instrutor educar e treinar os seus alunos, desde o início do aprendizado, moldando o carácter do futuro discípulo. Mais tarde, passará ao mestre do instrutor que lhe transmitirá o conhecimento, que lhe dará a iniciação, através do método de parampará. E, finalmente, um dia, quando o mestre entender que é chegado o momento, este transmitirá a esse, agora, discípulo, o favor, a graça, a bênção, o toque, do Mestre – o kripá. É o toque que transmite a força da tradição ancestral ao discípulo. E, regra geral, apenas aos discípulos mais leais, não a todos. E podem receber a graça do mestre, mesmo que ainda não tenham ultrapassado totalmente as fases anteriores. Na verdade, o discípulo, aquele que o é mesmo, continua a cumprir com orgulho, com satisfação, com alegria, com auto-realização, as fases anteriores – continua a servir o mestre como sempre o fez e continuará a fazê-lo, não regateando esforços, não esperando que um outro faça por si. E continuará sempre a ouvir o que o mestre tiver ou quiser ensinar. Fá-lo-á mesmo quando o Mestre o submete à provação. Fá-lo-á, mesmo que o mestre o admoeste. Fá-lo-á perante as contrariedades, os ralhos do mestre, as provações a que for submetido. E continuará, pois só os de têmpera forte continuam até ao fim. Não desistem e superam-se, enfrentam os obstáculos, por vezes colocados pelo mestre, e desenvolvem as aptidões necessárias para superá-los. E, quando caem, erguem-se e seguem. Agora transmutados, mais fortes.

 

9 – Uma pessoa leal, é alguém em quem se pode confiar. É alguém cuja dignidade e nobreza o obrigam a cumprir a palavra dada e os compromissos livremente assumidos. Uma pessoa fiel é a que respeita as tradições e prossegue os seus propósitos, mesmo que no caminho se levantem obstáculos. Continuará a cuidar do que foi colocado à sua guarda. Transmitirá a tradição do SwáSthya Yôga sem a adulterar, sem modificar o que lhe foi ensinado. Mesmo que saia da escola, essa pessoa não inventará outra escola de Yôga.

 

10 – a própria prática pújá gera fidelidade e lealdade. O mestre sabe mais do que o discípulo. O pújá cria as condições adequadas a que do mestre jorre energia e conhecimento para o discípulo que lhe faz pújá. Este conhecimento pode ser inesgotável e directamente proporcional à receptividade e gratidão do discípulo. O pújá também gera uma atitude adequada ao desenvolvimento da receptividade ao ensinamento e amplia as fronteiras da experiência sensorial e extra-sensorial do discípulo, a ponto de este aprender, com a presença do mestre, com o contacto com o mestre, ainda que este, objectivamente, nada esteja a ensinar. E a evolução depende do receptor, mais do que do mestre. Nenhum mestre consegue ensinar aquele que não quer aprender, aquele que questiona e contradiz o mestre, nas indicações que este lhe dá. As provações existem e quando o discípulo mais sente as provações, quando é posto à prova, é porque está a ser testado no seu carácter e está a ser lapidada a sua personalidade. A presença do mestre é mais do que nunca necessária nesses momentos cruciais. O mestre é o dissipador (ru) das trevas (gu), ou seja, é o sol, é a luz que elucida, que clareia a existência.

 

11 – É necessário, para ultrapassar os obstáculos, que o discípulo confie no seu mestre. Mesmo quando não entende totalmente, ou mesmo de todo, as razões do caminho apontado ou delineado pelo mestre. O que confia, acaba por compreender. Quanto maior for a empatia do discípulo para com o mestre, menor será o impacto das provações iniciáticas. Concentrar-se no mestre, na sua imagem, como guia, que brilha, que ilumina, é indispensável para ultrapassar obstáculos, para conseguir a auto-superação.

 

12 – Alguns instrutores não educam os seus alunos a visitarem o mestre, a procurá-lo, a vivenciarem o Yôga com este e na presença deste, participando nos eventos que se organizam. E, no entanto, o contacto com o mestre é indispensável. Obviamente que o pújá intenso e vindo do coração cria laços fortíssimos com o mestre. Mas é importante conviver directamente com ele. Para aqueles que isto compreendem, e vivem longe, visitar o mestre é sempre um momento de grande emoção e de grande carinho, um momento único,. Por vezes, aqueles que estão próximos do mestre, que habitualmente estão com ele, tendem a considerar tal coisa como banal e a descuidarem da importância de tal proximidade, passando muitas vezes a desconsiderá-lo, não participando nas iniciativa, nos cursos, nas aulas, nas conferências, nas reuniões. Enfim, consequência da confiança que o sacristão vai adquirindo com os santos…

 

SwáSthya

 

(C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya

Discípulo do Mestre DeRose

 

«Sou irmão de dragões e companheiro de corujas.»

 

 

[i] Serviço e entrega ao Mestre. Uma das fases selectivas do discipulado. Mas também uma forma de estar na vida, os guru sêvin, pessoas especiais, que auxiliam a humanidade de modo desinteressado e que fazem parte do círculo interno.

[ii] Saudação ao local onde se faz a prática, o Espaço Cultural, o Ashram.

A Sombra

Epístolas aos meus discípulos:

 

Meus queridos

 

Deixo-vos algumas notas sobre a sombra e a necessidade da sua integração.

 

arquétipos. São como projectos, compostos de intenção e de energia. Há vários e já nascemos com muitos deles. Por exemplo, as crianças, quando nascem, e até certa idade, reagem melhor a uma voz feminina do que a uma voz masculina. Isto tem a ver com um arquétipo. Os arquétipos permitem representar uma sabedoria intuitiva secreta que escapa à representação simbólica directa. Por essa razão Jung descobriu uma grande similitude entre os símbolos, lendas e rituais das religiões orientais e das religiões ocidentais, entre a alquimia ocidental e a alquimia oriental. Jung descobriu que os arquétipos desempenham um importante papel nos processos psíquicos que influenciam cada um de nós. Profundamente enterrado na psique humana encontrava-se o inconsciente colectivo (chamamos-lhe akasha), os arquétipos de milhares de anos de experiência humana. Estes arquétipos podem ser usados para explorar os limites entre o consciente e o inconsciente. O uso de arquétipos como objecto de meditação, funcionam como portas de entrada no inconsciente, sem se esperar que estes surjam do inconsciente.

 

Um de vós, um dia destes, comentava comigo que, por vezes, consegue observar-se, como se se visse de fora, como se fosse um observador externo.

 

O caminho para a consciência não é linear. É feito de procuras constantes do centro. Aliás a ideia do labirinto, como fonte de procura do seu centro, é uma imagem fantástica, pois uma e outra vez procuramos o nosso centro. Uma e outra vez procuramos o centro do labirinto, em busca do nosso Eu mais profundo. São as provações do labirinto. E, uma e outra vez nos perdemos nos caminho, nos perdemos do nosso centro e nos desequilibramos. Nessa busca, nessa procura, confrontamo-nos com a nossa sombra. A sombra é um dos arquétipos universais reconhecidos tanto pelas tradições ocidentais como pelas tradições orientais. Todos os Grandes Iniciados se confrontaram, com a sua sombra. Todo o guerreiro da luz um dia já se perdeu e se deixou afundar na sombra, falhando, descobrindo o seu lado negro. Mas ainda assim continuou o seu combate, a sua luta inquebrantável, rumo à consciência.

 

A sombra é uma energia que se organiza de forma intensa, poderosa, mas destruidora e viscosa. Tem vontade própria que, entregue a si própria, pode levar, no limite, até à destruição dos que não têm capacidade de se defender. Aceitar a sombra, aceitar que ela existe e em nós, em cada um de nós, exige do iniciado um esforço moral e de consciência considerável, dado que passamos a maior parte do tempo da nossa vida a reprimi-la.

 

A sombra é, de imediato, o que se opõe à luz, embora seja esta a criá-la, pois sem luz, a sombra não existe. Por outro lado a sombra constitui uma imagem das coisas fugidias e mutáveis. A sombra é também os traços de carácter inferiores e outras tendências incompatíveis com o nível ontológico a que o iniciado se catapultou pelo esforço de ascese. A sombra não é, por natureza, maléfica. Mas pode tornar-se, se for infinitamente recalcada no inconsciente. O iniciado só tem a ganhar em passá-la para a luz da consciência. Muitas vezes teme-se o aparecimento da sombra, pois é doloroso, e há sempre o medo de termos que assumir as nossas sombras, para as dominar, ou para as tornar benéficas. A coexistência dos contrários, no mesmo ser, é sempre difícil de suportar, contudo a complexidade de tal situação é muito mais enriquecedora. A complexidade é tão intensa que, por vezes, temos de sair de nós e saltar como um tigre sobre nós próprios para nos arrastarmos de novo para a luz, como disse a um de vós.

 

Eliade, A Provação do Labirinto, refere, como só ele consegue fazê-lo, esse perigo da procura interna e do confronto com a sombra. E o que diz é tão intenso que “assusta” quem ainda não se confrontou com o seu lado negro. E Eliade só aborda o perigo a que se sujeitam aqueles que observam os fenómenos do lado de fora. Muito mais intenso para os que mergulham nessa experiência. O C. no texto que escreveu para o SwáSthya Yôga Sádhana V, referiu que estes encontros servem para um mergulho no Yôga. E essa afirmação pode ser muito mais intensa do que, talvez, alguns de vós o tenham percebido.

 

Diz Eliade:

 

«O espírito está em perigo desde o momento em que tenta penetrar o sentido profundo de uma das criações mitológicas ou religiosas, as quais também são expressões existenciais do homem no mundo. Do homem, de um caçador primitivo, de um camponês da Ásia Oriental, de um pescador da Oceânia. No esforço hermenêutico do historiador das religiões e do fenomenólogo para se compreender por dentro a situação deste homem, existe um risco: não só de se dispersar, mas também de ficar fascinado pela magia de xamã, pelos poderes de um yôgi, pela exaltação de um membro de uma sociedade orgiástica. Não digo que fiquemos tentados a tornarmo-nos um yôgi ou um xamã, um guerreiro ou um exaltado. Mas sentimo-nos em situações existenciais estranhas ao ocidental e que lhe são perigosas. Esta confrontação com as formas exóticas que nos podem chocar, tentar, é um perigo de ordem psíquica. Foi por isto que comparei esta busca a uma longa viagem no labirinto; e trata-se de uma espécie de prova iniciática.

