Y – Revista Online

“Assim falava Zaratrusta” de Nietzche.

Texto para a reunião do Círculo de Leitura de Abril de 2019

Não concordo em muito com este filósofo que pensa a metafísica ocidental levando-a ao extremo do nihilismo (nihil – nada). Dado que o Ser é apresentado como algo dado e que não se põe em causa, este filósofo, pensando, de modo não sistemático, o sistema platónico, quer levar a metafísica a um ponto de negação do Ser. Devemos, também a Nietzche a construção de uma uma crítica de combate ao positivismo, com a afirmação da primazia de tudo aquilo que é interno e instintivo.
É também este filósofo que abre caminho, com a sua obra Origem da Tragédia, primeiro ao que, mais tarde a antropóloga Ruth Benedict (Padrões de Cultura), vem a transformar em modelo científico para análise da natureza das sociedades. Nietzche, nesta obra distingue dois grandes princípios que serão a matriz da cultura europeia: princípios fundamentais, e que irão servir de matriz para analisar a cultura Europeia: o Apolíneo e Dionisiaco.
O princípio Apolíneo (por referência ao deus sol, o deus Apolo), tem as características da serenidade, claridade, medida, racionalidade. Corresponde à imagem que se tem da Grécia antiga e clássica. Grécia dos grandes filósofos Sócrates e Platão. Mais tarde a Dr.ª Benedict vem a referir estas sociedades como sendo também sociedades de paz, de pouca inovação e governadas por idosos, onde têm uma posição respeitável e respeitada.
Já o princípio Dionisíaco (do deus Dioniso – se se recordarem do estudo comparativo de Alain Daniélou, Dionisio é o Deus de Niza, ou seja Shiva), simboliza as forças impulsivas, o excesso transbordante, o erotismo, a orgia, a afirmação da vida e dos seus impulsos (força, vontade, poder, energia). Para a Dr.ª Benedict, são sociedades governadas por jovens, por impulso e pouca reflexão.
Estes princípios estavam presentes na tragédia e na cultura grega, até Sócrates. Sócrates, como asceta que também era, acaba por conseguir o estado de Sattwa, embora não use este termo, pois submete os excessos dos impulsos vitais e a sua energia excessiva, sem os negar, ou ignorar, à análise e escolha da razão. Para Nietzsche tal é o início da decadência da tragédia. Para Nietzche a dupla Sócrates/Platão marca na cultura ocidental a repressão dos instintos vitais e a negação do prazer.
Porém, Nietzche não deixa de ser influenciado por aquilo que combate e nega. Aliás afirmar algo ou o seu contrário, acaba por ser, em termos filosóficos muito semelhante. Pois a concepção filosófica deste pensador assenta num conceito muito caro à Grécia clássica – o princípio do eterno retorno. Tudo tende para o seu início. O cidadão grego, pode viajar por todo o mundo que tenderá a retornar à polis de onde saiu. O universo, o cosmos, pode organizar-se que tenderá a retornar ao seu início. Ou seja, tudo voltará a repetir-se num novo ciclo. Este pensamento leva Nietzche a propostas políticas que são o suporte filosófico do fascismo e do nazismo. Com a decadência anunciada por Sócrates/Platão, a decadência da cultura ocidental acentua-se com o cristianismo e consagrada pelos regimes democráticos e a ascensão dos pobres e desfavorecidos ao poder. Tal decadência só terminará com a transformação do homem, que deverá transmutar-se e elevar-se. Deste homem transmutado deverá surgir o Super-Homem. E apenas essa pequena elite, dos que alcançaram tal condição, deverá governar. É óbvio que este pensador alemão se opõe ao igualitarismo, ao humanismo e à democracia.
Nos textos de Nietszche há muito de verdade no caminho de ascese preconizado pelo Yôga. Atente-se:
«O corpo purifica-se pelo saber; eleva-se por tentativas conscientes; para o servidor do conhecimento todos os instintos são sagrados; e, chegados ao cume, a alma enche-se de alegria.»

«Imitai o vento que se lança para fora das cavernas da montanha. Ele quer dançar ao som da sua própria flauta, e os mares estremecem e ondulam debaixo dos seus passos.»

«Elevai os vossos corações, meus irmãos, erguei-os alto, e mais alto ainda! Erguei também a perna, bons dançarinos, e melhor ainda: mantende-vos um pouco sobre a vossa cabeça.»

«Nesse instante, o vosso corpo eleva-se acima de si próprio e ressuscita. A sua alegria encanta o espírito que se torna criador; e, tornado criador, ele avalia, ama e prodigaliza as suas dádivas a todas as coisas.»

Mestre João Camacho

RAMAYANA

Texto para a reunião do Círculo de Leitura de Março de 2019

 

A Bela Ayôdhya estava cheia de guerreiros, como a caverna de uma montanha está
cheia de leões; seus guerreiros eram impacientes e mortais para os inimigos. Cada um deles
era capaz de derrotar, sozinho, dez mil carros, mas nenhum se aventurava a acomete-las.
Mantinham a cidade segura e tentavam desagravar todo e qualquer agravo que se lhes
deparasse.
(….)
Sentinelas correram para Malyavan, e os bravos Nómades da Noite ergueram-se no céu. Seus carros e elefantes chegaram correndo pelo ar; os graciosos cavalos de guerra, que voavam céleres, vermelhos, brancos e azul-pálidos, moviam-se lentamente em círculos e escarvavam o firmamento. Garuda voou para o ataque. Narayana ficou escondido pelos enxames de setas dos demónios, que batiam duro, voavam de verdade e estavam com sede.
Os cavalos dos demónios tropicaram. O barulho do arco de Narayana petrificou-lhes os elefantes, que caíram do céu e se quebraram. Os pendões de guerra agitavam-se loucamente, o sangue inundava os rios.
(….)
Nas ruas, carregando tochas, Hanuman viu as patrulhas nocturnas de guerreiros rakshasas de todas as nações de demónios, trajados segundo a mais rica e régia pompa
heráldica, ou estadeando penas e rémiges, ou usando peles cruas em decomposição, ou caminhando nus com a cabeça raspada. Estavam armados de maças tachadas, facas, zarabatanas ou punhados de relva santa convertida, por artes mágicas, em lanças e azagaias.

TÁNDAVA

Um dos sistemas indianos antigos é designado como Tándava. O Tándava, ainda hoje conhecido como uma das «danças» de Shiva, era na uma arte marcial secreta, praticada como técnica suplementar do Yôga pré-clássico, o Yôga de Shiva, com mais de 6000 anos. Era um
Yôga Dakshinacharatántrika Niríshvarasámkhya.
Deste sistema provirá o Kempo (designação japonesa para o sistema de luta de Shaolin).
O Tándava, a dança da delimitação do espaço vital. É parecido com um Kata das artes marciais, dos estilos internos e constitui uma arte marcial secreta muito antiga. Kim Min-Ho, afirma que na Índia, existem métodos de combate estruturados, baseados nas técnicas de Yôga.
Por sua vez, Patrick Denaud declara aspectos bastante interessantes. Desde logo, que nesta arte marcial indiana as técnicas utilizadas são próximas das do Yôga. Sobre as origens do Kalaripayat diz este autor que se confunde por vezes com as origens do Yôga. Mas, o mais interessante
é chegar, neste livro, à secção “Limpeza e purificação do corpo”. Isto quando o autor começa a descrever as técnicas utilizadas, como os pontapés, os socos, o tiro com arco, etc… Mas na limpeza e purificação este autor compila as seguintes técnicas: Dhauti – Empregam-se quatro procedimentos para purificar o corpo: a lavagem estomacal (antardhauti), a limpeza da cavidade
bocal (dantadhauti), a limpeza do peito (hrddhauti) e a purificação do recto (múláshôdhana). E indica
ainda outras técnicas contidas no shat karma, nomeadamente vasti, nêti, lauliki, trátaka, kapálabhati.
Numa obra tardia, do séc. X, Shiva, designado por Tripurahara, o destruidor das três cidades dos Asura, também é apresentado como arqueiro:

O teu carro era a Terra, e Indra o teu cocheiro,
E o Senhor das montanhas eram o Sol e a Lua,
E Vishnu a tua flecha,
Quando ias destruir pelo fogo,
Tripura,
Aquele pedacinho de palha!

