Uma rajada fortíssima assobia lá fora:
– Que ventania!
Durante 5 segundos a minha atenção fixa-se no silvo do ar na janela e sinto a aragem ligeira que chega à minha pele. Mas o meu pensamento, tal como o vento que passa, não tarda em voar para outras paragens. Na Internet uma notícia corre pela rede global:
– Avião cai, ao tentar aterrar na Jamaica e parte-se em três partes. 44 feridos.
Se a notícia interessasse ao mundo inteiro – como a tragédia provocada pelo tsunami do Natal de 2004 – milhares de milhões de pessoas tomariam consciência dela em poucos dias.
A Humanidade estendeu uma rede global de comunicação por todo o planeta. Em minutos tomamos consciência de acontecimentos do outro lado do mundo. A informação circula por teias globais que envolvem o planeta e que, tal como a famosa world wide web, estão construídas de tal modo que a informação continua a chegar de um ponto ao outro, mesmo que uma parte da teia se rasgue.
As tecnologias aumentaram muitíssimo a nossa rapidez de comunicação. Mas cabe perguntar:
– Será que a ciência e as impressionantes tecnologias de comunicação e de observação de que dispomos hoje nos têm feito mudar algo de essencial ao nível da nossa consciência da vida e do mundo?
Em primeiro lugar convém dizer que talvez seja prudente desconfiarmos bastante da nossa consciência. O que se pode esperar de um ser que pensa sobre o seu próprio pensamento? É natural que essa reflexão lhe pregue muitas partidas! A História tem-nos demonstrado que assim é. Os modelos cosmológicos, sempre “modernos” e sempre “científicos” que temos inventado para descrever o mundo são exemplo disso. Quando a nossa consciência não ia muito além de uma imensidão de areia, de alguns oásis e de alguns pequenos mares, acreditávamos que todo esse mundo enorme tinha sido criado para “nós”! Depois, circum-navegámos o mundo, mas, apesar da escala do zoom ter mudado, continuámos a acreditar por muitos anos que a enorme esfera coberta de oceanos fora “criada para nós”.
– E quem éramos“nós”?
Nessa altura “nós” éramos os navegadores de pele branca (embora por vezes bem mais suja do que a dos nativos, devido à escassez de água no interior das caravelas) e tão confiantes estávamos nessa versão do mundo que a ensinávamos a todos os “outros” que íamos encontrando em cada pedaço de terra que descobríamos…
Foram tempos de descobrimento e glória para uns, de tragédia e desenraizamento para outros. Marcas muito fortes ficaram. Mas esse tempo passou.
Somos Uma Só Espécie
Contemplando esse tempo nota-se, hoje, uma grande evolução na nossa consciência como espécie: finalmente fomos capazes de incluir toda a humanidade naquilo a que chamamos “nós”.
É verdade que as religiões há muito que nos falavam dessa fraternidade. Quem queria acreditar acreditava. Mas a demonstração racional tardou a chegar. A ciência demorou mas acabou por demonstrar, pela via da genética, que somos uma espécie única e que nem sequer faz sentido falar em “raças humanas” (para essa consciencialização global ajudou muito percebermos que, afinal, sempre descendemos todos de uma mesma tribo do Vale do Rift em África).
Para trás ficou o tempo em que imaginávamos que outros seres humanos que nos rodeavam eram diferentes de nós, irracionais, não-pensantes, enfim “outros”.
No mínimo podemos dizer que “a nossa mente se tornou bastante mais elástica”.
Dir-se-ia que com esse passo fomos capazes de fazer um primeiro “zoom de consciência”.
Toda a Biosfera está Ligada
Agora foi se como se aprendêssemos a colocar vários tipos de lentes em frente à “objectiva” da nossa mente.
Usando uma primeira lente do tipo “grande angular” descobrimos que toda a biosfera – o conjunto dos seres vivos deste planeta – está intimamente ligada e que fazemos parte dela. Começamos agora a tomar consciência de que a nossa espécie não é a “dona do mundo”, mas que simplesmente o habita e que todas as outras espécies não existem apenas como “alimento”, ou como “carne para canhão” das nossas experiências “científicas”.