(….) Para compreender por dentro esse mundo deve vivê-lo. É como um actor que entra nos seus papéis, os assume. Por vezes existe uma tal diferença entre o nosso mundo ordinário e este mundo arcaico que a nossa própria personalidade pode ser posta em jogo.

(….) Sabemos bem, por exemplo – e mesmo os freudianos o dizem -, que o psiquiatra arrisca a sua própria razão ao frequentar a doença mental. O mesmo é válido para o historiador das religiões, O que estuda toca-o profundamente. (….) Vós participais no fenómeno que tentais decifrar: como se se tratasse de um palimpsesto, da vossa própria genealogia e da vossa história. E o poder do irracional, com efeito, está aí presente…. É a própria condição do homem quase revela desse modo.

(….) A confrontação com o vazio, com o nada, o demoníaco, o inumano, a tentação de regressar ao mundo animal, todas estas experiências extremas de dramáticas são a fonte das grandes criações do espírito, pois, nessas condições terríficas, o homem soube dizer sim à vida, tendo encontrado uma significação para a sua existência.

(….)

Pensava sobretudo em Durga, por exemplo, uma deusa sangrenta indiana, ou em Kálí: deusas-mães que, entre outras coisas, exprimem o enigma da vida e do universo, quer dizer, o facto de nenhuma vida se poder perpetuar sem o risco de morte. Estas deusas terríveis pedem o sangue, ou a virilidade, ou a vontade dos seus fies. Mas compreender essas deusas é, ao mesmo tempo, receber uma revelação de ordem filosófica. Compreendemos que esta união de virtudes e de pecados, de crimes e de generosidade, de criatividade e de destruição, representa o grande enigma da vida. Se devemos viver a existência de um homem, e não a de um autómato ou de um animal, nem a de um anjo, é com esta realidade acima descrita que somos confrontados. (….) Do mesmo modo, para todos os povos que aceitam a grande mãe, o culto dessas deusas terríveis é uma introdução ao enigma da existência e da vida. A própria vida é esta “grande mãe terrível” que corta as cabeças e que concebe; que simultaneamente assegura a fertilidade e o crime e, ainda, a inspiração, a generosidade, a riqueza. (….) A deusa-mãe é, simultaneamente, aquela que concebe e aquela que mata. Nós não vivemos num mundo de anjos ou de espíritos, nem mais num mundo unicamente animal. Estamos “entre”, e penso que a confrontação com a revelação deste mistério é sempre seguida de um acto criador. Penso que o espírito cria sobretudo quando está confrontado com grandes provações.»

 

Para finalizar aconselho, vivamente, a leitura de um conto de Andersen – A Sombra.

 

Azeitão, 4 de Julho de 2007.

 

(C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya

Discípulo do Mestre DeRose

 

“Sou irmão de dragões e companheiro de corujas.”

Mudrá

Meus queridos

Deixo-vos algumas anotações sobre os mudrá que usam na coreografia Dêva Mandira.

Samputa mudrá. Este mudrá é o que, da vossa coreografia colectiva, pretendo relacionar com o que vos disse, há uns dias atr, sobre a caixa. É o gesto da caixa fechada, ou do cofre. Como tal, símbolo feminino, do inconsciente (recordam-se da Esperança?), ou do útero. Simboliza um segredo que nele está contido. Por outro lado, o útero, a caixa, o cofre, não têm valor por si mesmo, mas sim pelo seu eventual conteúdo. É símbolo, este mudrá, dos tesouros da liberdade, da sabedoria e da imortalidade, cujo guardião é Kuvêra.

Este mudrá é também utilizado para fazer pújá.

Alguns outros mudrá que usam na V. coreografia, comentá-los-ei seguidamente:

Durgá mudrá. Durgá, deusa, a inatingível, é uma shaktí, manifestação da energia primordial. É uma das mais poderosas e temíveis manifestações de energia de Shiva. A sua antiguidade no Tantra e no Yôga é inegável. Eliade refere que entre os drávida já se representava, no culto da Deusa-Mãe, a entidade Kálí-Durgá. Durgá é também a montanha.

Ardha Súrya mudrá. Este é o gesto do sol nascente (savitura), do sol que nasce sobre as águas. Simboliza sempre um início, nascimento, crescimento, evolução. Faz com que o arquétipo do sol, como grande dispensador de vida, vibre em todos os nossos corpos e na nossa psique. Faz-nos vibrar no cumprimento de onda dos atributos da vida, da força geradora, criadora, do poder e da iluminação.

Alapadma mudrá. Para comporem o ardha Súrya mudrá, uma das mãos faz alapadma mudrá, que simboliza a flor do lótus totalmente aberta. Diz-se ser o mudrá dos mestres. Pois esta flor representa a perfeição da beleza e da simetria. Assim como a pureza, pois as suas raízes transmutam a podridão do fundo do lago, na pureza das pétalas da flor. E se as águas subirem, a flor sobe com elas, mantendo-se sempre limpa. O lótus branco e o rosa representam a prosperidade e harmonia. É um símbolo solar. Já o lótus azul, uptala é um símbolo shivaísta e lunar, representando a criação, a abundância, a beleza, o prazer estético, o movimento.

Swástika mudrá. É o gesto auspicioso, mas também representa a encruzilhada. Representa a expansão do mundo através do vórtice primordial, o movimento circular sobre um eixo. Também está associado ao machado e ao labirinto. Os celtas representavam a swástica de modo estilizado, parecendo um labirinto. Ora, como ensina Daniélou, o labirinto sempre evoca os mistérios da iniciatórios, os caminhos desviantes que conduzem à iluminação. “O Ser que percorre o labirinto… chega finalmente a encontrar o ‘lugar central’, ou seja, do ponto de vista da realização iniciática, seu próprio centro… Se consideramos o caso em que o labirinto está em conexão com a caverna, esta, que ele cerca com suas sinuosidades e à qual por fim, chega, ocupa pela mesma razão, no conjunto assim constituído, o ponto mais interior e central, o que corresponde à ideia do centro espiritual e que concorda igualmente com o simbolismo equivalente do coração (René Guénon, Symboles fondamentaux de la science sacrée, pp. 216 e 392)., in Shiva e Dionísio, p. 106.

 

SwáSthya

(C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya

“Sou irmão de dragões e companheiro de corujas.”

 

Azeitão, 12 de Junho de 2007

Meditação – Teoria e Prática

Por JOÃO CAMACHO

                       Como tem acontecido com outros artigos de minha autoria, também este foi preparado para servir de suporte a uma palestra que proferi no Encontro Nacional de Yoga, em Évora, que decorreu nos dias 6, 7 e 8 de Abril de 2001.

Após a exposição da “teoria”, convidei os participantes a participarem na “prática” na Brahmamuhurta, ou seja, na hora da meditação. Tem-se por certo que isto significa 4 horas da manhã. E foi esta a hora que usamos. Mas, em rigor, a hora da meditação é aquela que antecede o nascer do sol. E assim, em qualquer latitude, só precisamos descobrir a que horas o sol nasce e uma hora antes iniciar a prática de meditação.

 

Passemos então a reproduzir o texto da palestra: 


 

Classificação dos graus de meditação:

 

Tem função pedagógica e analítica. Três graus:

 

 

 

 

 

3.º Grau tantra dhyána reservado, forma iniciática
2.º Grau  – mantra dhyána     concentração em sons.
1.º Grau yantra dhyána concentração em símbolos.
     
       

 


 

1.º Grau – yantra dhyána – concentração em símbolos.

 

 

Neste grau, o mais baixo, a concentração da mente é feita sobre Yantra – símbolos concentradores da mente. Podem ser objectos, figuras geométricas, mandala, etc. em seguida mostram-se alguns dos símbolos possíveis.

 

 

 


 

É um tipo de objecto mais subtil do que o anterior.

 

 


3.º Grau – yantra mantra dhyána – concentração em símbolos e em sons

 

 

Juntam-se os sons e os símbolos. Junta-se o yantra e o mantra e a mente concentra-se sobre os dois em simultâneo. Por exemplo, concentra-se a mente no símbolo do Yoga e na vibração deste símbolo.

 

OM

 


4.º Grau – ajapa japa

 

 

Neste grau, que significa repetição sem repetição, o objecto da concentração da mente é o som interno produzido pela passagem do ar no interior do corpo na inspiração e na expiração. Esta técnica é muito mais subtil do que aquelas que se encontram no grua de mantra dhyána.

Esta técnica por vezes surge associada aos mantra SO HAM. Resulta da deturpação que foi feita desta técnica na Idade Média. Alguns mestres ensinaram-na a alguns discípulos, com a utilização dos sons referidos. Por incapacidade dos discípulos em perceberem os sons internos.

Na sua pureza é uma técnica muito subtil.

 

 

 


5.º Grau – tantra dhyána – reservado, forma iniciática

                        Este grau é reservado, iniciático. Só quando o mestre transmite a iniciação é que o discípulo pode utilizar este grau.

 



 

Samyama

 

Dhárana é concentração da mente obre um só ponto. Ou seja ekagrata. Quando o Yogi consegue unir todos os pontos que representam os turbilhões da consciência e concentra-la num só dá-se a concentração. Se esta perdura, pelo menos pelo tempo de 12 respirações, passa ao dhyána. Deste ao samádhi. Podem ocorrer desvios que se devem evitar. Um para o trabalho intelectual. O menos pernicioso dos desvios. O outro para a auto-hipnose. Este deve ser totalmente de evitar. O samádhi é hiperlucidez, não se compadece com diminuição de lucidez.

 

 

 

 


 

OS OBSTÁCULOS

 

Segundo Patañjali [1] OS OBSTÁCULOS à meditação e ao samádhi são:

 

I – 30:  as distracções da mente, causadas por:

–          enfermidade

–          apatia

–          dúvida

–          falta de entusiasmo

–          indolência

–          apego

–          noções erradas

–          instabilidade

 

II – 3:

–          a ignorância

–          o egoísmo

–          o desejo

–          a aversão

IV – 27:

–          Também os pensamentos resultantes dos samskara

III – 37:

–          Os siddhi.

 

O Yoga de Patañjali tem uma divisão em oito partes.