Shiva também tem um exército (buthagana – exército de demónios) do qual Ganêsha é o comandante-em-chefe. Para além de ser o Deus da Guerra, como acima se referiu, Shiva é também le dieu des soldats, como surge em L'Hymne aux Cent Rudras de Vájaseneyi
Samnita (Yajur Vêda, 16, I)
Tu portes un arc jaune, un arc d’ or
Qui agride frappe mille, qui tue cent, ô Dieu chevelu.

TENJIKU-NURANOKAKU

Arte marcial do sul da Índia, igualmente antiga, cujos mestres a entendem como um sistema de combate muito eficiente e uma forma de o guerreiro se preparar para a guerra, mas acerca do Yôga, dizem ser a arte suprema.
É considerada a origem directa do Shorinji Kempo (japonesa) e do Kalaripayat (indiana), também designado por Vajramushti, punho como um raio.
Não se sabe ao certo qual das artes marciais indianas acima indicadas é a mais antiga, mas poderá pensar-se que a mais antiga será o Tándava, técnica suplementar do Yôga. Min-Ho confirma-o dado que en Inde, ont existé des méthode de combat structurées, basées sur des techniques de Yôga, tanto mais que Shiva, o criador do Yôga, é muitas vezes representado como
guerreiro, que tem como emblema principal a trishula, a lança tridente, a sua arma como herói.
Shiva é muitas vezes representado portando armamento como um guerreiro. E representado com uma espada (….) um laço, um escudo e ainda armado de arco e flechas, sendo designado, quando assim é, como Sharva (o arqueiro). Ou ainda, nas palavras de Danielou
Shiva apparut (….) portant un arc et un trident, o arco de Shiva tinha o nome de Pinaka. E, maxime, Shiva é também o Deus da Guerra (somaskanda).
Sistemas de combate foram estudados e praticados na China, ao contrário do que é hábito afirmar, muito antes da ida de Bôdhi Dharma para Shaolin (ano 525 d. C.). Parece que só se pode especular, contudo é certo que a Índia manteve estreitos contactos histórico-culturais com
muitos países do Oriente Antigo e com o mundo greco-romano (….) já era habitada na mais remota
antiguidade e que já no VII milénio a. n. e. a população cultivava muitos cereais, tinha domesticado o gado
bovino e estabelecido estreitos contactos com as culturas contemporâneas do Irão e da Ásia Central. A Índia
passou a fazer parte do grupo dos mais antigos focos de cultura do Oriente.
A influência deste foco de cultura fez-se sentir com grande intensidade no Sueste
Asiático, na Ásia Central e no Extremo Oriente. E é igualmente certo que sur le plan des
pratiques psychosomatiques et psychothérapeutiques, on constate une ressemblance étonnante entre les
pratiques du Yôga indien et celles du taoisme chinois.

Camacho, João; Original Kano Jûdô (1882-1938) Monografia para o exame para rôkudan em
Jûdô. Pg. 18-21

Simbolismos indianos do tempo e da eternidade

Texto para Círculo de leitura de Fevereiro de 2019

Simbolismos indianos do tempo e da eternidade

Função dos mitos

Os mitos indianos, antes de serem «indianos», são «mitos», quer dizer que fazem parte de uma categoria particular de criações espirituais da humanidade arcaica; por conseguinte podem ser comparados com qualquer outro grupo de mitos tradicionais. Antes de apresentar a mitologia indiana do Tempo, importa-nos recordar, de passagem, as relações íntimas existentes entre o Mito, como tal, como forma original do espírito, e o Tempo. Porque, além das funções específicas que preenche nas sociedades arcaicas, e sobre as quais podemos dispensar-nos de nos deter aqui, o mito é importante também pelas revelações que nos fornece sobre a estrutura do Tempo. Como se está de acordo em
admitir hoje, um mito relata acontecimentos que têm lugar in principio, isto é «nos princípios», num instante primordial e intemporal, num lapso de tempo sagrado. Este tempo mítico ou sagrado é qualitativamente diferente do tempo profano, da duração contínua e irreversível na qual se insere a nossa existência quotidiana e dessacralizada. Relatando um
mito, reactualiza-se de certo modo o tempo sagrado no qual se cumpriram os acontecimentos de que se fala. (Eis porque nas sociedades tradicionais se não pode contar os mitos em qualquer altura nem de qualquer maneira: só se pode recitá-los nas estações sagradas, na selva e durante a noite, ou em redor do fogo, antes ou após os rituais, etc.). Numa palavra, supõe-se o mito passado num tempo – se nos permitem a expressão –
intemporal, num instante sem duração, como certos místicos e filósofos vêem a eternidade.
Esta verificação é importante, pois segue-se que a recitação dos mitos não é desprovida de consequências para quem os recita nem para quem os escuta. Pelo simples facto da narração de um mito, o tempo profano é, pelo menos simbolicamente, abolido: narrador e auditório são projectados num tempo sagrado e mítico. Algures tentámos mostrar que a abolição do tempo profano pela imitação dos modelos exemplares e pela reactualização dos acontecimentos míticos, é como uma nota específica de toda a sociedade tradicional e que essa nota basta, por si só, para estabelecer a diferença entre o mundo arcaico e as nossas sociedades modernas. Nas sociedades tradicionais as pessoas esforçavam-se consciente e voluntariamente, por abolir periodicamente o Tempo, por apagar o passado e regenerar o Tempo, através de uma série de rituais que reactualizavam de certo modo a cosmogonia. Podemos deixar de entrar aqui em desenvolvimentos que nos afastariam muito do nosso assunto. Contentemo-nos em recordar que um mito arranca o homem do seu tempo próprio, do seu tempo individual, cronológico, «histórico», e o projecta, pelo menos simbolicamente, no Grande Tempo, num instante paradoxal que não pode ser medido porque não é constituído por uma duração. O que é o mesmo que dizer que o mito implica uma ruptura do Tempo e do mundo circundante; ele realiza uma abertura para o Grande Tempo, para o Tempo sagrado.
Pelo simples fato de escutar um mito, o homem esquece a sua condição profana, a sua «situação histórica», como se diz hoje. Não é absolutamente necessário participar numa civilização histórica para poder dizer de alguém que esse alguém se encontra numa «situação histórica».
O Australiano que se alimenta de insectos e de raízes encontra-se, também ele, numa «situação histórica», ou seja, numa situação bem delimitada, expressa numa certa ideologia e sustentada por um certo tipo de organização social e económica; na espécie, a existência do Australiano representa muito provavelmente uma variante da situação histórica do homem paleolítico. Porque a expressão «situação histórica» não implica necessariamente «a história» no sentido maior do termo; implica somente a condição humana como tal, isto é, uma condição regida por um certo sistema de comportamentos. Ora, tanto um Australiano como um indivíduo pertencente a uma civilização muito mais evoluída, um Chinês, por exemplo, ou um Hindu, ou um camponês de qualquer país europeu, ao escutarem um mito esquecem em parte a sua situação particular e são projectados num outro mundo, num Universo que não é já o seu pobre e pequenino Universo quotidiano.
Lembremos que, para cada um destes indivíduos, tanto para o Australiano como para o Chinês e para o Hindu e o camponês europeu, os mitos são verdadeiros porque são sagrados, porque falam dos Seres e dos acontecimentos sagrados. Por conseguinte, recitando ou ouvindo um mito, retoma-se o contacto com o sagrado e com a realidade e desta feita ultrapassa-se a condição profana, a «situação histórica». Ultrapassa-se, noutros termos, a condição temporal e a suficiência obtusa que é o quinhão de todo o ser humano pelo simples fato de todo o ser humano ser «ignorante», quer dizer que ele identifica-se a si e identifica o Real, com a sua própria situação particular. Porque a ignorância é, antes de
mais, essa falsa identificação do Real com o que cada um de entre nós parece ser ou parece possuir. Um político crê que a única e verdadeira realidade é o poder político; um milionário está convencido de que só a riqueza é real; um erudito pensa o mesmo das suas investigações, dos seus livros e dos seus laboratórios e assim por diante. A mesma tendência encontra-se igualmente nos menos civilizados, nos «primitivos» e nos
«selvagens». Com a diferença de que entre estes os mitos estão ainda vivos e, por conseguinte, os impedem de se identificarem completamente e continuamente com a não-realidade. A recitação periódica dos mitos arrasa os muros levantados pelas ilusões da existência profana. O mito reactualiza continuamente o Grande Tempo e deste modo projecta o auditório num plano sobre-humano e sobre-histórico que, entre outras
coisas, permite a este auditório aproximar-se de uma Realidade impossível de atingir no plano ida existência individual profana.