Aumentando o zoom da nossa consciência começamos a aperceber-nos que a própria consciência, afinal, se apresenta em muitas e diversas formas e que essa consciência, longe de ser única e objectiva, depende da biologia de cada uma das diferentes espécies do nosso planeta…
Depois, recorrendo aos nossos telescópios e rádio-telescópios, na terra e em órbita, continuámos a fazer zooms cada vez mais abrangentes, alargando as nossas fronteiras para dimensões antes inimagináveis – estrelas distantes, quasars, buracos negros, galáxias, enxames de galáxias, escalas de tempo e de espaço onde os zeros se acumulam às dezenas e às centenas, à direita dos algarismos com que numeramos a nossa régua de escala.
E, no outro extremo da escala do zoom, usando microscópios electrónicos e aceleradores de partículas, fomos descortinando mundos infinitesimais, com multidões de novas partículas constituintes da matéria e que desafiam as antigas fronteiras entre a matéria e a energia, e entre aquilo a que chamámos forças e campos.
– Mas será que o pensamento egocêntrico desapareceu definitivamente da nossa consciência?
Princípio Antrópico
Parece-me que não! Continua cá. Vai apenas mudando de nome. Senão vejamos.
Apesar de todos os avanços científicos e tecnológicos a que temos vindo a assistir, sobretudo no Século XX, alguns eminentes cientistas – notando a existência de um “curioso conjunto de coincidências” nas leis físicas que regem o nosso Universo, continuam a perguntar-se se o Universo existe da forma que existe de modo a possibilitar a nossa existência.
De facto bastaria que algumas relações existentes entre várias constantes físicas fossem ligeiramente diferentes – a constante gravitacional, a massa do protão, a idade do universo, etc. – e a vida, conforme nós a conhecemos hoje, não existiria.
O apelido mais recente que encontrámos para esta forma de pensamento foi “princípio antrópico” e não será certamente o último nome de baptismo desta corrente de pensamento.
Aliás, se retirarmos do centro a palavra anthropos (humano), colocando lá “Vida”, ou “Complexidade” (neste caso em oposição ao caos e à entropia), apenas o nome mudará, porque estaremos sempre pensando num universo que foi criado para “nós”, ou para aquilo que nós representamos.
Se assim for, por mais zoom que façamos, a nossa mente continuará a enganar-nos!
Se não mudarmos o paradigma, continuaremos eternamente a perguntar-nos se todo o Universo foi criado apenas e só para que a vida e a consciência, tal como a conhecemos, pudesse existir neste pequeno planeta azul flutuando na imensidão do espaço.
Por outro lado se nos colocarmos do lado oposto, dizendo que nada tem significado e que estamos aqui absolutamente por acaso, estaremos a ser no mínimo “pouco económicos” e, também, um pouco ignorantes das leis da estatística. Estaríamos do lado daquela corrente de pensamento que acredita que a Vida, em toda a sua complexidade, se montou por tentativa e erro, um pouco ao jeito de um mecânico preguiçoso – mas com todo o tempo do mundo – que colocasse um Boeing 777 totalmente desarmado dentro de um hangar de paredes resistentes, gerasse um enorme turbilhão de vento e esperasse para ver quando é que tudo se montava na perfeição.
Mas talvez não seja preciso preciso escolher entre uma ou outra das correntes. Talvez seja possível rejeitá-las a ambas e tentar uma abordagem diferente.
Um Zoom Diferente
E se ousássemos usar a nossa “máquina de olhar para o mundo” já não apenas para fazer zoom de consciência, mas para nos libertar das amarras do pensamento egocêntrico?
Na realidade trata-se de uma “atitude de pensamento” muito fácil e acessível. Todos nós conseguimos fazê-lo e na realidade estamos a fazê-lo desde que nascemos. E até antes…
Como foi que a nossa mãe nos gerou? Ela não “pensou” em criar-nos, nós simplesmente “fomos acontecendo nela” e ela foi-se limitando a observar (provavelmente com aquele sorriso de grávida), à medida que nos desenvolvíamos no seu seio.