 

DÁRSHANA YOGA

8.º

Samádhi AntarangaSamyama

(Co – conciliação)

7.º

Dhyána

6.º

Dhárana

5.º

Prátyáhara Bahiranga

4.º

Pránáyama

3.º

Ásana

2.º

Niyama

1.º

Yama

 

                        O Yoga de Patañjali tem a organização que acima se enumera. Os três últimos anga constituem samyama.

 

Para uma boa concentração o Yogi deve abstrair os sentidos físicos e virar-se para o interior.

 


 

PRÁTYÁHARA

 

Bhagawad Guitá II – 58

 

E, quando ele recolhe os seus sentidos,

tal como a tartaruga as suas patas,

de todos os objectos dos sentidos;

ele é um sábio firmemente equilibrado.

Katha upanishada

Quando os cinco sentidos e a mente estão parados, e a própria razão descansa em silêncio, então começa o caminho supremo.

 

Chandogya upanishada

 

Concentrando em si todos os seus sentidos

 


 

DHÁRANA

                        Provém da raiz dhr – manter fechado

Bhagawad Guitá II – 65

E, na serenidade, para ele, não há

mais qualquer espécie d’infortunio ou d’entrave,

porque, co’a consciência em paz imensa,

esse mantém o intelecto inabalável.

 

Yoga Sútra III – 1

A fixação da actividade mental sobre um lugar circunscrito é a concentração.

 


 

DHYÁNA

                        Prolongado a concentração sobre um objecto esta transforma-se em Dhyána. Vyása nos seus comentários ao Yoga Sútra, define assim:

 

“Continuo de esforço mental para assimilar o objecto da meditação, livre de todo outro esforço de assimilar outros objectos.”

 

Esta técnica é apenas o aperfeiçoamento da anterior.

 

Yoga Sútra, III – 2

 

Um fluxo continuo de cognição centrado sobre um ponto é chamado meditação.

 

Dhyána permite penetrar, assimilar o objecto da meditação. A trilogia, sujeito cognoscente, objecto cognoscível, acto de conhecer, cessam e confundem-se. O objecto e o sujeito passam a ser um só. Esta penetração, esta assimilação do objecto é acompanhada de um estado de coerência, dum estado de lucidez total. A meditação é sempre um instrumento de penetração na essência das coisas, lucidamente usado pelo Yogi. Em ultima análise é um instrumento de apreensão do real.

 

E o intelecto? É útil, é necessário, torna a progressão mais rápida. O intelecto facilita a libertação e a revelação. Não só ele surge na cosmogonia do sámkhya, como uma manifestação perfeita da prakruti, como facilita o processo de libertação graças às suas possibilidades dinâmicas. A intuição intelectual é ainda mais imediata do que a intuição sensível. A consequência da identificação é que conhecer e ser passam a ser uma e mesma coisa.

 


 

SAMÁDHI

                        Quando este fluxo continuo se mantém, os inumeráveis pensamentos e distracções que perturbam se vão, a lucidez do yogi se intensifica, excluindo toda a sonolência, dissipando a bruma mental, a sombra, a reserva e revelando o objecto numa claridade directa e fixa, continua, a meditação transforma-se em samádhi.

 

Yoga Sútra III – 3

 

Quando  só o objecto da meditação resplandece na consciência, esvaziando-se da sua própria natureza, é o samádhi,

 

Ou seja e dito de outra forma, através de prátyáhara, os sentidos retiram-se do mundo exterior e convergem na faculdade mental (manas); pelo dhárana e pelo dhyána, as modalidades do psiquismo são suspensas e unificadas ao eu individual (ahamkara); no samádhi com suporte (sabija samádhi), o eu é reabsorvido em buddhi, o princípio da inteligência, do intelecto puro, informal e supra-individual; no samádhi sem semente, Buddhi é ele próprio absorvido no eu absoluto (purusha).

 

Vyása chega a proclamar Yoga é o samádhi.

 

O samádhi tem os níveis. Níveis que o yoguin deve conquistar um a um. Não pode saltá-los. Terá de passar pelo anterior antes de alcançar o seguinte.

 

 

 


 

Os vários níveis de samádhi

 

.NIRBIJA SAMÁDHI Dharma megha samádhi (Nuvem de virtude)
Sem semente ou

nirambala samádhi

(sem suporte)

Kaivalya (libertação)jiva mukta

(o liberto vivo)

 
SABIJA SAMÁDHI

(com semente – com suporte)

 

Asampragñata samádhi

(supra cognitivo)

(os samskaras são os únicos obstáculos neste nível.)
 

 

Sampragñata samádhi

(cognitivo)

Sasmita samádhi

(sobre o eu)

mahat
 
Sananda samádhi

(felicidade)

(manas/amkara)
 
Nirvichara samádhi (objectos subtis/tanmatra, sem tempo)
 
Savichara samádhi (objectos subtis/tanmatra, tempo presente)
 
Nirvitarka samádhi (objectos grosseiros, agregados de átomos, como um todo)
 
Savitarka samádhi (os objectos gros-
seiros, compreensão dissecar)
 

SABIJA SAMÁDHI

 

 

SAMPRAGÑATA SAMÁDHI

(Cognitivo)

 

Neste nível, seja qual for o objecto sobre o qual o Yogi faça samyama, obtém um conhecimento integral. Divide-se em,

 

                        Savitarka samádhi – samádhi argumentativo: a noção do objecto, a palavra,  que designa o objecto, a percepção imediata deste está presente. Por exemplo se utilizarmos como objecto uma flor, a palavra flor, a ideia genérica de flor, a impressão senhorial criada pela flor, são apreendidas em bloco.

 

Nirvitarka Samádhi : Samádhi não argumentativo – Neste  o objecto revela-se directamente, despejado de toda a representação mental.

 

 

SAVICHARA SAMÁDHISamádhi reflexivo – Absorção dos elementos subtis, mas somente nas suas propriedades presentes, condicionadas pelo espaço, tempo e causalidade. O yogi não tem conhecimento do que foi ou será o objecto da meditação.

 

 

                        NIRVICHARA SAMÁDHI – Este tipo de samádhi permite conhecer o objecto da meditação, dos eus elementos subtis, mas também o seu passado e o seu futuro, ou seja a totalidade de transformações de que o objecto é susceptível.

 

 

SANANDA SAMÁDHI – A concentração é feita sobre objectos mais subtis. Sobre a substância mental .Produz felicidade. Há um apaziguar das funções cognitivas.

 

SASMITA SAMÁDHI – É o samádhi sobre o sentimento do eu, ou sobre a pura consciência do eu., despojada de todos os atributos. Até para lá do sentimento de beatitude do nível anterior. É o samádhi sobre o conhecedor.

 

 

ASAMPRAGÑATA SAMÁDHI

(Supra cognitivo)

                         Todos os vrtti cessaram, só restam os samskara, as impressões inconscientes.

 

 

NIRBIJA SAMÁDHI

Dharma Megha samádhi

(Nuvem de virtude)

 

Quando inclusive os samskara  cessam, quando cessa a distinção entre a consciência pura e a consciência do Eu, então o yogi alcança Kaivalya (libertação) e é um jiva mukta (o liberto vivo). É um verdadeiro estado de transcendência. O Yogi de algum modo alcançou a unidade primordial, infinita e eterna, contudo, num corpo finito e temporal

 

 

 


BIBLIOGRAFIA

 

1 – DANIÉLOU, Alain, Yoga, méthode de réintégration, col. Nouveaux Commentaires, Sciences humaines, Civilizations, 2.ª edição revista e aumentada, Ed. L’Arche, Agosto de 1983, Paris, 211 pgs..

 2 – ELIADE, Mircea, Yoga, Inmortalidad Y Libertad, Editorial La Pleyade, 1988, Buenos Aires, Argentina, 412 pgs..

3 –                             Pátañjali et le Yoga, col. «Maitres spirituels», Editions Le Seuil, 1989, Paris, 185 pgs..

 4 – GOSWAMI, Shyam Sundar, LAYA YOGA. The definitive guide to the chakras anda kundaliní, Ed. Inner Traditions, 1999, Rchester, Vermont, USA, 342 pgs..

 5 – MICHAEL, Tara, Yoga, col. Points – série sagesses, Editions du Rocher, Janeiro 1995, Paris, 237 pgs..

 5 – PÁTAÑJALI, Yoga Sútra, tradução e comentários De Rose, 2ª edição, Ed. Martin Claret e Uni-Yoga, 1996, São Paulo, Brasil, 159 pgs..

6 – Sem autor conhecido, Os Upanishades, col livros de bolso, Publicações Europa-América, 1982, 115 pgs.

 7 – SIVANANDA, Swâmi Sarasvati, La pratique de la méditation, col. Spiritualités vivantes – Série Hindouisme, Ed. Albin Michel, Março de 1982, Paris, 376 pgs..

 8 – TAIMNI, I. K., A ciência do Yoga (comentários sobre os Yoga-Sútras de Patañjali à Luz do Pensamento Moderno), Ed. Teosófica, 1996, Brasília, 343 pgs..

 9 – VISHNUDÊVÁNANDA, Swami, Meditacion Y Mantras, edição abreviada, 2ª edição, col. El Libro de Bolsillo, Alianza Editorial, 1984, Madrid, 317 pgs..

 10 – VYASSA, Poema do Senhor (Bhagavad-Guitá), Transcrição, Introdução, Notas e Glossário de António Barahona. Edição patrocinada pela Fundação Oriente, Relógio D’Água Editores, Novembro de 1996, Lisboa, 457 pgs..



[1] Yoga Sútra.


JOÃO CAMACHO

Yogachárya Docente formado pela Uni-Yoga – União Nacional de Yoga de Portugal

2º Dan de Judo – Presidente do Yudanshakai da Associação de Judo Tradicional de Portugal

(C)Copyright, João Camacho, 2001

MANTRA VIDYA I

Epístolas aos meus discípulos:

 

Os mantra são sons que foram percebidos, na origem, por sábios em profundo estado de meditação.

O mantra vidya, o conhecimento do que concerne à utilização dos mantra, é uma das ciências mais profundas do Yôga.

 

Descontrair o rosto faz parte do trabalho de neutralização emocional. Não como proposta de apatia e de indiferença. Mas sim como caminho para uma vigilância descontraída, confiante, sorridente.