Eliade, Mircea; Imagens e símbolos, Ed. Arcadia, p. 59-61

Ásana, consciência, provação

Texto para reunião do Círculo de Leitura de Janeiro 2019

Ásana, consciência, provação

No caminho (marga) que o yôgi percorre, acontece ir muito longe nalguns aspectos, mais imediatos, como seja o aspecto físico, corporal. Mas noutras dimensões, mais subtis, por vezes tem a sensação de marcar passo. Há que ter presente que no aprofundar do Yôga há aspectos introspectivos muito importantes. Cada passo, mais do que um movimento físico, deve conter um todo de união entre o corpo e a meditação, entre o corpo e a mente. A ponte de uma tal prática, ainda que se expresse através da coreografia de ásana, obriga a uma precisão gestual e uma orientação da consciência ligada ao gesto. Ou seja, implica uma forma de praticar através de uma rotina repetitiva, acompanhada de um processo de interiorização e de um aprofundar do próprio na via, de modo cada vez mais decisivo, intenso, total. Abraçando os seus valores, as suas preposições, não só externamente, mas de modo interno, “derrubando barreiras” que se constituem obstáculo.

Ora, esta necessidade de interiorizar os valores do caminho (marga) a que o sádhaka se dedica, implica um esforço, constante e consciente, para ultrapassar o nível sensorial quotidiano ou ordinário. Por isso, qualquer que seja a técnica, num certo momento, a aprendizagem marca passo: o saber fazer é adquirido, mas a progressão estagna. Parece que as ondas recuam, mas ainda assim a maré sobe. Isto acontece porque a prática deve conduzir-nos a uma mudança qualitativa de atitude. Em suma, a coreografia de ásana é uma forma prática, transmissível de uma técnica de transformação do corpo e da consciência. A coreografia implica, ao mesmo tempo, um acto físico e um estado de consciência, acentua a interioridade e a subjectividade. Representa um modo de percorrer a via que nos conduz à perfeição, através da ideia de que percorrer o caminho é o fim em si mesmo. Os limites físicos, quotidianos, serão ultrapassados de modo excepcional, através de circunstâncias de treino que nos levam aos limites (vários e não só físicos). Quem quer percorrer o caminho que percorro, deve preparar-se para uma grande transformação, total, em todas as suas dimensões. Não se trata de procurar um momento de iluminação, de um momento de percepção de algo mais. Mas sim de forjar (mais uma vez o ferreiro, o grande demiurgo) um estado durável de consciência ampla.

Neste caminho, a fadiga, a dor, momentâneas, resultantes do esforço físico intenso, são como um apoio para o sádhaka se elevar do estado ordinário do corpo. Esta busca, o trilhar desta senda, implica viver outras experiências, novas pela maneira nova de apreender e organizar o vazio, o caminho não percorrido.

João Camacho, o Sono de Ganêsha. O poder adormecido

MEMORANDO – AS CORES

Texto do Círculo de leitura – dia 26 de Outubro de 2018

AZUL
1.Profundidade.
O azul é a mais profunda das cores. O olhar perde.se na profundidade do azul. Não encontra obstáculo algum e vai até ao infinito. Tal cor suaviza e desfaz formas. Uma superfície azul deixa de o ser. As formas e os movimentos perdem-se no azul, confundem-se com a própria cor. Já não sabemos se é o movimento que produz um efeito se é o azul que se move. É uma cor que desmaterializa tudo o que a ela se liga, que com ela se envolve.

2. Imaterialidade
O azul é a mais imaterial das cores. Na natureza surge feito de transparência, de vazio que se acomula, imaterial e, em simultâneo, denso. De densidade subtil e suave, como o vazio do ar, como o vazio da água, o vazio do cristal, ou o vazio do diamante. Surge, como o vazio em que se organiza, puro e frio. Na sua imaterialidade o azul é a mais fria das cores e, só perdendo para o branco, é, no seu valor absoluto, a mais pura das cores.
Pela sua profundidade é cor que absorve e sintetiza as contradições, as alternâncias, o ritmo da vida. O azul não é deste mundo, o azul contem em si a sugestão de eternidade, do sobre-humano. Sugere um movimento dirigido para o seu próprio cetro. Por isso, um ambiente azul transmite tranquilidade, mas não tonifica, não estimula, ao contrário do verde (por isso, também, em tempos usámos o azul turquesa, que, como saberão, é composto de azul e verde). O azul fornece como que uma evasão sem apoio no real, uma fuga que pode conduzir à depressão. Se o verde, igualmente profundo, dá a dimensão das coisas terrenas e do contentamento, o azul remete-nos para a solenidade e para o supraterreno. Mas também para a ideia de morte. É a cor da verdade, com que os egípcios, nas suas necrópoles, revestiam as cenas onde representavam o julgamento dos que se finavam. O azul é limiar.
Na Mesopotâmia o azul, na tonalidade lápis-lazúli, representava o outro lado da abóbada celeste. No cristianismo é de azul o manto que cobre, muitas vezes, a madona, mãe do menino.

3. Síntese
Quando olhamos o horizonte (e, nós que vivemos em Portugal podemos fazê-lo, como os asiáticos nas estepes horizontais o fazem. Podemos fazê-lo quando olhamos o mar, mas também, na planície alentejana), verificamos que o céu e a terra estão face a face.
O azul exprime o desprendimento em relação aos valores deste mundo, em direcção ao ouro da transcendência.
A safira, talvez a mais intensa das pedras preciosas, no seu azul, remete-nos para uma transcendência sublime. Na tradição hindu, Meru, o monte sagrado que já conhecem, tem uma face safira. E o azul dessa face tinge a atmosfera de azul, daí a cor do céu, que provém do monte da imortalidade.
O azul é, também, nalgumas tradições, a cor do dragão. Também de azul violáceo é Shiva representado em muita da iconografia indiana.
Pelo que tem de imaterial, o azul já foi usado, nalgumas tradições, como símbolo da renuncia e da passividade absolutas.

Safira azul – É uma das pedras mais duras que existe. É também entre as pedras preciosas, uma das mais apreciadas pelos iniciados. Dizem ser pretectora para aquele que a porta e que o seu azul evoca os reinos celestes a que os grandes iniciados se elevam.

OURO
O ouro é o mais puro dos metais e o mais perfeito. Na tradição indiana é a luz mineral. Tem natureza ígnea, solar e real. O ouro, dizem os bráhmanes, é a imortalidade. O ouro é a tradução metálica da vibração original. é como se fosse a reverberação do som matricial, ÔM, mas materializada. A sua materialização subtil tem concretização cosmológica na serpente da eternidade – Sêsha – a serpente com o rabo na boca, que simboliza a espiral de conhecimento. Mas que, noutras tradições, envolve a terra para que esta não se desintegre – Ragnarok, a serpente, que no fim dos tempos, ao acordar mexer-se-á e destruirá a terra, Midgard.
Um colar de ouro, transmitido, oferecido, por um iniciado, tem a função de transmissão de palavras transcendentes e poderosas, pois como metal da eternidade, comunga da capacidade criadora do verbo. O ouro simboliza o conhecimento esotérico, o conhecimento alquímico. Contem em si a ambivalência do sagrado e do imundo.
O ouro é uma arma da luz. Apolo, deus do sol, revestia-se de ouro – armadura, túnica, fivelas, lira, arco, aljava, etc….
Para os egípcios o ouro era a care do sol. O ouro-cor (dourado), o ouro-metal, são sim bolos solares.