Seria absurdo que ela pensasse que a sua mente racional poderia controlar e comandar cada um dos fenómenos biológicos que levaram à “construção do nosso ser”.
– Mas será que ela não teve consciência do nosso processo de gestação?
– Teve sim! (Daí o tal sorriso.)
Simplesmente ela não teve uma “consciência egocêntrica” desse processo.
Durante essas quarenta semanas nenhuma mãe terá a veleidade de pensar, certamente, que é a sua mente racional que está a trabalhar activamente para controlar os vários estádios de desenvolvimento do feto. A mãe sabe que “algo se está construindo” e acredita (com muita esperança mas com com algum temor também) de que tudo irá “correr bem”. Mas ela sabe que a sua consciência racional tem pouca intervenção no processo de gestação.
Não quer isto dizer que a atitude da mãe se baseie apenas na passividade, na esperança e na fé. Não! Embora ela tenha a sensação que o seu filho é, para ela e durante esse período, o “centro do mundo” ela também sabe que o mundo não existe apenas para gerar o seu filho.
Por isso ela alimenta-se o melhor possível, consulta médicos, faz exames, enfim, faz tudo o que está ao seu alcance para que tudo corra bem.
Embora não seja a sua mente racional que está a construir o bebé, na verdade todo o seu ser (incluindo em boa parte essa mente racional) se empenha para que nasça um belo e saudável bebé.
– E o feto?
Que consciência teve do seu próprio processo de gestação? Pensou nele? Controlou-o?
Perguntando de outra maneira: será que desde o tempo em que vivemos nesse pequeno mundo morno e protector, que esteve durante nove meses à nossa disposição, continuamos a acreditar que o mundo exterior (por mais zooms que façamos) foi criado e continua a existir apenas para nós?
Um Universo Impregnado de Consciência
Se conseguirmos libertar-nos dessa ideia de que o mundo existe para nosso uso, ou que foi construído (ou evoluindo ao acaso) para que existamos, quanto tempo levaremos a concluir que (tal como o bebé que geramos) o universo não existe só para nós, mas que também está a ser gerado por nós, porque fazemos parte integrante dele?
De quanto tempo necessitaremos para concluir que o Universo está impregnado de consciência? De quanto tempo precisaremos para sentir que o Universo é, afinal, apenas um grande novelo de nada, produzido continuamente por essa mesma consciência?
A nossa mente racional não sabe, provavelmente, responder a esta pergunta. Mas se a nossa intuição responder que não precisamos de tempo para pensar, porque já “sentimos” isso há “bastante tempo”, muitas outras perguntas surgirão…
O Vento, Poderá ele Pensar em Mim?
Tomo consciência de uma nova rajada de vento lá fora.
– O vento continua a soprar forte!
E penso:
– E o vento? Poderá ele pensar em mim?
De repente tenho consciência de um ligeiro ardor no meu pé – será que uma pequena comunidade de fungos resolveu atacar os dedos do meu pé direito?
E se o planeta nos sentisse? Se ele sentisse que alguns seres vivos que habitam na sua crosta são como uma espécie de infecção na sua pele?
Numa floresta do Oregon há um fungo que é considerado o maior organismo vivo – ocupa cerca de 9 km2 e pesa mais de 600 toneladas. Se o nosso planeta “pensasse” numa escala de tempo proporcional ao seu tempo de vida – que é de 10 mil milhões de anos – quanto tempo duraria para ele um pensamento que para nós demora 5 segundos? É uma conta simples de fazer: 20 anos!
Poderíamos brincar com esse pensamento dizendo: “Em 20 anos o nosso planeta toma consciência de que uma infecção (um fungo no Oregon, ou… a humanidade) alastra na sua pele.”
E, já agora porque não perguntar: quanto tempo levará ele a reagir? Sabem que mais, agora o que me apetece mesmo é coçar o dedo grande do meu pé.
– Por isso, até depois! E, já agora, Feliz Natal!!!
– Oh! Oh! Oh! – ri o Pai Natal, afinadíssimo.
(E, dizem as más-línguas, foi essa vibração perfeita, a ecoar no nada, que fez nascer o mundo.)
José Patrão
Zoom sobre Agora 24 de Dezembro de 2009