 

O universo é composto por vibração. Inclusive o nosso corpo. No Yôga sabemos que tudo tem consciência, apenas em diferentes graus. O nosso corpo físico, denso, também é energia, logo consciência, portanto é possível, através da consciência, actuar sobre ele e com ele. Não faz sentido algum a separação mente/corpo. A existência é una. É após a separação de Shiva e Shaktí que surgem as divisões na existência. Shaktí no seu devir, na sua práxis transformadora, vai construindo todas as formas e nomes do Universo. E a divisão é uma construção (vikalpa). Ora em nós, kundaliní shaktí é fonte da consciência (chit shaktí) e o suporte que anima o corpo e a mente com energia (prána). Ao despertar vai reestruturar os nossos corpos. Vai fazê-lo, deslocando-se por todo o nosso corpo, detendo-se onde houver bloqueios. Um dos nomes desta energia supracósmica é Saraswáti, ou seja, “aquela que flui”.

 

A kundaliní é, a nível cósmico, shabda brahman, o som sem som. A nível microcósmico é shabda, o som audível, aquele que é designado tanto por Platão, como pelas escolas esotéricas como a “harmonia das esferas”.

 

Fazendo um parênteses, dexio-vos a nota de que o caminho da kundaliní passa por aperfeiçoar 8 qualidades:

 

shôdhana – purificação
dhriti – coragem
sthirata – constância
dhairya – resistência
lághava – subtileza
pratyaksha – evidência directa
nirvikalpa samádhi – identificação sem pensamento

 

O universo, como o conhecemos, resulta da diferenciação vibratória, do momento inicial em que Shiva vibra damaru[i]. O som produzido é pránava, grafado como ômkara –  (ÔM). O ÔM é tanto apelidado de pránava como de udgíthao que ascende. É o som incausado, é o som que é o próprio corpo vibracional do cosmos. É o som que representa a vibração infinitaspanda. Este som é perceptível a vós, praticantes de Yôga, a adeptos de outras escolas iniciáticas, mas sem som, imperceptível para o comum das pessoas.

 

Durante o CFIY expus-vos a doutrina do Rig Vêdá acerca de vak, o Verbo, a palavra, ela também expressão de ÔM. Referi-vos pasyantí-vak (fala visível); madhyama vak (fala mediana); vaikharí vak (fala manifesta) e a que está para lá destes estados – pará vak, a fala suprema. Correlacionei cada um destes níveis de som, com as formas ou os níveis de poder da serpente de fogo. Por isso não me deterei nesta doutrina. Estudem os apontamentos.

 

Tudo o que, no Yôga, dizemos sobre energia, a sua utilização, a sua subordinação à consciência, é mais próximo da física quântica, do que aquilo que a ciência foi exprimindo nos últimos dois milénios.

 

Dizemos nós, de acordo com o nosso conhecido preceito tântrico, que o que está aqui está em toda a parte; o que não está aqui não está em parte nenhuma.

 

Parménides[ii], um filósofo da antiguidade grega, ensinava algo de parecido:

 

– O que é, é.

– O que não é, não é.

 

Tais premissas implicam que aquilo que é, o seja, e não pode deixar de ser. Assim como o que não é, não pode vir a ser.

 

No mesmo sentido, lê-se no Bhagavad Gita:

 

II – 1, 2

O que é não pode deixar de ser

E o que não é, não pode vir a ser.

 

Entendem estas filosofias que experimentar o não ser, é um contra-senso. Apenas há o ser progressivamente revelado, manifestado e reconhecido na consciência, ela própria na sua natureza primeira, una e imutável.

 

O som, Shabda, manifesta-se de muitas formas, umas mais subtis, outras mais grosseiras, mas todas elas veículos da actuação de Parashaktí. Tudo o que é, move-se, e cada movimento é acompanhado de som, de vibração. Shaktí é a potência subjacente ao movimento, Shiva é o suporte. Shaktí corresponde ao plano sonoro de shabdabrahman, o som que não é afectado nem corrompido pelas inumeráveis formas (rupa) e nomes (nama) evolutivos que a Shaktí vai produzindo, incluindo a própria linguagem. Para que, o que vos digo, não sejam meros aspectos teóricos, é necessário desenvolver percepção, sensorial e extra-sensorial, através da purificação do corpo. O ouvido deve afinar-se; o coração deve purificar-se e estar aberto ao afecto, ao amor – sim, ao amor individual, louco, da paixão, de que vos falava, a propósito do filme O Tigre e o Dragão, mas também a um amor mais amplo e mais divulgado pelos santos homens e mulheres de todos os tempos; o tacto, a sensibilidade física ao toque, ao contacto, também deve desenvolver-se; o cheiro deve apurar-
-se; enfim, todo o corpo físico deve fluidificar para ganhar acuidade sensorial. E o desenvolvimento dessa acuidade é o primeiro passo para o surgimento dos siddhi que nos permitem outras percepções mais subtis.

 

O começar a perceber sons subtis, é um primeiro passo para a percepção do resto. Um dia destes, a um de vós, referi que, no que à evolução respeita, temos um chakra onde se escuta o som (anahata), não temos um onde se “vê a luz”. E naquele em que pareceria que assim é, não vê. É ele próprio luz, fonte de luz – sahásrára.

 

O tantrismo que tudo isto nos vai ensinando é uma fantástica e fascinante filosofia, muito para lá dos aspectos sexuais (sem os minimizar ou diminuir) e do maithuna (que é fantástico e proporciona, mais que não fosse, um sublime e supremo prazer). É uma filosofia profunda que nada tem de irracional. Apresenta-nos um sistema equilibrado: Shiva como consciência estática, Shaktí como consciência dinâmica. Também nos apresenta o mundo como algo de real, pois se o mundo é expressão das manifestações de Shaktí, se o mundo são construções (vikalpa) de Shaktí, então são aspectos da realidade última. A evolução, que produz a ilusão da transformação não real, é apenas consequência do movimento (spanda), do devir da Shaktí.

 

É o movimento que produz a tripartição que leva à ilusão de que o mundo não é real:

1 – som (shabda);

2 – objecto (artha);

3 – cognição (pratyaya).

 

E isto porque a evolução vai do subtil (paramshiva) ao grosseiro (ashuddha). Esta evolução, passa por cinco categorias de criação pura e trinta e uma de criação impura, que não desenvolverei.

 

O som articulado, mesmo aquele que usamos para produzir palavras, para falarmos uns com os outros, é, como também sabem da doutrina do mantravaikhari. De vaikhari manifestam-se as letras (varna); as sílabas (pada) e as frases (vákya). Nada e bíndu são complementos da última potência da criação. Nada, bíndu e bíja costumam manifestar-se juntos. Destes saem os tribindu ou kámakála, a raiz de todos os mantra. Os tribíndu são o branco (sita), o vermelho (shôna) e o misto (mishra). Os tribindu têm várias correspondências, como a lua, o fogo e o sol; ou a vontade, (icchá), conhecimento (jñana) e acção (kriyá), etc.

 

Ensinam os shástra que shabda tem a natureza das letras (varna) e dos sons (dhvani). Ora vak é falar. Mas tem a dupla significação de ser o falar, mas também o som dos objectos inanimados. Vak tem um significado parecido com o de shabda. Mas vak é mais m efeito do que uma causa. Shabda, tendo a natureza das letras e dos sons, é-lhes prévio.

 

 

1                      Houve um filósofo, Plotino, que ensinava que no Universo as coisas movem-se e atraem-se por amor. Os planetas, mantém-se em sistemas, com órbitas definidas, mas interligadas, por amor. As pessoas, os homens, as mulheres, aproximam-se e vivem juntos, em família, em grupo, em sociedade, também por amor. Ensinava, Plotino, tal coisa tão bonita. Acontece que quando aprofundamos o estudo do som, o estudo das palavras de poder, o estudo do mantra e do Tantra, descobrimos que na origem dos sons está o desejo cósmico (káma) ou a vontade (iccha). É o desejo ou a vontade, do Um primordial se transmutar em múltiplos de si próprio. E é esse o desejo que anima também, nos planos menos subtis, entre outras coisa, o amor e o desejo sexual. É esse desejo, manifesto através da vibração inicial, que dá origem ao som, ao mantra. Também por isso, muitas tradições tinham e têm, o vishuddha chakra, como o criador por excelência. Desejo e procriação terrestre, humana, são manifestações, limitadas, é certo, do impulso inicial. Também por isso, a sentimento de quase total realização da mulher que se sente grávida e que dá à luz.

 

Ora, o som do movimenteo inicial, no princípio dos tempos, na aurora da diferenciação, é, como acima já vimos o ÔM. Nos seres humanos a cognição, os objectos e o nome dos objectos, aparecem como três realidades distintas. Mas são tão só três manifestações eficazes do movimento, do impulso inicial.

 

Ora a diferenciação entre as manifestações grosseiras do som e as subtis, a percepção das manifestações mais altas (atindriya) só são percebidas pelos Yôgis desenvolvidos. Os Yôgis vêem, apreendem. O kama-manas do Yôgi apreende os objectos subtis, de modo global, numa experiência de identificação, onde não há nem o sujeito, nem o objecto – nyása[iii]. Ora, a apreensão de uma imagem ou objecto (artha) evocado por uma palavra (shabda) é, verdadeiramente, cognição (pratyaya). Como se vê, aquilo que, ao ser humano comum, surge como três manifestações distintas, é para o Yôgi uma só coisa.

 

SwáSthya

 

(C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya

Discípulo de Shrí DeRose

«Sou irmão de dragões e companheiro de corujas.»

[i] O tambor de Shiva. Simboliza a força criadora de Shiva.

[ii] Parménides de Eléia (530 a.C. – 460 a.C.).

[iii] Brahmasvarúpa é outra forma de designar nyása.

“Lição de Sapiência”

 

1- A estrutura organizativa.

 

Antes de mais quero agradecer-vos a todos a V. disponibilidade para aqui estarem presentes e resolvidos a ouvir esta “lição”. Pois que, de “sapiência”, veremos, após, se tem alguma. Mas cumprirei o meu dever.

 

Deixo uma palavra especial para o Dr. Vítor Rosa que, mais uma vez, deixa os seus múltiplos afazeres para nos honrar com a sua presença. Obrigado. Honra que não é menor, ao verificar que também Sensei Rosa Brites, Sensei Alexandre Gueifão e Sensei Jorge Costa, estão presentes, a quem agradeço e expresso a minha alegria por vos poder ter aqui comigo.