PRATA
A prata está relacionada com a lua. Faz parte da cadeia simbólica de lua, água, princípio feminino. Se o ouro é princípio solar, masculino, a prata é princípio feminino, lunar, aquoso, frio. A cor prata é o branco. Em latim, prata diz-se argentum, que, derivando do sânscrito, significa branco e brilhante. Segundo a tradição do antigo Egipto, os deuses têm os seus ossos de prata. Pelo que tem de branco, comunga do valor absoluto desta cor, do que esta tem de pureza infinita. De toda a especie de pureza. É a luz pura, tanto do crista , como da água limpida, como dos reflexos do diamante. Remete-nos para a limpidez da consciência para a pureza das intenções.
Simboliza a água purificadora. Se o fogo e a água purificam, o ouro e a prata são a materialização daqueles elementos. Os objectos de prata, pessoais, escurecem quando o seu proprietário está em perigo.

VERDE
O verde fica entre o amarelo e o azul. Se faz a síntese cromática entre estas cores, na verdade, em termos simbólicos é com o vermelho que o verde se contradiz ou, talvez se funde. Repare-se na bandeira nacional, ou na rosa vermelha que floresce entre as folhas verdes. O verde fica entre os ceus e os infernos, o seja, entre o azul celeste e o vermelho do fogo dos reinos infernais. Resultando, para o verde, o símbolo de representar a mediação entre o que está em cima e o que está em baixo. Entre os céus e os infernos, entre o calor e o frio. É verde o manto com que a terra se reveste, na Primavera, após o degelo. Verde é a cor das águas primordiais, na tradição hindu. Vishnu carrega o mundo, na forma de uma tartaruga verde.
Se o vermelho é a cor do fogo, o verde é a cor da água. O verde é a cor da esperança, da força, da vontade, da longevidade. Mas também o é da imortalidade. O jade imperial, verde, o simboliza. Na tradição chinesa é o Imperador de Jade, que reina no palácio de Jade, sobre todos os deuses e imortais que existem.
O equilíbrio entre verde e vermelho é o do homem e o da natureza.
O verde simboliza um conhecimento profundo, oculto, das coisas e do destino. Mas a virtude secreta do verde, vem de ele conter em si o vermelho. Isto o sabem os alquimistas que referem que toda a obra provém do facto de o princípio ígneo, masculino, animar o princípio húmido, feminino. Na tradição egípcia, Osíris, o verde (que segundo Daniélou é uma outra representação de Shiva), foi morto e o seu corpo cortado aos pedaços que foram espalhados por todo o Egipto e parte deles lançados ao Nilo. Osíris vem a ser ressuscitado pela magia de Ísis, a vermelha. Osíris, não obstante as razões trágicas da sua morte, acaba por se transmutar num Grande Iniciado, pois conhece, desta forma, o mistério da morte e do renascimento. Nocimo da terra, como verde, preside à Primavera e ao renascimento da vida. Nos infernos, como vermelho, jukga as almas dos mortos. Pérsefone, a verde, nos campos na Primavera, é a senhora da renovação primaveril e da fertilidade, deusa lunar. No Outono regressa aos infernos, onde, com o coração vermelho partilha do fogo interior.
O verde, par os alquimistas, é a luz da esmeralda, capaz de penetrar os maiores segredos. Mas se a luz verde tudo penetra, então tem uma significação ambivalente – pode transportar consigo a vida, mas, seguramente, também a morte. E repare-se, há o verde doss rebentos primaveris da renovação da vida; mas também há o verde do mofo e da putrefacção. Verde da vida um, da morte outro.
O verde, como todo o símbolo feminino contém algo de maléfico e de nocturno. Na tradição cristã, se a esmeralda é, por excelência, a pedra do Papa, também a de Lúcifer, antes da sua queda, quando era o comandante supremo das legiões de anjos, quando era o anjo da luz.
Para os alquimistas o fogo secreto e luminoso é verde. No esoterismo mais sapiente e mais profundo o fluído da própria vida surge vermelho, guardado num recipiente verde. Verde é também o sangue misterioso da mais ígnea das criaturas – o dragão. Também na tradição cristã, verde, esmeralda, ou de cristal verde é o Santo Graal, que contém o sangue de Cristo.
O verde abre a porta à transcendência. É a cor do que é profundo e do que se estende pela eternidade.

Jade – Esta pedra tem a capacidade de conectar um iniciado com o todo. Permite-lhe uma ligação continua com a erra e com as suas energias e vibrações, aumentando a consciência de integração e sensibilidade ao que o rodeia.

Pedra de sangue- Esta pedra é de cor verde com pequenas manchas vermelhas. É uma pedra comum na Índia. É considerada uma pedra preciosa de grande valor e com grande tradição na magia.

Mestre João Camacho

ADVERTÊNCIA AOS BONS PRATICANTES E SEUS INSTRUTORES

Texto para a reunião do Círculo de Leitura de 23/11/2018:

Shrí DeRose no Tratado de Yôga pp. 291 e 292, deixa uma seríssima advertência aos seus exímios praticantes. Reproduzimo-la aqui:
A excelência técnica pode desenvolver em alguns praticantes um distúrbio de hipertrofia do ego. Tal moléstia faz eclodir uma absurda arrogância que compromete o relacionamento com o seu Mestre e com os companheiros. Contudo, isso só ocorre se o estudante já for portador de uma falha psicológica nessa área e jamais nas pessoas emocionalmente equilibradas.
Pelo facto de perceber que executa melhor que a maioria dos seus colegas, o yôgin deixa-se embalar pela vaidade e num dado momento, pensa que é superior. Ele se esquece de que o Yôga não é ásana e de que a boa performance corporal constitui apenas uma das etapas mais rudimentares na senda.
Ásana, por ser orgânico, restringe-se a uma conquista muito limitada nesta grande jornada. Infinitamente mais difícil é cultivar a humildade e a lealdade na relação com o seu Mestre.
DeRose

DOS AGENTES DE ENSINO E DO ENSINAMENTO DO YÔGA

Vou deixar-vos, neste e em próximos comentários, algumas notas sobre este tema – as características de um Mestre de Yôga e da relação entre estes e os seus discípulos. Deixo-vos uma citação de Iyengar sobre este tema e, também, sobre a arte de ensinar Yôga.
É relativamente fácil ensinar um assunto académico, mas ensinar uma arte é mais difícil e ensinar Yôga é ainda mais difícil porque os professores de Yôga devem criticar a sua própria prática e corrigi-la. A arte do Yôga é inteiramente subjectiva e prática. Os professores de Yôga devem conhecer todos os mecanismos do corpo; assim como devem conhecer o comportamento das pessoas que venham a encontrar, saber como reagir e estar prontos a ajudar, proteger e defender os seus alunos.
As qualidades necessárias para ensinar são numerosas, mas quero enumerar-vos algumas de modo a que as entendam a todas, que as compreendam e que as trabalhem. Por conseguinte podereis descobrir muitas outras. Um agente de ensino deve ser claro, inteligente, confiante, estimulante, atento, prudente, construtivo, corajoso, compreensivo, criativo, inteiramente consagrado e dedicado ao estudo do que ensina, prevenindo, consciencioso, crítico, arregimentado, alegre, casto e calmo. Os agentes de ensino devem ser fortes e positivos na sua maneira de ensinar. Devem ser afirmativos para criarem confiança nos alunos e negativos no seu foro interior para poderem rectificar de forma crítica sobre as próprias práticas e atitudes. Os professores não devem jamais parar de aprender. Aprendem com os seus alunos e devem ter a humildade de lhes dizerem que não chegaram ao fim da aprendizagem da sua arte.
A relação entre o Mestre e o discípulo é comparável à que existe entre marido e esposa, entre pai e filho. É uma relação muito rica e muito complexa. Como na relação entre marido e mulher, que é uma relação de intimidade, os mestres devem fazer todos e os mais ardentes esforços para impedirem os discípulos de caírem e ajudá-los ao longo de toda a sua prática. (…)
Uma avenida dos sentidos une discípulo e Mestre implicando amor, admiração, dedicação e devoção.
Iyengar, L’ Arbre du Yôga, pp. 218 e 219
João Camacho, Discípulo de Shrí DeRose
Sou irmão de dragões e companheiro de corujas

