Na perspectiva tântrica a realidade última, não manifestada, irredutível e imutável, chama-se Shiva-Shakti – a causa incausada. É o átomo de energia original da física moderna.
Mas a dado momento iniciou-se a vibração, nada[1]. A causa da manifestação universal foi Shaktí, natureza criadora, a causa causada. O movimento, a expansão, a mutação, a diversidade, a mente e a matéria e em consequência as limitações da consciência foram produzidos por Shaktí, ou seja o big-bang da física moderna [2].
Para o tantrismo o Universo resulta destes princípios contraditórios mas complementares, feminino/masculino; causa não manifestada/causa da manifestação universal; positivo/negativo. Para o tantrismo o mundo fenoménico é real.
Shaktí ao manifestar-se afasta-se da causa incausada. É o afastamento dos astros depois do big-bang da física.
Shaktí é o poder. É ela que, através da sua práxis transformadora, delimita o espaço e o tempo e todas as formas em mutação de apresentação da energia primordial. É ela que no seu devir perde parte da consciência do uno, do imutável, do perene e manifesta-se por várias formas, em vários graus de consciência, desde os mais subtis aos mais grosseiros. Certas coisas são mais conscientes do que outras, mas a inconsciência nunca é absoluta.
Shaktí é o poder que se manifesta sob a forma de Universo, é a matriz cósmica, a Mãe universal, a energia primordial em devir, a origem de tudo o que foi causado.
E longe da mutação e instabilidade não totalmente consciente de Shaktí, encontra-se o princípio não manifestado, imutável – Shiva
Este princípio imutável, indiferenciado, designa-se também por Mahabindu, ou Nirguna Brahman, ou Paramshiva, ou, como acima o referimos, Shiva-Shakti.
Também no homem se encontra esta dualidade, entre o mental e o material. Entre o poder que se manifesta como actividade corporal e mental e uma supraconsciência desconhecida do homem comum.
Antes do big-bang, Shaktí repousa em potência em Shiva, unidos e indistintos. Quando Shaktí na forma de prakrutí cria o mental, a energia, os sentidos, a matéria sensível e chega ao último dos tattva, a terra, a matéria sólida, a sua consciência adormece, ficando latente.
É por isso que Shaktí é conhecida no plano individual como Kundaliní Shaktí, a serpente ígnea, adormecida e enrolada sobre si própria, à volta do liñgam, três vezes e meia, na base da coluna vertebral.
Ao nível cósmico é Mahá kundaliní.
Kundaliní adormecida representa a prakrutí no fim do estado involutivo.
Uma vez acordada ascenderá, como fogo, até ao sahásrara chakra, unindo-se a este, cessando a dualidade, adquirindo a consciência plena.
Na sua ascensão, o estado de obscurecimento da consciência em que Shaktí se encontra, vai-se dissipando. E vai despertando os chakra, num movimento inverso ao movimento criador. Por onde vai passando vai despertando e dinamizando os chakra. Ao chegar ao sahásrara atinge-se a meta do nossa arte.
Se o movimento ascendente se fizer com as nádí desobstruídas, os granthi, nós, estarão abertos num só sentido, não deixando Kundaliní descer de novo ao seu estado de inconsciência.
Localizam-se os granthi no múládhára chakra, no anáhata chakra e no Ajña chakra.
Tudo é reflexo da existência de Shiva, do princípio imutável. Não só aquilo que no homem permanece igual a si mesmo – o púrusha – como também o real fenoménico, em permanente mutação. Este não é entendido pelo tantrismo como uma ilusão, porque resulta da energia criadora de Shaktí. Nesta cosmogonia não há lugar ao conceito de Deus, nem de criação do mundo. Sendo Shiva imutável, é igual a si próprio, não cria, nem é criado. Nada faz, limitando-se apenas a ser. A sua manifestação ocorre por via da acção de Shaktí, a sua esposa, por extensão energia[3].
Acontece que Shaktí não é ilusória, é real, é a causa manifestada. Assim máyá, o real fenoménico, não deve ser entendido como ilusão, mas sim como a percepção do movimento e da mudança. Contudo, máyá, não deixa de produzir, no ser humano, a ignorância, avidyá. Pois este convence-se não existir nada mais do que a dualidade que observa, permanecendo assim em sofrimento. E a ignorância não lhe permite ver o que está para além. Não lhe permite ver a substância, a unidade, a imutabilidade e infinidade do Ser. A ignorância é assim a mãe de todos os sofrimentos do ser humano. Em qualquer dos casos o tantrismo não nega o real fenoménico (drishya – aquilo que pode ser conhecido), como o Vêdánta o faz. Apenas o encara como a causa causada.