 

Permitam-me, todavia, que me demore um pouco mais com o Sensei José Patrão, que se encontra entre nós, o que muito me honra. É um homem de acção, sem deixar de ser, nesta, um contemplativo. À boa maneira oriental, onde intuição e acção devem ser a mesma coisa. José Patrão, é o mentor e o principal impulsionador do Centro de Artes Orientais, onde nós nos acolhemos, como Secção de Yôga. É um prestigiado budôka. É também meu aluno de Yôga, a quem tive o prazer de ensinar Yôga, assim como a outros cintos negros da Assocação Shotokai de Portugal, durante um ano. Um projecto no qual os Karatekas não queriam aprender Yôga, como mo comunicaram. E para o qual eu me lancei com energia, persistência e dedicação. No fim, creio que consegui ensinar-lhes Yôga. Pelo menos um pouco. Pois tenho constatado, não sem alguma satisfação, que passaram a incluir o súrya namaskár nas suas práticas, em alguns dos estágios que organizam. O que significa que, pelo menos esse pedacinho, consegui ensinar-lhes.

 

José Patrão é também o principal suporte da Surya online, revista que vai publicando artigos de um grupo de estudiosos destas artes do oriente e que já tem vários anos de existência. A sua vida constitui também um exemplo de dedicação a uma causa e a uma cultura. Podemos ver nele um paladino. E na sua pessoa saúdo o Centro de Artes Orientais e a Associação Shotokai de Portugal.

 

Saúdo também todos os restantes que, por serem da casa, me perdoarão a referência breve e rápida. E em especial, os meus discípulos, que  uma vez mais me acompanham nestas andanças. E que continuam a acreditar que somos capazes de concretizar a nossa missão. Continuando persistentemente a prosseguir os objectivos da Nossa Cultura.

 

Saúdo, em geral, a comunidade de alunos, professores, que integram as várias escolas que se agregam em volta do Centro de Artes Orientais.

 

Saúdo também os alunos que este ano vão frequentar o Curso de Formação de Instrutores de Yôga. Bem-hajam. Desejo-lhes um óptimo curso e muito sucesso.

 

Agradeço, em geral, a todos os que aceitaram o convite para participar neste importante acto.

 

Deixo por fim, uma palavra de reconhecimento e de admiração pela obra, ímpar e grandiosa, do meu Mestre, Shrí DeRose, que nos esforçamos por divulgar e promover.

 

Queridos amigos, alunos e discípulos. Caros Colegas

Minhas Senhoras e meus senhores

 

Esta sessão solene ocorre num momento de incertezas, de dúvidas, de expectativas. Num momento em que sofremos de uma crise de crescimento. Num momento em que, pelas características do nosso trabalho, pela qualidade que lhe imprimimos, pelas actividades em que nos envolvemos, temos recursos humanos que não conseguem já dar a adequada resposta, por exíguos.

 

Por outro lado, crise, porque alguns dos nossos instrutores não conseguem congregar a vontade dos seus alunos para participarem nos eventos e nas actividades, constituindo-se assim, também, um obstáculo ao nosso crescimento e capacidade de resposta e de intervenção.

 

Crise, porque queremos dedicar-nos a projectos e parcerias para as quais necessitamos de maior dedicação e dispêndio de tempo. Estudamos, neste momento, parcerias diversas instituições.

 

Também temos contado, recentemente, com a Câmara Municipal do Barreiro, que nos tem proporcionado a possibilidade de ministrarmos aulas públicas, gratuitas, no Parque da Cidade, proporcionando-nos, assim, um meio privilegiado e bem visível, de divulgarmos a Nossa Cultura. A Câmara Municipal de Palmela, também nos tem proporcionado apoio logístico, pelo qual estamos gratos e honrados.

 

Por isso, se o futuro se avizinha luminoso, está envolto num manto de preocupações.  .

O momento exige esta capacidade para fazer e aceitar um diagnóstico, rigoroso, das motivações dos que estão comigo e daqueles que me acompanharam no passado. Sou exigente. Muito. E o grau de exigência que imprimo pode, nalguns casos, resultar numa provação. Mas nestes caminhos, temos de equacionar a possibilidade de sermos postos à prova. Mesmo quando, em cada momento, não discernimos exactamente o que está em causa. E quando é chegado o momento de darem um salto evolutivo, seja como pessoas, seja como praticantes, seja no tipo de dedicação, seja pelas práticas e ensinamentos, mais intensos, mais exigentes, têm-me lá a indicar-lhes o caminho a seguir. Claro que percorrê-lo, como viandantes do subtil, isso já depende de cada um. O mestre só indica o caminho. Muitas vezes volta a percorrê-lo, com cada um dos discípulos, acompanhando-os para que não desfaleçam. Mas a eles cabe caminharem. Cabe aqui acrescentar o velho aforismo oriental de ser preferível ensinar a pescar a quem tem fome, em vez de lhe dar um peixe. Outros, de quem guardo boas memórias, mas cuja falta sinto entre nós, seguiram outras andanças.

 

Olho para todos vós e tendo noção daquilo que vos falta percorrer, também sei como evoluíram, como se transformaram. O mesmo olhar que me permite saber como, às vezes, não conseguem dar o passo que vos catapultaria à libertação mais rapidamente. Hesitam fazê-lo. Ficam enredados nas vossas perspectivas, convicções, teoremas sociais e pessoais. Enredados numa teia, quando, se se querem enredar, deveria ser na “trama do tecido” da Nossa Cultura. Ou seja, nas propostas do tantrismo.

 

Mas ainda assim olho-vos com admiração e carinho. A todos vós. Por também ver e saber o quanto já andaram, o tamanho da trajectória que já percorreram.

 

O momento não pode permitir silêncios e cumplicidades que poderiam ser, aparentemente, confortáveis, face aos tempos que correm, dizendo que tudo está bem e que estou totalmente contente com o caminho já percorrido. Seja em relação a cada um de vós, seja em relação a todos em conjunto. Tal significaria um capitular inaceitável perante os princípios e os valores, pelos quais nos devemos pautar, nomeadamente, o preceito ético – satya (verdade).

 

E é necessário fazer um diagnóstico, tanto no plano externo, como no plano interno.

 

No plano interno, há muito tempo que assumi a necessidade de repensar o nosso projecto cultural, a nossa maneira de pensar, agir e estar.

 

Os nossos departamentos não andam todos à mesma velocidade, nem com a mesma produção de trabalho. Andamos a duas ou três velocidades. Os directores executivos dos departamentos ainda não interiorizaram, totalmente, o papel preponderante que devem ter na organização e na direcção dos respectivos departamentos. Mas, não conseguindo manter sempre o mesmo ritmo, conseguimos, pelo menos, e assinalo-o de modo positivo, em todo o caso, mantermo-nos fiéis ao caminho traçado e trilhar uma boa parte do percurso.

 

É fundamental neste momento que saibamos quem somos, o que somos, o que queremos ser e para onde queremos ir. É tempo de acabar com as indefinições de carácter geral. Por isso estamos a preparar, para por à discussão colectiva, um Plano Estratégico para a próxima década.

 

Por isso é tão premente identificar com rigor as ameaças, as oportunidades, os pontos fortes e os pontos fracos.

 

Em relação a estes, que merecem particular atenção da nossa parte, temos:

 

  1. a) as dificuldades em atrair homens como alunos;
  2. b) o, ainda, limitado nível de interacção com o meio ambiente, não obstante as actividades que organizamos e para as quais nos convidam.
  3. c) o baixo nível de actividades de investigação e desenvolvimento por parte dos instrutores;
  4. d) o ainda limitado número de instrutores e ainda muito menor de Instrutores no grau de docente, com a perda que a Prof.ª Ana e o Prof. Juan representaram.
  5. e) a forte dependência da minha pessoa para a planificação e desenvolvimento de actividades nos departamentos.

 

Como pontos fortes há que apontar, indubitavelmente, o nosso capital humano. Não obstante os aspectos que há a corrigir, temos instrutores de alto nível, com grande conhecimento acumulado, com grande capacidade de entrega e com grande potencial de realização. É cada vez mais consensual, a importância estratégica que as pessoas desempenham e desempenharão nos próximos anos, no sucesso das organizações, num contexto global de acelerada mudança, de constante mudança do grau e do tipo de exigências que vão surgindo, seja lá qual for o ramo de actividade a que as organizações se dediquem. É hoje ponto assente que os recursos humanos, mais do que quaisquer outros, podem fazer toda a diferença numa estrutura organizativa. E da vossa competência, conhecimento e capacidade estou eu certo.

 

Também a nossa capacidade de congregar apoios e esforços de instituições, é um ponto forte.

 

O reconhecimento da qualidade das nossas realizações, do acervo de conhecimento que acumulamos é outro ponto forte.

 

Posso afirmar que temos, neste momento, no âmbito nacional um prestígio reconhecido. O que representa mais responsabilidade.

 

Revi, no essencial, o nosso projecto e a forma como vos orientava. Reabri os departamentos já com novos moldes de funcionamento. Passando apenas a ser integrados pelos que forem convidados pelas suas pessoais e especiais características. Consolidei, assim, a existência dos departamentos. Dei prioridade ao projecto Yôgayana em detrimento dos restantes projectos.

 

Em relação à V. orientação, como sabem, produzi profusamente doutrina, resultante da minha aprendizagem, da minha vivência nestas andanças e da minha experiência. Posteriormente, dediquei-me a um trabalho mais específico, mais pessoal, de maior proximidade e de orientação específica, com alguns de vós. Fi-lo sem precipitação, escolhendo, em cada momento, o caminho a trilhar, a técnica a utilizar, o trabalho interno de desenvolvimento a fazer. Trabalho pessoalíssimo, ao qual me entreguei, como faço nos projectos em que me envolvo, com intensidade e dedicação.

 

Os frutos desse trabalho são bons e estão à vista.

 

Com isto, creio ter consolidado a posição de alguns de vós. Que por cá estão e com que conto, a todos, ter ao meu lado, para o futuro.

 

Com as medidas tomadas creio ter consolidado a nossa posição, e ter criado as necessárias condições para crescermos.

 

Não cedemos a pressas conjunturais, que caracterizam, infelizmente, a tomada de algumas decisões estruturais. Com a revisão feita no nosso trabalho, as nossas linhas estruturais mantiveram-se, embora com ajustes conjunturais. Pois o caminho definido é justo e certo.