O CAMINHO INICIÁTICO E A DEMOCRATICIDADE DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

Julius Evola, no seu livro Le Yôga Tantrique, refere que a ciência e a técnica são democráticas. Têm uma estrutura intrínseca, de organização e de transmissão do conhecimento democrática. Qualquer um, medianamente inteligente, consegue ir à Universidade e fazer seus os conhecimentos actuais. Uma pistola produz o mesmo efeito nas mãos de um idiota, de um soldado, de um polícia ou de um chefe de estado. E a qualquer um deles é possível transportá-los de avião, no mesmo número de horas. Mas assim, já não é como o conhecimento iniciático. No âmbito da ciência estamos no plano ontológico do ser humano. E aí os princípios são os da igual dignidade. A transcendência da condição humana, objectivo das disciplinas de auto-superação, como a Nossa Cultura, conduzem o sádhaka a um estado existencial e ontológico superior, consequência da superioridade uma evolução que leva a que o yôgin seja um mutante, por comparação com o resto da humanidade. Ora, o calor, o despertamento da kundaliní, os siddhi que, com isso se manifestam, são pessoais, intransmissíveis e não democratizáveis. Esta profunda diferença, é a divisão fundamental entre a tradição e a modernidade. Pois a diferença real entre os seres é a base de um conhecimento e de um poder inalienáveis, não comunicáveis, logo exclusivos e esotéricos pela sua natureza e não por artificio, pois trata-se do culminar de um desenvolvimento excepcional, que não se pode partilhar com toda a sociedade.
Nesta sequência, René Guenón, o grande orientalista francês da primeira metade do século XX, estabeleceu, para classificar uma fraternidade, um círculo interno, como detentora de autênticos processos iniciáticos, três características que se devem observar:
• Necessidade de uma genuína qualificação interna dos seus membros
• Necessidade de uma transmissão do saber esotérico e de auto-aperfeiçoamento interior de cada um dos membros
• Necessidade de actualização activa subsequente, pelo esforço individual

Tais exigências devem-se ao facto de a iniciação não ser um mero ritual de passagem que celebra a aceitação numa fraternidade. A iniciação é muito mais do que isso. É e pretende ser, um processo transformativo, de mutação, de auto-superação, que começa com um influxo energético, polarizado, pelo Mestre, proveniente dos domínios transcendentes e exercendo os seus efeitos ao nível dos corpos subtis. Porém, aquele que se envolve no processo iniciatório, deve ultrapassar-se também em provas físicas (outra razão para a coreografia de ásana) e ser corajoso.
A iniciação foi sempre reservada a alguns e nunca aberta a toda a gente. O impulso iniciatório transmuta o ser humano, se este não o detiver. Uma tradição iniciática usa tudo como elemento de transformação: o corpo; os desejos; as pulsões; a imaginação; a clarividência; a emoção; a intuição. Pois o processo só pode iniciar-se e ter continuidade de fora dará dentro, do Mestre para o discípulo.

João Camacho
Sou irmão de dragões e companheiro de corujas

A etiqueta e o protocolo nas artes e filosofias orientais

Texto para a próxima reunião do Círculo de Leitura a 28 de Setembro de 2018

A etiqueta

Às vezes ão surpreendidos por exigências de etiqueta e de protocolo.
Nas artes e filosofias orientais a etiqueta e o protocolo têm um relevo muito grande e respondem a necessidades funcionais. E podem ser observados em termos de ordem, que se prende com dois dos grandes significados do Tantra: regulado por regra geral e a maneira correcta de fazer algo. Em termos de respeito e em termos de atenção. Se não estivermos atentos não conseguimos aprender, nem concentrar a mente nem chegar ao samádhi. Estes três aspectos permitem-nos desenvolver sobriedade, discrição, vigilância e humildade. Pois, as nossas atitudes durante a etiqueta devem ser sóbrias, discretas, vigilantes e humildes.

A ordem

Se se seguirem as normas de etiqueta, a ordem manifesta-se no Ashram tanto no aspecto espacial, como no individual, como no próprio grupo. Por exemplo, a utilização correcta do espaço do vestiário, a utilização correcta dos sanitários, o respeito pelos horários das aulas, tanto por parte dos instrutores como por parte dos alunos, são expressões dessa ordem, interna e externa. O contrário impede-nos de respirarmos um ambiente de ordem que deveria ser próprio de um Ashram.
A distribuição dos alunos, em aula, de acordo com o seu nível de evolução e de graduação, é expressão dessa ordem e facilita a relação espacial entre estes e o trabalho do instrutor. Por outro lado, a distribuição espacial dos alunos não só reflecte a ordem externa existente no Ashram, como também contribui para que os alunos se sintam motivados para a aprendizagem para poderem chegar ao nível seguinte. Mas isto implica que os instrutores tenham essa atitude presente e de modo permanente.

O respeito

Traduz-se no pújá, mas também no cumprimento das restantes regras do Ashram que versam sobre:
-como utilizar o vestiário, como ocupar pouco espaço com a roupa de cada um;

-Como evitar por os pés calçados em cima de almofadas que estão nos bancos nos vestiários;

-Como fechar a porta quando alguém vai à casa de banho e como a fechar depois de ser utilizada;

-Como deixar os chinelos alinhados na parede para entrar na sala Bhávajánanda;

-como cortar as unhas;

-como lavar-se antes do início de uma aula;

-como trazer uma pequena toalha para ir limpando o suor durante a prática;

-Como esperar que o Mestre e a Chakrêshwarí sejam servidos no início de uma refeição comunitária;

-Como deixar a sala arrumada, a loiça lavada depois de cada uma das festas;

-como deixar o Ashram totalmente operacional às sextas-feiras à noite, depois da aula do Mestre;

-Como saber o seu lugar na sala de prática, durante a prática, durante o lanche, num jantar comemorativo, num restaurante, numa ida ao teatro, a um cinema, a um museu, a um concerto, numa ida à praia, quando posamos para uma fotografia, pois os mais adiantados que estejam no momento têm o seu lugar sempre mais perto do Mestre, ou do instrutor mais graduado que esteja presente;

-como na organização dos lugares, seja na sala de aula, seja na praia, ou no restaurante, os participantes devem sentar-se junto do Mestre ou do instrutor mais graduado que esteja a orientar o evento de modo polarizado. Sendo que a polaridade começa pelo Mestre ou pelo instrutor de maior hierarquia que esteja presente.

-como todos os instrutores e praticantes devem cultivar santôsha, alegria, mas evitando fazer ruídos ou gestos abusivos ou falar alto no Ashram, sobretudo quando estão a decorrer aulas.

– como todos os instrutores, alunos e visitantes devem descalçar-se antes de entrarem na sala Bhávajánanda, a sala de prática.

-como todos os instrutores, praticantes e visitantes devem andas calçados até à beira dos tapetes da sala Bhávajánanda. Nunca andando fora do tapete descalços. Por isso, devem usar chinelos e estes devem ser azuis escuros.

-como ao entrar na sala não se deve deixar os chinelos junto dos do Mestre ou dos do instrutor de mais elevada hierarquia que esteja responsável pelo evento (aula, curso, etc). Deve sempre deixar-se livre o espaço em frente à porta para os chinelos do Mestre ou do instrutor de mais elevada hierarquia que esteja presente. Os chinelos devem ficar com a parte de trás virada para a sala.

-Como quando se entra na sala Bhávajánanda aguarda-se que o instrutor chegue e inicie a aula, sentado numa posição de meditação em Shiva mudrá ou, a praticar ásana.

-Como quando o Mestre entra na sala Bhávajánanda também todos os presentes devem interromper as suas actividades e devem recebê-lo indo cumprimentá-lo.

-Como também nos eventos exteriores, quando o Mestre chega os mais adiantados devem orientar os mais novos no sentido de todos interromperem o que estão a fazer para receberem o Mestre.

-Como os tapetes devem ser limpos antes e depois dos eventos como cursos, sat chakra e outros. Assim como a copa e os utensílios que tenham sido usados, deixando tudo limpo, lavado e arrumado.

-Como os instrutores não devem deixar nenhuma dessas tarefas para o Mestre. E os instrutores de menos hierarquia não as devem deixar para os de mais elevada hierarquia. E os alunos graduados devem assumir a maior parte das tarefas dos instrutores.