E tudo o que acontece tem que estar contido na causa que lhe é anterior, pois coisa alguma pode surgir do nada.
A consciência permanece em tudo e em todo o lado, de tal modo que um dos textos tântricos antigos, o Visvasara Tantra, citado por Van Lysebeth, afirma que tudo o que está aqui, está em toda a parte. O que não está aqui, não está em parte nenhuma[4].
Shaktí é o poder que preside à organização do mundo fenoménico. No seu devir, na sua práxis transformadora até ao MaháPralaya, ou seja a grande dissolução, a grande noite cósmica, Shaktí retorna de novo a Shiva, passando os dois princípios, o imutável e o movimento, a causa incausada e a causa causada, a serem de novo um só, no que respeita á realidade absoluta, realizando a unidade. Após o que novo ciclo se iniciará. No âmbito humano a morte será o processo inverso ao do nascimento.
A cosmogonia tântrica não é religiosa, nem mística, nem dogmática. Apenas especulativa. Como se demonstrou não se socorre dos conceitos de divindade ou de criação do mundo.
O tantrismo tem 36 tattva, dos quais 24, como já acima o referimos, são comuns ao Sámkhya. Íshvarakhrushna, codificador do Sámkhya clássico, afirmou que o Sámkhya, quando ampliado, revela o Tantra em grande extensão[5].
Estrutura-se do seguinte modo:
Primeiro os dois grandes princípios, origem de tudo o que existe.
- SHIVA e 2. SHAKTÍ.
O motor imóvel do Universo.
- SADASHIVA
É a energia volitiva (ICCHÁ).
- ÍSHVARA
A seguinte manifestação, a energia do conhecimento (GÑÁNA), a vibração.
- SUDDHA VIDYÁ.
Após o conhecimento, a surge a energia da acção (KRIYÁ).
6 – MAYÁSHAKTÍ
Depois Shaktí manifesta-se na forma de energia da dualidade, dando origem aos tattva físicos.
Por sua vez este tattva, Mahashaktí, contém em si três funções distintas:
- a) – Srsti, a emanação;
- b) – Sthiti, a evolução;
- c) – Pralaya (Samhára), a dissolução ou reabsorção.
Pelo que surgem os cinco KAÑCHUKA (envoltórios):
- KALÁ
São os limites da infinita força de Shiva.
- VIDYÁ
São os limites da força do conhecimento;
- RÁGA
São os limites da força do desejo, o poder da selecção.
- KÁLA
São os limites da força do tempo.
- NIYATI
São os limites da força de causa-efeito (KARMA). E Shaktí continuará a sua saga transformadora, cada vez mais longe do princípio consciente, agora através dos tattva já conhecidos quando expusemos o Sámkhya. É nesta fase do seu percurso descendente que se manifestam o
PÚRUSHA e a PRAKRUTÍ;
em seguida
BUDDHI; AHAMKÁRA; MANÁS;
depois os
JÑANAINDRIYA;
os
KARMAINDRIYA;
os
TANMATRA;
e finalmente os
MAHABHÚTA.
Porém, a motivação do adepto tântrico não é a estéril discussão teórica. Sabe que só com a prática poderá conseguir aquilo que quer: a expansão da consciência até à percepção da realidade última. O que conseguirá no estado de samádhi. Só possível com o despertar da Kundaliní [6].
(C) Copyright, João Camacho, Yôgachárya
[1] Como veremos à frente nada é o som, neste caso a vibração primordial.
[2] Cfr. O Tao da Física; nesta obra o Dr. Fritjof Capra defende que uma consistente visão do mundo começa a emergir da física moderna, em harmonia com a antiga sabedoria oriental.
[3] Shiva sem Shaktí é Shava (cadáver).
[4] Van Lysebeth, Tantra, el culto de lo femenino.
[5] Santos, ob. cit., pg. 85.
[6] Muito mais haveria a dizer sobre este sistema filosófico. Contudo esse não é o tema do nosso curso. Aconselhamos, assim, autores como Daniélou; DeRose; Eliade; Feuerstein; Mokerjee; Mokerjee & Khanna; Riviére; Sarma; Shivánanda; Van Lysebeth; Woodrofe.