 

Reforçámos a interacção com o meio envolvente, com o nosso envolvimento num número cada vez maior de actividades em parceria, sendo que não estamos já passivos à espera que nos convidem, mas temos tomado a iniciativa de propor, apresentar, projectos, iniciativas.

 

Temos em funcionamento os departamentos de:

 

Ásana [Nadánta];

Mantra [Rájas agni]

Crianças [BalakiGanêsha]

Teatro [Purána]

Yôgacine

Protocolo

Formação e ensino

Informática [Sandezah Tantra]

Documentação e arquivo.

 

Deveremos em breve, ponderar na possibilidade da criação de um departamento de meditação.

 

Todos estes departamentos deverão passar a trabalhar, ainda mais, no sentido de criar conhecimento em cada uma destas áreas e de conseguirem congregar à sua volta os nossos melhores alunos. Pois da sua capacidade de o fazer também dependerá, em grande parte, o seu futuro, mas também o nosso futuro como organização.

 

Todo o trabalho que temos feito tem sido sem qualquer apoio financeiro seja de quem for.

 

Todas as mudanças pelas quais temos passado como organização e cada um de vós como pessoa, na vossa evolução e transformação interna, não têm representado decisões fáceis, nem um ano fácil. E a previsão para o próximo ano é de céu luminoso, uma ou outra vez algo nublado, sendo que espero algumas trovoadas. Veremos. Em todo o caso o futuro, nosso e de cada um de vós no Yôga, depende de nós. E por isso continuo a trabalhar, com os que estão, e trabalharei com os que virão, com os que querem dar um futuro à Nossa Cultura. Pois sou Tântrico, isto significa interveniente.

 

Caros amigos, alunos e discípulos, Caros Colegas,

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

 

Não vale a pena iludir e acreditar que todo este esforço e trabalho se fará com facilidade. Mas cá estaremos com a nossa força, com a nossa capacidade, com a nossa dedicação e entrega.

 

A metodologia com que vos tenho orientado é corolário do que aprendi com os meus mestres, a quem devo a posição que hoje ocupo. Posição que devo mais à generosidade dos meus mestres do que ao meu mérito. Facto que não me canso de evidenciar. Junto ao que os meus mestres me legaram, o meu cunho pessoal.

 

Quero acreditar que esta lição será o ponto de partida para uma ainda maior transformação organizacional entre nós.

 

Quero acreditar que a reorganização do CFIY, que passaremos a analisar, possa ser vista como uma oportunidade de crescimento pelos instrutores.

 

 

 

2- O Curso: da validade; dos objectivos; da reestruturação. Breve análise do programa

 

Caros amigos, alunos e discípulos, Caros Colegas,

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

 

Os meus discípulos sabem, pois tenho-os alertado para isso, que muitas vezes o artístico está a um passo do intuicional. E, mesmo sem o artista muitas vezes o saber, transmite-nos informação preciosa, verdadeiras pérolas. A música de fundo, quando entraram, era Sem Perdão do grupo 7.ª Legião. Escolhia-a intencionalmente. Nesta composição pode ouvir-se o seguinte poema:

 

Se a fé não mudar,

Se a noite acabar,

Vai nascer aqui o dia

 

Se a Lua deixar,

Se o sol me guiar

Só quero de ti um dia

 

Se a fé não mudar

E a noite acabar

Hei-de ver nascer o dia

 

Se a lua deixar

E o Sol me guiar

Hei-de ver nascer o dia.

 

É um poema de que muito gosto. Nos momentos em que me sinto em provação, às voltas no labirinto, perante os revezes, as contrariedades, o imobilismo, os ataques, com que tantas vezes nos deparamos, nestas nossas andanças, lembro-me muitas vezes destas palavras.

 

Desde logo, sobre elas, devo referir que interpreto , no seu sentido original, de firmeza na execução de um compromisso, ou de convicção profunda. Ora, se a nossa convicção não mudar e a lua deixar, se o sol nos guiar, haveremos de encontrar a luz, o dia, o caminho no labirinto.

 

Recentemente, o meu Mestre, Shrí DeRose, ensinava que [1]:

 

A Luz não deve temer as Trevas, pois quando as duas se confrontam é sempre a claridade que faz a escuridão recuar e nunca o contrário.

 

E para referir o que será tido como mais uma coincidência, aos olhos não treinados a ver para lá do óbvio, num dos artigos publicados na revista Surya online, Sensei Patrão declara o seu propósito com estas actividades a que se dedica. Passo a citá-lo:

 

Eu ando a juntar os que dão luz branca à roda a mesa em forma de prisma.

Quero ver o arco-íris!

 

Possamos todos nós, juntos, irradiar a luz que nos conduza ao arco-íris. Possa o Curso de Formação de Instrutores de Yôga, catapultar-nos, a todos, à condição daqueles qe irradiam luz branca.

 

Este curso tem a duração de 12 anos. E, nesta fase inicial, é composto por um conjunto de Seminários que decorrerão por um período superior a um ano.

 

Neste curso, para o qual vos desejo, aos que vão iniciá-lo, desde já, felicidades, não iremos encontrar astrofísica, física quântica ou anatomo-fisiologia, como em outros cursos de Yôga. Mas encontraremos, seguramente, Yôga. Posso prometer-vos que não será um curso fácil. Representará horas, semanas e meses e anos de estudo e prática. Será um curso onde deveis demonstrar um elevado nível de proficiência. Devereis ser capazes de ensinar, de argumentar, de investigar. Sereis, no futuro, cultores desta antiga filosofia, exemplos vivos duma linhagem tão antiga como a noite dos tempos, mas pujante, actuante e congregadora.

 

Os documentos de apoio, as normas, os ensinamentos, serão os do Yôga antigo, codificado e apelidado, na passagem ao terceiro milénio, de SwáSthya Yôga, por Shrí DeRose. Este Yôga tem os elementos integrantes de todas as outras escolas, daí que qualquer praticante de Yôga, ainda que queira trabalhar e seguir um Yôga menos autêntico, poderá frequentar o curso.

 

Iniciaram um percurso de 5 anos, dos 13 de duração total da formação. Devereis validar a Vossa formação todos os anos, nas datas marcadas para exame. Recebereis um certificado da formação que fizestes. Este certificado deverá ser renovado todos os anos, sendo-lhe aposto um selo de revalidação e por mim assinado. Que o vosso exemplo frutifique. Como diz Shri DeRose [2]

 

«Você é uma pessoa privilegiada por estar preparado para ensinar SwáSthya Yôga. Tornar-se instrutor de SwáSthya Yôga é ser depositário da confiança dos Mestres; é ser representante de Shiva; é ser pesquisador sério e missionário de saúde, beleza, felicidade e autoconhecimento.”

 

 

Doravante, lembrai-vos que representam Shiva, representam o SwáSthya Yôga, representam Shrí DeRose, representam-me a mim e, em última análise, representam-se a vós próprios.

(C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya

[1] DeRose, Quando é Preciso Ser Forte, pg. 123.

[2] Programa do Curso Básico de Yôga, p. 68.

KUNDALINÍ, A ENERGIA CRIADORA

por Alexandre Ramos

 

“O Yôga é a arte de unir a alma individual (jívátmam) com a Alma Suprema (Paramátmam), de unir a kundaliní-shaktí que está adormecida no múládhára chakra com Shiva no sahásrara chakra” (Sivananda, 1953, p. 274)

 

Kundaliní é um termo sânscrito que pode ser traduzido por serpentina ou enroscada, aquela que tem a forma de uma serpente. O termo é feminino, deve ser sempre acentuado e pronunciado com o í final longo (DeRose, 1992, 1999, 2007). Segundo documentos indianos antigos, bem como autores contemporâneos, a kundaliní é uma forma de bioenergia latente no corpo humano, concentrada na base da coluna vertebral, na região dos órgãos genitais, transmissores de vida e força (White, 1977).

Apesar de ainda não ter sido identificada pela Ciência (White, 1977), a kundaliní não é um mito ou uma ilusão. Não é uma mera hipótese ou uma sugestão hipnótica. A kundaliní é uma substância biológica que existe no organismo. Ela não é psicológica, filosófica, ou transcendental. O seu despertar gera impulsos eléctricos através de todo o corpo, e estes impulsos podem ser detectados por aparelhos científicos modernos (Satyananda, 1984). No entanto, ela também não pertence ao corpo físico denso (annamáyákôsha), apesar de estar conectada com ele, mas sim ao corpo físico energético (pránamáyákôsha) (Descamps, 2005; Satyananda, 1984).[1]

A kundaliní está “adormecida” como uma serpente de fogo, enroscada 3 vezes e meia[2] em torno do svayambhu linga(m) (falo), no múládhára chakra,[3] o centro de força que todos possuímos junto à base da coluna vertebral e órgãos genitais (DeRose, 1992, 2007), ou seja, na base da nádí[4] sushumná[5] (Santos, 2000), obstruindo desta maneira o brahmadwára (a «porta» de Brahman, o Ser, a consciência suprema) (Eliade, 1954). Segundo Sivananda (1953), as 3 voltas e meia representam a Prakrití (a Natureza em geral) da filosofia Sámkhya e os seus 3 gunas (qualidades: tamas – inércia, rajas – movimento, e sattwa – equilíbrio), juntamente com os vikritis (o mental, a matéria e as suas múltiplas formas). De acordo com Satyananda (1984), as 3 voltas representam os 3 matras (uma unidade de tempo que corresponde a pouco menos de um segundo) do mantra ÔM, relacionados com o passado, presente e futuro; os 3 gunas: tamas, rajas e sattwa; os 3 estados de consciência: vigília, sonho e sono sem sonhos; os 3 tipos de experiência: experiência subjectiva, experiência sensual e ausência de experiência. A meia volta representa o estado de transcendência. Assim, as 3 voltas e meia dizem respeito à experiência total do universo e a experiência da transcendência.

Enquanto a kundaliní está adormecida, é como se fosse uma chama congelada, um fogo parado. Uma vez desperta,[6] é tão poderosa que o Hinduísmo a considera uma deusa, a Mãe Divina, a Shaktí[7] Universal (DeRose, 1992, 2007). “De facto tudo depende dela conforme o seu grau de actividade – a tendência do Homem à verticalidade, a saúde do corpo, os poderes paranormais, a iluminação interior que o arrebata da sua condição de mamífero humano e o catapulta em uma só vida à meta da evolução sem esperar pelo fatalismo de outras eventuais existências” (DeRose, 1999, p. 77, 2007, p. 58).