-Como a senescal deve atender o Mestre e assisti-lo não o deixando sozinho, seja nas aulas, nos eventos, internos ou externos.

Estas manifestações de respeito traduzem a atitude que o sádhaka tem para consigo mesmo e para com os restantes membros do Ashram e permitem-lhe evoluir na interiorização dos valores que são próprios da Nossa Cultura.

A atenção

A atenção é necessária para a boa utilização do nosso corpo, da nossa mente e das nossas emoções. E é uma aprendizagem para a vida. Tudo o que fazemos na vida necessita de atenção. Ter atenção às normas, gestos e atitudes da etiqueta é uma forma de constantemente o yôgin a educar.

O controlo

O cumprimento das normas exige um constante controlo do nosso corpo e da nossa mente, que vai adquirindo diferentes níveis à medida que vamos avançando no Yôga. É uma disciplina indispensável e constante.

Mestre João Camacho

O centro. O fio de Ariadne e a busca introspectiva

Apontamentos

 

O centro. O fio de Ariadne e a busca introspectiva – maithuna.

 

Os efeitos energéticos de uma aula de SwáSthya Yôga.

 

A progressão do Yôgi de acordo com as escolas tântricas medievais.

 

Coligi alguns apontamentos que se vos destinam. Vamos ver se ao passá-los à forma escrita os consigo apresentar com sútra, ou seja com um fio condutor, o fio que sustenta a nossa caminhada no labirinto, o fio que une os fragmentos da nossa existência, quando somos confrontados, directamente, sem subterfúgios connosco e com aquilo que de facto somos. E esse confronto ocorre uma e outra vez, se o procurarmos, evidentemente. O centro não estará definitivamente resolvido enquanto não nos libertarmos totalmente das amarras da acção dos triguna. Assim, passamos tantas vezes de um labirinto a outro – a constante procura do centro que deve ser tão imóvel quanto rápida. Alguns de vós afirmam ir entendendo o que vos digo umas vezes, e outras nem por isso. Deixando o que não conseguem decifrar para depois. Não tem importância que assim seja. Nestas coisas a que nos dedicamos, entendemos de imediato quando já experimentámos, percebemos o que está em causa quando, na nossa caminhada individual, nos estamos a aproximar da experiência referida. Ficamos sem saber do que se trata se ainda estamos longe. Mas o importante é estarmos a caminho.

 O confronto connosco, no trabalho de introspecção de que tantas vezes falamos, pode e causa muitas vezes sofrimento, dando-nos a sensação de estarmos perdidos, de não sermos capazes de nos encontrarmos mais. Podemos ter o delírio de ficarmos para sempre retidos no labirinto, sempre longe de encontrar seja o centro, seja o caminho para a saída. E quantas vezes, cada um de vós, não se sentiram já perdidos? Daí a importância do fio de Ariadne, do sútra condutor, que liga os rudráksha do japamálá.

 

E referir o sofrimento, numa linhagem tântrica, não será um contra-senso? Neste caso não. Continuamos no caminho da sensorialidade. Reparem, perguntem à [uma das nossas discípulas], mãe experiente, se o sofrimento de cada uma das 3 gestações e respectivos partos, não lhe causou uma alegria tal como nós, os homens, não conseguimos alcançar? Perguntem à [outra discípula] e à [uma aluna antiga], que têm essas sensações mais recentes, tão recentes que neste momento, os dois bebés ainda não têm de vida extra-uterina o tempo que durou a gravidez. Para as mães como para os bebés, o cordão umbilical energético não desaparece, antes de nove meses de existência fora do corpo da mãe. Perguntem-lhes o que sentiram, como se sentiram – acreditem, mesmo que elas não o confessem, sentiram-se verdadeiras deusas-mães, capazes de realizar o milagre da vida. Capazes de o realizarem para além do pai e, por vezes, não obstante o pai, que não passa do lingadhara, ou seja o portador do pénis. Sofrimento, para a mãe e para o novo ser? Sim.

 

Alegria infindável, auto realização e auto satisfação para as mulheres-deusas que concretizaram o milagre da criação? Também um inequívoco sim. Em relação aos nossos colegas homens, se querem mesmo sentir o que vos digo, então têm duas soluções – regressem como mulheres e vivenciem o que uma mulher é capaz ou, e só o conseguirão de forma aproximada, fundam-se na shaktí. Sejam um só com a Shaktí, coincidentia opositorum

– a coincidência dos opostos. Em maithuna, se e quando o quiserem fazer, poderão ter a graça de a shaktí-deusa, que aceda ao maithuna convosco, vos permitir esse fundir de corpos (os vários que identificamos no Yôga). E aí terão um vislumbre do ser, do sentir, da sensibilidade, da emoção de uma mulher. E, também ela perceberá a força viril, a masculinidade do macho, do homem-touro, a fonte e a origem da sua força, que por vezes, não contida, se revela como brutalidade. E os dois poderão ser um – o andrógino. E tudo isto, porque nesse instante aquele homem e aquela mulher, são tão só Shiva e Shaktí.

 

Não deverão confundir maithuna com sexo. Poderão ter relações sexuais sempre que quiserem e muito bem entenderem, o que vos saberá muito bem, pelo menos assim vos desejo, sem que isso tenha algo a ver com o maithuna, a alquimia sexual. Claro que têm de comum que ambas as actividades, passam pela sexualidade e implicam uma boa dose de excitação. Mas a semelhança termina aí.

Ainda a propósito das últimas aulas e dos efeitos energéticos que possam ter tido sobre vós e sei de quase todos vós que foram intensos e se manifestaram, nuns duma maneira, noutros noutra maneira, para uns com mais intensidade, para outros com mais serenidade. Deixo-vos alguns apontamentos e cada um de vós saberá, provavelmente, quando o ensinamento se lhe destina.

 a) Uma aula de Yôga pode ser modulada de muitas formas, afim de produzir mais efeitos aqui, menos ali, equilibrar exageros energéticos neste aspecto, intensificá-los quando são parcos naquele. Um mestre de Yôga deverá conseguirá fazê-lo, orientando a prática de modo a intensificar ou a diminuir este ou aquele efeito. Pode fazê-lo porque sabe o que está a manipular, conhece intimamente as energias que está a usar, a estimular. Por isso, pode acontecer que um discípulo sinta efeitos tão díspares de uma aula para outra. Não que esteja algo mal com esse discípulo, que sentia efeitos tão intensos e depois tão suaves, nas mesmas zonas do corpo e com os mesmos exercícios.

 b) Algumas tradições tântricas medievais, apontam para uma progressão do Yôgi da seguinte forma:

 

Pashu,          o homem comum, o homem animal, que ainda não iniciou o caminho. Sendo que Shiva, o mahêshwara (o grande senhor), maháyôgi (o grande Yôgi), o Prathamêja (o 1.º nascido), o Sadyojata (o nascido espontaneamente), se apresente tão só, com a humildade dos sábios, como Pashupati, o senhor dos

 

animais, pois, em verdade, esses são os que mais necessitam de Shiva e dos seus ensinamentos.

Sádhaka       (o praticante), sádhika (a praticante). O pashu transmutou-se em aprendiz. É aquele que transpôs o 1.º véu da ignorância, iniciou os passos rumo à libertação. É o que segue o sádhana com afinco e disciplina e no Yôga tântrico não importa qual seja o passado desse sádhaka, ou a sua origem, só importa o que

 

acontece depois do início do caminho.

 

Vira.               Seguidamente passa a herói ou adepto. Neste estado já pode distinguir e ultrapassar as aparências do mundo material. São iniciados que pela prática do Yôga adquiriram o poder de dominar o mundo físico e o mundo subtil. Já transcenderam a condição humana. Um vira pode já ser um mestre que domina todas as energias em si latentes e em sua volta. É capaz de dominar as forças elementares da natureza. Tem a capacidade

 

de atravessar o labirinto interno e aceder aos níveis superiores.

 

Siddha           o realizado. Este é o estado seguinte, também apelidado de kaula (membro do grupo), palavra que corresponde a companheiro. Encontra-se num estado de verdade. Pode dominar as pulsões naturais, não necessitando nem de rituais, nem de virtude. Ele é, no seu corpo, mestre da criação. Domina

 

o poder da serpente

 

Divya.           É um estado acima e para além do anterior. É um senhor da energia e do fogo, em si e fora de si.

Voltando ainda aos efeitos energéticos, a tradição hindu aponta a existência de 10 principais deusas, apelidadas de mahá vidyá (as grandes sabedorias). Estas dez grandes deusas são Kálí, a negra, a personificação da ira, da fúria de Durga, Tárá, Tripurá Sundarí, Bhuvaneshwarí, Dhúmávatí, Bagalámukhí, Bhairaví, Mantagí, Kamalá e Chinnamastá. Entre estas, para os aspectos energéticos que foram sentido, umas vezes mais intensos outras vezes mais suaves, é Chinnamastá, a da cabeça cortada, que tem importância especial. Esta deusa costuma ser representada nua, com uma guirlanda de crânios ao redor do toco do pescoço. Segura a sua própria cabeça cortada com a mão esquerda. Muitas vezes é ainda representada, sentada ou em pé sobre um lótus e sobre um casal, Shiva e Shakti, em cópula, com esta por cima daquele. Do pescoço, jorram duas correntes de sangue, com as quais a deusa pretende alimentar as suas duas servas, Jayá e Vijayá, que recebem cada uma delas um dos jorros de sangue na boca, numas representações, ou num recipiente noutras representações. O cortar da cabeça, tal como já acontece no mito de Ganêsha, representa a morte daquele, que uma vez iniciado renasce, mas agora num estado ontológico superior. O cortar da cabeça significa o cortar das amarras

 

do mundo profano, o libertar-se para o mundo sagrado. Por outro lado, este sacrifício da mãe divina, representa o sacrifício das correntes esquerda e direita, pingalá e idá, que têm de ser sacrificadas para permitir o livre fluxo de energia pelo canal central, sushumna nádí. Sem o sacrifício destas duas correntes, consegue-se equilíbrio, mas não exactamente o despertar da kundaliní. Tanto assim é que o outro nome desta deusa é Sushumnáswara Bhásiní, ou seja, ‘a que brilha com o som do canal central’. O casal por baixo da deusa, é a estimulação sexual que desperta a kundaliní pelo facto de terem sido sacrificadas as duas correntes, prána e apana.

 

SwáSthya

 

João Camacho, Yôgachárya

 

Discípulo do Mestre DeRose

 

“Sou irmão de dragões e companheiro de corujas.”

Zoom Sobre Agora

Tecnologia e Consciência

 

Uma rajada fortíssima assobia lá fora:

– Que ventania!

 

Durante 5 segundos a minha atenção fixa-se no silvo do ar na janela e sinto a aragem ligeira que chega à minha pele. Mas o meu pensamento, tal como o vento que passa, não tarda em voar para outras paragens. Na Internet uma notícia corre pela rede global:

 

– Avião cai, ao tentar aterrar na Jamaica e parte-se em três partes. 44 feridos.

 

Se a notícia interessasse ao mundo inteiro – como a tragédia provocada pelo tsunami do Natal de 2004 – milhares de milhões de pessoas tomariam consciência dela em poucos dias.

A Humanidade estendeu uma rede global de comunicação por todo o planeta. Em minutos tomamos consciência de acontecimentos do outro lado do mundo. A informação circula por teias globais que envolvem o planeta e que, tal como a famosa world wide web, estão construídas de tal modo que a informação continua a chegar de um ponto ao outro, mesmo que uma parte da teia se rasgue.

As tecnologias aumentaram muitíssimo a nossa rapidez de comunicação. Mas cabe perguntar:

– Será que a ciência e as impressionantes tecnologias de comunicação e de observação de que dispomos hoje nos têm feito mudar algo de essencial ao nível da nossa consciência da vida e do mundo?

Em primeiro lugar convém dizer que talvez seja prudente desconfiarmos bastante da nossa consciência. O que se pode esperar de um ser que pensa sobre o seu próprio pensamento? É natural que essa reflexão lhe pregue muitas partidas! A História tem-nos demonstrado que assim é. Os modelos cosmológicos, sempre “modernos” e sempre “científicos” que temos inventado para descrever o mundo são exemplo disso. Quando a nossa consciência não ia muito além de uma imensidão de areia, de alguns oásis e de alguns pequenos mares, acreditávamos que todo esse mundo enorme tinha sido criado para “nós”! Depois, circum-navegámos o mundo, mas, apesar da escala do zoom ter mudado, continuámos a acreditar por muitos anos que a enorme esfera coberta de oceanos fora “criada para nós”.

– E quem éramos“nós”?

Nessa altura “nós” éramos os navegadores de pele branca (embora por vezes bem mais suja do que a dos nativos, devido à escassez de água no interior das caravelas) e tão confiantes estávamos nessa versão do mundo que a ensinávamos a todos os “outros” que íamos encontrando em cada pedaço de terra que descobríamos…

Foram tempos de descobrimento e glória para uns, de tragédia e desenraizamento para outros. Marcas muito fortes ficaram. Mas esse tempo passou.

 

 Somos Uma Só Espécie

Contemplando esse tempo nota-se, hoje, uma grande evolução na nossa consciência como espécie: finalmente fomos capazes de incluir toda a humanidade naquilo a que chamamos “nós”.

É verdade que as religiões há muito que nos falavam dessa fraternidade. Quem queria acreditar acreditava. Mas a demonstração racional tardou a chegar. A ciência demorou mas acabou por demonstrar, pela via da genética, que somos uma espécie única e que nem sequer faz sentido falar em “raças humanas” (para essa consciencialização global ajudou muito percebermos que, afinal, sempre descendemos todos de uma mesma tribo do Vale do Rift em África).

Para trás ficou o tempo em que imaginávamos que outros seres humanos que nos rodeavam eram diferentes de nós, irracionais, não-pensantes, enfim “outros”.

No mínimo podemos dizer que “a nossa mente se tornou bastante mais elástica”.

Dir-se-ia que com esse passo fomos capazes de fazer um primeiro “zoom de consciência”.

 

Toda a Biosfera está Ligada

Agora foi se como se aprendêssemos a colocar vários tipos de lentes em frente à “objectiva” da nossa mente.

Usando uma primeira lente do tipo “grande angular” descobrimos que toda a biosfera – o conjunto dos seres vivos deste planeta – está intimamente ligada e que fazemos parte dela. Começamos agora a tomar consciência de que a nossa espécie não é a “dona do mundo”, mas que simplesmente o habita e que todas as outras espécies não existem apenas como “alimento”, ou como “carne para canhão” das nossas experiências “científicas”.

Aumentando o zoom da nossa consciência começamos a aperceber-nos que a própria consciência, afinal, se apresenta em muitas e diversas formas e que essa consciência, longe de ser única e objectiva, depende da biologia de cada uma das diferentes espécies do nosso planeta…

Depois, recorrendo aos nossos telescópios e rádio-telescópios, na terra e em órbita, continuámos a fazer zooms cada vez mais abrangentes, alargando as nossas fronteiras para dimensões antes inimagináveis – estrelas distantes, quasars, buracos negros, galáxias, enxames de galáxias, escalas de tempo e de espaço onde os zeros se acumulam às dezenas e às centenas, à direita dos algarismos com que numeramos a nossa régua de escala.

E, no outro extremo da escala do zoom, usando microscópios electrónicos e aceleradores de partículas, fomos descortinando mundos infinitesimais, com multidões de novas partículas constituintes da matéria e que desafiam as antigas fronteiras entre a matéria e a energia, e entre aquilo a que chamámos forças e campos.

 

– Mas será que o pensamento egocêntrico desapareceu definitivamente da nossa consciência?

Princípio Antrópico

Parece-me que não! Continua cá. Vai apenas mudando de nome. Senão vejamos.

Apesar de todos os avanços científicos e tecnológicos a que temos vindo a assistir, sobretudo no Século XX, alguns eminentes cientistas – notando a existência de um “curioso conjunto de coincidências” nas leis físicas que regem o nosso Universo, continuam a perguntar-se se o Universo existe da forma que existe de modo a possibilitar a nossa existência.