Podemos definir a kundaliní como uma energia física, de natureza nervosa e manifestação sexual (DeRose, 1992, 1999, 2007; Santos, 2000). Quando é despertada é conduzida pelo sistema nervoso central até ao cérebro. Mediante esse processo alquímico de transmutação da energia genésica em poder criador, exacerbam-se a inteligência, a criatividade, percepções e estados expandidos de consciência (DeRose, 2007). De acordo com a opinião dos antigos mestres, o aparelho reprodutor tem duas funções: a reprodução e a evolução. A kundaliní é a guardiã da evolução humana. Com o despertar da kundaliní dá-se a reversão do aparelho reprodutor e o seu funcionamento mais como mecanismo de evolução do que de reprodução, enviando para o cérebro um fino fluxo de “energia nervosa” muito potente (Krishna, 1985). O acordar dos chakras é um importante evento na evolução humana. Não deve ser confundido com misticismo ou ocultismo, porque com o acordar dos chakras há mudanças na consciência e na mente. Estas mudanças têm significativa relevância e relação com a vida do dia-a-dia. Com o despertar da kundaliní não apenas visões transcendentes têm lugar. Ocorre também o desenvolvimento da inteligência criativa e o acordar de faculdades supramentais. A kundaliní é a energia criativa; é a energia da auto-expressão. Não só a mente muda, bem como as nossas prioridades e afectos. Porém, esta transformação pouco tem a ver com a vida moral, religiosa ou ética de cada um. Tem mais a ver com a qualidade das nossas experiências e percepções. Tal como na reprodução, uma nova vida é criada. Ocorre como que uma metamorfose. Há até a possibilidade de todo o corpo físico ser reestruturado (Satyananda, 1984).

Por meio de técnicas esta «energia da serpente» pode ser despertada e guiada ao longo da coluna vertebral através de vários chakras até ao cérebro (White, 1977). O Tantra[8] fornece um curso graduado de maneira a despertar a kundaliní no Homem, fazendo-o atravessar várias etapas no caminho da grande consciência cósmica, que os Upanishads (comentários dos Vêdas[9]) descrevem como sendo o grande objectivo da vida do Homem. O culto tântrico, assim como os seus exercícios, têm influenciado continuamente o Hinduísmo e o Budismo. Esta influência é sentida desde o culto de gráma-dêvatá, no mais interior vilarejo da Índia, até ao mais elevado dêví-upásana dos grandes adwaitins (monistas) como Shankarácharya (788-820 d.C.). Penetrou até num ritual puramente vêdico: a meditação do gáyatrí mantra no sandhyá vandana. Os Tantras são, na realidade, escrituras comportamentais que passaram a existir como resultado do desejo hindu de não se satisfazerem, através dos tempos, com meras teorias em religião, mas trazer cada teoria ao teste da experiência concreta. O Vêda, sem dúvida, proclama a identidade do jívátmam, a alma individual, e do Paramátmam,[10] o Espírito Supremo. Porém, como redescobrir esta identidade perdida? Como purificar (sôdhana) e levantar (uddhára) a alma imersa em pecado e tristeza ao nível original da chaitánya (consciência) pura? É aqui que o Ágama ou Tantra vem em nosso auxílio e descreve o caminho da realização, passo a passo, de acordo com o adhikára (qualificação) de cada um (Sarma, 1967).

A kundaliní é um termo feminino por ser o Poder Ígneo, de natureza feminina, isto é, de polaridade negativa (DeRose, 1992, 1999). Na doutrina do Tantra Shakta, macho (Shiva) e fêmea (Shaktí) são dois princípios do universo. Estes dois princípios existem no interior de cada indivíduo (Rama, 1995). Shiva é a consciência suprema, imutável e eterna e Shaktí o seu poder cinético. O Universo é Poder. O Universo é uma manifestação da glória desta dêví (deusa) (Sivananda, 1979). Ela é identificada com shabda-brahman (o som primordial ou som do Absoluto: o mátriká mantra ÔM) (Eliade, 1954; Muktananda, 1994b; Van Lysebeth, 1990). Shaktí é, acima de tudo, uma força consciente e inteligente (Feuerstein, 2001). À escala cósmica esta Shaktí é designada pelo nome de mahakundalí, o Grande Poder enrolado. À escala microcósmica (humana) é denominada kundaliní, a enrolada, a energia que, no termo do processo involutivo que produziu o psiquismo e o corpo, continua a ser o suporte da manifestação individual (Michael, 1978). Porém, pensa-se que a kundaliní contém não apenas energia latente mas também memórias latentes, quer pessoais, quer transpessoais.[11] O modo moderno de entender este poder latente é em termos do inconsciente[12] (Rama, 1990).

A kundaliní é conhecida tradicionalmente como Durga, a criadora, Chandi, a feroz, sedenta de sangue, e Kali, a destruidora (Krishna, 1985). Por exemplo, quando ela acabou de despertar e somos incapazes de dirigi-la, é chamada Kali. Kali, a primeira manifestação da kundaliní é um poder terrível; é o poder inconsciente do Homem. Kali subjuga completamente o indivíduo, o que é representado pela sua dança sobre o Senhor Shiva. Isto acontece às vezes devido a instabilidade mental; neste caso, as pessoas ao tomarem contacto com o seu inconsciente vêem inauspiciosos e ferozes elementos – fantasmas, monstros, etc. (Satyananda, 1984). Krishna (n.d.), após ter despertado a kundaliní, escreveu: “Nada pode expressar a minha condição mais graficamente do que a representação de Shiva e Shaktí (na forma de Kali) pintada por mestres antigos, na qual vê-se Shiva prostrado na posição supina, indefeso, enquanto que a outra, de maneira absolutamente despreocupada, dança alegremente sobre o corpo do primeiro. O observador autoconsciente em mim, o assim chamado dono da estrutura carnal, agora completamente subjugado e posto fora de acção, constata que ele próprio está completamente à mercê, ou seja, falando literalmente, está aos pés de um poder que inspira pavor, totalmente indiferente àquilo que o dono pudesse pensar ou sentir, prosseguindo impassivamente com o corpo até à meta escolhida, sem mesmo conceder-lhe o direito de saber o que fez para merecer a injúria. Tenho todas as razões para crer que a representação foi planeada para pintar uma condição exactamente similar à minha por parte de um iniciado, o qual passou por uma provação igual” (p. 173). Quando Kali desperta desloca-se para cima para encontrar a manifestação ulterior, tornando-se Durga, a supraconsciente, que outorga glória e beatitude. Durga é a removedora das circunstâncias nefastas da vida e a dadora do poder e da paz que se libertam do múládhára chakra. Em suma, quando já somos capazes de dirigir a kundaliní e usá-
-la para propósitos benéficos, e nos tornamos poderosos à sua custa, é chamada Durga (Satyananda, 1984).

Na Índia, a kundaliní-shaktí também é conhecida por: bhujangí, kutilangí, shaktí, íshwarí, kundalí, arundhatí (Eliade, 1954, 1989), dêvátma shaktí (Swêtáshvatara Upanishad, citada por Rama, 1990), chiti (Muktananda, 1994a, 1994b), chiti kundaliní (Muktananda, 1994a), cit-kundaliní (Feuerstein, 1998), mahakundaliní (Santos, 2000), kúlakundaliní (Feuerstein, 1998; Sivananda, 1991), bhujanginí, phaní, nágí, chakrí, saraswatí, lalalná, rasaná, samkiní, rájí, sarpiní, mani, ashtá-vakrá, átma-shaktí, avadhútí, kuntí, entre outros nomes (Feuerstein, 1997). O despertar da kundaliní é designado por udghata (Sivananda, 1986; Vivekananda, 2000). O Tantra Álôka de Abhinava Gupta (citado por Feuerstein, 1998) distingue a púrna-kundaliní, a prána-kundaliní e a urdhwa-kundaliní. A primeira é o poder divino enquanto Plenitude (púrna); a segunda é o poder divino na sua manifestação de energia da vida (prána); a terceira é o poder divino enquanto serpente acordada movendo-se para cima (urdhwa).

Porém, o despertar da kundaliní não é exclusivo da prática tântrica; é a base de todas as modalidades de Yôga (Mookerjee, 1991). A palavra Yôga significa «união», e esta união pode ser entendida como a união de kundaliní-shaktí com Shiva (consciência pura) (Rama, 1990). Sivananda (1953) escreveu: “O Yôga é a arte de unir a alma individual (jívátmam) com a Alma Suprema (Paramátmam), de unir a kundaliní-shaktí que está adormecida no múládhára chakra com Shiva no sahásrara chakra” (p. 274). Ideias relacionadas com a kundaliní e os chakras podem também ser encontradas no Budismo Tibetano, no Tauismo, no Sufismo (C. Grof & S. Grof, 1994) e no Kalarippayattu (arte marcial indiana de origem dravídica) (Maliszewski, 1996) e no Budismo Zen coreano (C. Grof & S. Grof, 1994). Contudo, não devemos confundir o satori (iluminação repentina) do Zen japonês com o despertar da kundaliní, pois existem dezenas de livros sobre a experiência suprema dos grandes mestres japoneses ao longo dos séculos: Dogen, Daito, Mûso, Takuan, Hakuin, Suzuki, etc., mais nenhum nos fala de uma subida desta energia luminosa ao longo da coluna vertebral (Descamps, 2005).

Há também indícios de que a activação da kundaliní não é um fenómeno limitado às culturas orientais. Aparentemente, o mais antigo dos símbolos da kundaliní proveio da Índia. O signo hindu da kundaliní representa-a como um bastão central (a nádí sushumná, que corresponde à coluna vertebral), com duas linhas sinuosas laterais (as nádís idá e pingalá) que sobem serpenteando até à altura da cabeça. Inseridos na haste central estão os 7 principais dos chakras primários, representados por sete círculos. Este símbolo foi aborvido pelos gregos (caduceu de Hermes, ou de Mercúrio, para os romanos), judeus (Árvore Sephirotal) e cristãos (Santo Graal) (ver DeRose, 2007).