De facto bastaria que algumas relações existentes entre várias constantes físicas fossem ligeiramente diferentes – a constante gravitacional, a massa do protão, a idade do universo, etc. – e a vida, conforme nós a conhecemos hoje, não existiria.

O apelido mais recente que encontrámos para esta forma de pensamento foi “princípio antrópico” e não será certamente o último nome de baptismo desta corrente de pensamento.

Aliás, se retirarmos do centro a palavra anthropos (humano), colocando lá “Vida”, ou “Complexidade” (neste caso em oposição ao caos e à entropia), apenas o nome mudará, porque estaremos sempre pensando num universo que foi criado para “nós”, ou para aquilo que nós representamos.

Se assim for, por mais zoom que façamos, a nossa mente continuará a enganar-nos!

Se não mudarmos o paradigma, continuaremos eternamente a perguntar-nos se todo o Universo foi criado apenas e só para que a vida e a consciência, tal como a conhecemos, pudesse existir neste pequeno planeta azul flutuando na imensidão do espaço.

Por outro lado se nos colocarmos do lado oposto, dizendo que nada tem significado e que estamos aqui absolutamente por acaso, estaremos a ser no mínimo “pouco económicos” e, também, um pouco ignorantes das leis da estatística. Estaríamos do lado daquela corrente de pensamento que acredita que a Vida, em toda a sua complexidade, se montou por tentativa e erro, um pouco ao jeito de um mecânico preguiçoso – mas com todo o tempo do mundo – que colocasse um Boeing 777 totalmente desarmado dentro de um hangar de paredes resistentes, gerasse um enorme turbilhão de vento e esperasse para ver quando é que tudo se montava na perfeição.

Mas talvez não seja preciso preciso escolher entre uma ou outra das correntes. Talvez seja possível rejeitá-las a ambas e tentar uma abordagem diferente.

 Um Zoom Diferente

E se ousássemos usar a nossa “máquina de olhar para o mundo” já não apenas para fazer zoom de consciência, mas para nos libertar das amarras do pensamento egocêntrico?

Na realidade trata-se de uma “atitude de pensamento” muito fácil e acessível. Todos nós conseguimos fazê-lo e na realidade estamos a fazê-lo desde que nascemos. E até antes…

Como foi que a nossa mãe nos gerou? Ela não “pensou” em criar-nos, nós simplesmente “fomos acontecendo nela” e ela foi-se limitando a observar (provavelmente com aquele sorriso de grávida), à medida que nos desenvolvíamos no seu seio.

Seria absurdo que ela pensasse que a sua mente racional poderia controlar e comandar cada um dos fenómenos biológicos que levaram à “construção do nosso ser”.

– Mas será que ela não teve consciência do nosso processo de gestação?

– Teve sim! (Daí o tal sorriso.)

 

Simplesmente ela não teve uma “consciência egocêntrica” desse processo.

Durante essas quarenta semanas nenhuma mãe terá a veleidade de pensar, certamente, que é a sua mente racional que está a trabalhar activamente para controlar os vários estádios de desenvolvimento do feto. A mãe sabe que “algo se está construindo” e acredita (com muita esperança mas com com algum temor também) de que tudo irá “correr bem”. Mas ela sabe que a sua consciência racional tem pouca intervenção no processo de gestação.

Não quer isto dizer que a atitude da mãe se baseie apenas na passividade, na esperança e na fé. Não! Embora ela tenha a sensação que o seu filho é, para ela e durante esse período, o “centro do mundo” ela também sabe que o mundo não existe apenas para gerar o seu filho.

Por isso ela alimenta-se o melhor possível, consulta médicos, faz exames, enfim, faz tudo o que está ao seu alcance para que tudo corra bem.

Embora não seja a sua mente racional que está a construir o bebé, na verdade todo o seu ser (incluindo em boa parte essa mente racional) se empenha para que nasça um belo e saudável bebé.

 

– E o feto?

 

Que consciência teve do seu próprio processo de gestação? Pensou nele? Controlou-o?

Perguntando de outra maneira: será que desde o tempo em que vivemos nesse pequeno mundo morno e protector, que esteve durante nove meses à nossa disposição, continuamos a acreditar que o mundo exterior (por mais zooms que façamos) foi criado e continua a existir apenas para nós?

Um Universo Impregnado de Consciência

Se conseguirmos libertar-nos dessa ideia de que o mundo existe para nosso uso, ou que foi construído (ou evoluindo ao acaso) para que existamos, quanto tempo levaremos a concluir que (tal como o bebé que geramos) o universo não existe só para nós, mas que também está a ser gerado por nós, porque fazemos parte integrante dele?

De quanto tempo necessitaremos para concluir que o Universo está impregnado de consciência? De quanto tempo precisaremos para sentir que o Universo é, afinal, apenas um grande novelo de nada, produzido continuamente por essa mesma consciência?

A nossa mente racional não sabe, provavelmente, responder a esta pergunta. Mas se a nossa intuição responder que não precisamos de tempo para pensar, porque já “sentimos” isso há “bastante tempo”, muitas outras perguntas surgirão…

O Vento, Poderá ele Pensar em Mim?

Tomo consciência de uma nova rajada de vento lá fora.

– O vento continua a soprar forte!

 

E penso:

– E o vento? Poderá ele pensar em mim?

 

De repente tenho consciência de um ligeiro ardor no meu pé – será que uma pequena comunidade de fungos resolveu atacar os dedos do meu pé direito?

E se o planeta nos sentisse? Se ele sentisse que alguns seres vivos que habitam na sua crosta são como uma espécie de infecção na sua pele?

Numa floresta do Oregon há um fungo que é considerado o maior organismo vivo – ocupa cerca de 9 km2 e pesa mais de 600 toneladas. Se o nosso planeta “pensasse” numa escala de tempo proporcional ao seu tempo de vida – que é de 10 mil milhões de anos – quanto tempo duraria para ele um pensamento que para nós demora 5 segundos? É uma conta simples de fazer: 20 anos!

Poderíamos brincar com esse pensamento dizendo: “Em 20 anos o nosso planeta toma consciência de que uma infecção (um fungo no Oregon, ou… a humanidade) alastra na sua pele.”

E, já agora porque não perguntar: quanto tempo levará ele a reagir? Sabem que mais, agora o que me apetece mesmo é coçar o dedo grande do meu pé.

 

– Por isso, até depois! E, já agora, Feliz Natal!!!

 

– Oh! Oh! Oh! – ri o Pai Natal, afinadíssimo.

(E, dizem as más-línguas, foi essa vibração perfeita, a ecoar no nada, que fez nascer o mundo.)

 

José Patrão

Zoom sobre Agora 24 de Dezembro de 2009

Tantrismo

 

                         Os métodos práticos, os ritos, as técnicas que permitem ligar a experiência do Yôga com os princípios universais expressos na cosmologia do Sámkhya recebem o nome de tantrismo. Trata-se de técnicas realistas, baseadas na experiência. O tantrismo desenvolve e utiliza as possibilidades físicas, subtis e espirituais do ser humano, tendo em conta a interdependência de todos os aspectos do ser vivo e a sua correspondência com os diversos aspectos do ser cósmico. O corpo é a base, instrumento de toda a realização. Não há vida, pensamento, espiritualidade, independentes de um corpo vivo. (…)

Para o homem, o método tântrico tem por objectivo despertar, utilizar, controlar, partindo da energia enrolada no centro de base, as energias potenciais que se acham ligadas a todas as funções do corpo, digestivas, excretoras, reprodutoras do animal humano, que são a própria base da vida, mas também aos poderes latentes, percepções subtis não condicionadas pelo espaço e o tempo, poderes mágicos supra-intelectuais, espirituais, que não estão directamente sob o controle do pensamento e da vontade.

O método tântrico reproduz no homem a própria história da evolução. Parte dos mecanismos fundamentais do ser vivo para ascender às funções superiores, aos mecanismos mentais, intelectuais, e às aberturas espirituais do ser humano, a fim de controlá-los e ultrapassá-los.

Alain Daniélou, Shiva e Dionísio, pp. 131-132.