Em África, as danças do povo bosquímano !kung, que habita o deserto do Kalahari, a noroeste do Botswana, têm como finalidade “esquentar” uma força cósmica de cura chamada n/um (literalmente: remédio) que se encontra na base da espinha. Esta força é passada de uma pessoa a outra por meio de um contacto físico directo, de modo a atingir !kia, o estado de transcendência. Este povo realiza regularmente rituais que duram toda a noite, nos quais as mulheres sentam-se no chão, batucando, e os homens andam em círculo, com movimentos rítmicos monótonos. Uns após outros, os participantes entram num profundo estado modificado de consciência, associado à libertação de emoções fortes, tais como: a raiva, a ansiedade e o medo. Em geral, são incapazes de manter uma posição vertical e são acometidos por violentos tremores. Em prosseguimento a essas experiências dramáticas, eles entram em típico estado de êxtase (C. Grof & S. Grof, 1994; Katz, 1973; Sannella, 1992). Conceitos semelhantes à kundaliní e ao sistema dos chakras também existiram entre as tribos indígenas norte-americanas. Os hopis, por exemplo, imaginam centros de energia que se parecem muito com os chakras (C. Grof & S. Grof, 1994). Também é difícil acreditar que o fenómeno do despertar da kundaliní fosse desconhecido na Europa pré-moderna, considerando-se o fascínio que a Alquimia e a Magia desfrutavam desde longa data. Podemos nós acreditar com seriedade que os antigos druidas ignoravam essa força? Ou que os místicos da cristandade antiga e medieval nunca experimentaram este fenómeno (Sannella, 1992)? De acordo com Eliade (1954, 1989), a kundaliní corresponde ao poder sagrado experimentado como um calor extremo nas iniciações militares. Para este autor, vários termos do vocabulário “heróico” indo-europeu (e.g., furor, ferg, wut, ménos) exprimem justamente esse “calor mágico” e essa cólera que caracterizam, nos outros planos da sacralidade, a incorporação do “poder”; tal como um yôgin (praticante de Yôga) ou um xamã (adepto do Xamanismo), o jovem herói “aquece” durante um combate iniciático. Além disso, segundo Weil (1977), o próprio símbolo da Medicina convencional, a serpente de Hipócrates, é nada mais nada menos que, a kundaliní. Assim, segundo Satyananda (1984), há muitas pessoas que podem despertar a kundaliní. Não somente santos e saddhus (praticantes de Yôga que renunciaram à vida profana), mas também poetas, pintores, guerreiros, escritores, etc.

Quem tornou disponíveis as informações acerca da kundaliní junto a grandes audiências ocidentais de forma geral e popular, foi o indiano Gopi Krishna (1903-1984), fundador da Kundaliní Research Foundation, Ltd. (S. Grof & C. Grof, 1995). Na sua opinião (Krishna, n.d.):

Esse mecanismo, conhecido como kundaliní, é a verdadeira causa de todos os fenómenos espirituais e psíquicos autênticos, é a base biológica da evolução e do desenvolvimento da personalidade, a origem secreta de todas as doutrinas ocultas e esotéricas, a chave mestra para o ainda não resolvido mistério da criação, a fonte inesgotável da filosofia, da arte e ciência, e o manancial de todas as crenças religiosas, presentes, passadas e futuras. (p. 199)

 

Sivananda (1953, 1956, 1986) realça que nenhum samádhi é possível sem despertar a kundaliní, que se encontra latente na base da coluna (múládhára chakra). Sivananda (1953) escreveu: “Até um vêdantin (um estudante do Jñána YôgaYôga do conhecimento) para conseguir o jñána nishtha (esclarecimento), só mediante o despertar da kundaliní que está adormecida no múládhára chakra. Não é possível o estado supraconsciente ou samádhi sem despertar esta energia primordial, quer se trate de Rája Yôga (Yôga mental), Bhakti Yôga (Yôga devocional), Hatha Yôga (Yôga do esforço físico violento) ou Jñána Yôga” (p. 128). Por isso, Muktananda (1994b) salienta que não há conhecimento mais importante do que o conhecimento da kundaliní.

 

 

 

 

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[1] A maioria das escolas filosóficas de inspiração orientalista, adopta a divisão didáctica em 7 níveis de actuação do ser humano no universo, em ordem de subtileza crescente. Desses 7 veículos de manifestação da consciência, os 4 primeiros (corpo físico denso, físico energético, emocional e mental concreto), considerados concretos, chamam-se quaternário inferior ou personalidade (simbolizados pelo quadrado); os 3 mais subtis (corpo mental abstracto, intuicional e mónada), considerados abstractos, denominam-se tríade superior ou individualidade (simbolizados pelo triângulo). Para os reencarnacionistas, a tríade é a parte que reencarna e o quadrado consome-se totalmente, entre uma encarnação e outra (DeRose, 1992).

[2] Alguns tratados referem 8 voltas em vez de 3 e meia (Eliade, 1954).

[3] Termo sânscrito que pode ser traduzido por roda ou círculo. Chakras são centros de captação, armazenamento e distribuição do prána, a energia vital. Estes centros de força estão situados em todo o corpo humano; contudo, os 7 principais localizam-se no plano médio-sagital (ao longo da coluna vertebral, intercílio e topo do crânio). De cada chakra principal partem algumas correntes (nádís) para distribuir o prána pelos chakras secundários (DeRose, 1999, 2007).

[4] Termo sânscrito que pode ser traduzido por rio, torrente ou corrente. São canais do corpo físico energético, análogos aos meridianos da Acupunctura, que vascularizam todo o corpo (DeRose, 1999, 2007).

[5] As principais nádís são idá, píngalá e sushumná; todavia, esta última é a mais importante, pois é por ela que a kundaliní deverá ascender. Corresponde espacialmente à espinal medula (DeRose, 1999, 2007). É uma nádí bipolar. É muito atrofiada no homem comum, permitindo apenas a passagem do mínimo de energia, necessário à manutenção das suas limitadas aptidões. Através da prática do Yôga a sushumná desenvolve-se, ocasionando a ascensão da kundaliní e o desenvolvimento total das faculdades pertinentes ao homem (Straube, n.d.).

[6] Segundo Muktananda (1994b), apesar de falarmos no despertar da kundaliní, a verdade é que ela já está desperta em todas as pessoas. A partir do centro do corpo, no múládhára chakra localizado na base da coluna vertebral, ela controla e mantém todo o sistema fisiológico, através da rede de 720 milhões de nádís. Kundaliní é o suporte das nossas vidas; é Ela que faz tudo trabalhar nos nossos corpos. Também para Irving (1998), embora expressões como «activação da kundaliní» ou «despertar da kundaliní» sejam usadas para descrever o fenómeno, a kundaliní, na realidade, está sempre activa no corpo. Comummente, porém, a kundaliní opera numa frequência tão baixa, que não damos conta dela. Termos como «despertada» referem-se tão só a uma activação altamente aumentada, em que a kundaliní atrai, de maneira demonstrável, a atenção do indivíduo.

[7] Termo sânscrito que pode ser traduzido por energia ou força. Por extensão, esposa ou companheira no sádhana (prática, ritual) tântrico. É também um nome ou qualidade da Mãe Divina e, consequentemente, designa também a kundaliní (DeRose, 1999). Segundo o Tantra Shakta, a energia (shaktí) no ser humano polariza-se em duas formas, a saber, a estática ou potencial (kundaliní) e a dinâmica (as forças activas no corpo, como prána). Por detrás de toda a actividade há um fundo estático. Este centro estático é o «poder serpentino» do múládhára chakra, localizado próximo da base da coluna vertebral e órgãos genitais (Woodroffe, 1978).

[8] Termo sânscrito que pode ser traduzido por tecido ou rede. Tantras são livros da Índia antiga, provavelmente de origem pré-ariana (DeRose, 1999). O termo “Tantrismo” é ocidental (Riviére, 1962).

[9] Os quatro Vêdas (Rig Vêda, Yajur Vêda, Sama Vêda e Atharva Vêda) são as mais antigas escrituras do Hinduísmo. Vêda provém da raiz vid, conhecer; pode ser traduzido como revelação (DeRose, 1999). Compreendem várias categorias de escritos cujo período de formação está compreendido entre 1400 e 400 a.C. (Eliade & Couliano, 1995).

[10] De acordo com os textos clássicos, o jívátmam, a consciência humana ordinária, isto é, a consciência de um ser encarnado e limitado, habita o chakra do coração (anáhata), enquanto o Paramátmam, a Consciência incondicionada, infinita e perfeita, habita o chakra do topo da cabeça (sahásrara) (Michael, 1979).

[11]Transpessoal” (literalmente: “além do pessoal” ou “além da personalidade”) significa transcender o modo usual de perceber e interpretar o mundo a partir de uma posição de ego individual ou ego corporal (C. Grof & S. Grof, 1994).

[12] Na Psicanálise, o inconsciente designa o sistema que, segundo a primeira teoria proposta por Sigmund Freud (1.ª tópica), constitui o aparelho psíquico, juntamente com o sistema pré-consciente/consciente. É formado pelas pulsões e pelos materiais recalcados. Freud ao lidar com os seus pacientes, deu-se conta que havia conteúdos psíquicos (desejos, lembranças, etc.) de que o indivíduo não só não tinha consciência, como eram contrários, chocavam essa consciência e por isso eram mantidos fora dela pelo processo de recalcamento. Mais, eram esses conteúdos e a energia que lhes estava ligada (libido), que davam origem às perturbações psicológicas (neuróticas em particular), aos sonhos e aos actos falhados do quotidiano. O seu funcionamento rege-se pelo princípio do prazer. É o conceito-chave de toda a Psicanálise, ao ponto de se poder dizer que esta é, no fundo, o estudo e a abordagem dos conteúdos inconscientes (Pestana & Páscoa, 1998). Mas, para Jung (1995), ex-discípulo de Freud, o inconsciente pessoal nada mais é do que uma camada que assenta numa base de natureza inteiramente diversa: o inconsciente impessoal, suprapessoal ou colectivo. A razão desta denominação está na circunstância de que, ao contrário do inconsciente pessoal e das suas imagens meramente pessoais, os conteúdos do inconsciente mais profundo (os arquétipos) são de natureza nitidamente mitológica e são totalmente universais. Isto significa que essas imagens coincidem, quanto à sua forma e ao conteúdo, com as representações primitivas universais que se encontram na raiz dos mitos. No entanto, isso não quer dizer, em absoluto, que essas imaginações sejam hereditárias; hereditária é apenas a capacidade de ter tais imagens, o que é bem diferente.