Pránáyáma nos Shastra. Alguns apontamentos.

Este artigo resulta de um workshop que ministramos num fim-de-semana de Yoga, de que fomos co-organizadores, com o patrocínio da União Nacional de Yoga. Não tivemos tempo de fazer uma revisão do texto que agora apresentamos ao vosso juízo crítico. Também não pretendemos esgotar este tema. Em primeiro lugar PRÁNÁYAMA NOS SHASTRA. ALGUNS APONTAMENTOS porque não é nem pretendia ser uma recolha exaustiva das técnicas respiratórias nos shastra. Shastra são as palavras de autoridade, as escrituras sagradas escritas em devanagarí, ou seja, na língua dada pelos deuses – o sânscrito. Entre outros: os Upanishad, muitos deles escritos em cerca de 1000 a. C.; o Bhaghavad Guitá, escrito em cerca de 400 a. C.; o Yoga Sútra, cerca de 300 a. C. e alguns Samhita, cujas datas variam desde a mais remota antiguidade até quase aos nossos dias. É de dizer que, entre outros, o significado de samhita é o de  livro.

Neste workshop eu distribuí, a cada um dos participantes, uma tradução que fiz de uma homenagem ao Sopro constante no Atharvaveda. O texto que eu traduzi estava em francês. Uma tradução feita a partir do sânscrito, numa edição patrocinada pela UNESCO. Não a reproduzo neste artigo[[1].

Os Veda são, talvez, os mais antigos textos escritos da história da humanidade. O Atharvaveda é um dos quatro livros que compõem os Veda[2].

Os estudiosos do Yoga, verificarão que algumas das descrições dos pránáyama são muito diferentes daquelas que se encontram em muitos livros de Yoga escritos no séc. XX. Poderão constatar tal facto, em especial, no que se refere Bhramari e a Murcha. No que se refere a muitos exercícios respiratórios, os estudiosos que os experimentarem, constatarão que a sua aparente simplicidade, encerra em si o valor da ancestralidade e que são práticas fortíssimas, cujos efeitos serão rapidamente perceptíveis.

Ainda neste workshop distribuímos um quadro, com a correlação das principais 21 nádí e o que sobre elas é afirmado em sete dos Upanishad. É de referir que o número de nádí é superior a 300 000. É um quadro adaptado a partir de um elaborado por Motoyama[3].

Então, agora segue-se, propriamente, o texto utilizado como guia no workshop:

Trishiki Brahmana Upanishada

Descreve a posição, o mudrá, o trataka e a atitude mental que devemos adoptar para iniciar a prática de pránáyama. Pelo que, para início do workshop vamos saber o que diz:

Assume oásana, mantém o teu corpo direito, mente desperta, os olhos fixos na ponta do nariz, os dentes não se tocando, a língua colada ao palato, o espírito livre, sem a menor agitação, a testa ligeiramente inclinada, as mãos em mudrá, e poderás praticar o pránáyama de acordo com as regras prescritas.

Nalguns Upanishad o prána é chamado de

Jyeshtha  o mais antigo

Sreshtha  o melhor

Também nos dizem quais são os períodos óptimos para praticar o pránáyama. Este deve ter início no Vasanta Ritu (Primavera  Março/Abril) ou no Sarad Ritu (Outono  Setembro/Outubro)  Nestes períodos o sucesso é garantido.         Ritu é uma estação de dois meses.

O

Prasna Upanishada

Refere existência dos cinco váyu:

1 –Prána, o poder da vida, governa os outros poderes vivos do corpo”.

2 – Apana dirige as regiões inferiores.”

3 – Samana dirige as regiões médias e distribui a dádiva do alimento que
dá a vida.”

4 – “Em todos estes milhões de pequenos canais move-se o poder de
Vyana.”

5 – “O poder vivo (….) o fogo é Udana.”

O

Amrtabindu Upanishad

Dá-nos a definição do que sejam o púraka, o rechaka e o kumbhaka.

Púraka:

“Como se aspira a água pelo caule dum lótus, assim se deverá aspirar o ar. Tais são as características da inspiração (púraka).Rechaka:

“Rejeitar no espaço exterior o ar que não é assimilado pelo corpo e manter os pulmões vazios de ar, tais são as características da expiração (rechaka).Kumbhaka:

“Ficar imóvel sem inspirar nem expirar e sem movimentar nenhuma parte do corpo, tais são as características do cálice.”

Para a prática do pránáyama é necessário ter presente alguns conceitos. Estes encontram-se sistematizados no Yoga Sútra de Pátañjali. Nesta obra quase não é abordado o váyu sádhana. Pois o autor entenderia que esta se aprende de um Mestre e não por livro. Mas os conceitos estão lá sistematizados. E são:

Yoga Sútra

II  49 a 53

Báhya  externa

Abhyantara  interna

Stambha  retida ou da paragem imediata.

Kála  Tempo

Sámkhya  número

Matra  unidade de tempo

Dírgha  longa

Sukshma  duração

A sua explicação encontra-se no nosso curso de pránáyama, que está escrito e que ministramos no IV Congresso Nacional de Yoga, pelo que não nos ocuparemos agora, de modo mais extenso, destes conceitos.

Assentes estes aspectos vamos começar a descobrir como surgem nos shastra os exercícios de expansão do prána.

No

Svetasvatara Upanishad

O pránáyama é descrito da seguinte forma:

“E com o corpo firme e em silêncio, respira ritmicamente pelas narinas, com uma calma subida e descida da respiração”No

Ishwara Guitá

Surge referido do seguinte modo:

O aspirante retém a respiração e repete o Gayatri três vezes junto com cada Vyahritis, no começo os Siras e o Pránava no fim, isto é o que se chama o controlo da respiração.No

Bhaghavad Guitá

O pránáyama é descrito da seguinte forma:

IV-29

Há os que, concentrados na respiração

após tê-la retido, sacrificam

o ar expirado na inspiração

e, na expiração, o inspirado ar.

A inspiração é vista como um abandono, uma dissolução. A expiração, ao contrário deverá ser sentida como uma elevação, uma irradiação, cada vez mais intensa. A respiração surge aqui como uma prática de tapas.V-27

Rejeitando os contactos lá de fora

com a visão fixa entre as sobrancelhas,

tornando iguais, ao respirar, os movimentos

do ar, tal como passam pelas narinas

Este pránáyama surge no Guitá como um ritual de interiorização. Quase como uma forma de meditação. Vamos experimentar. Simplesmente inspirar e expirar. Totalmente absorvidos no vayu sádhana. É acompanhado de bruhmádya dhristi.No

Amrtabindu Upanishad

Não aparece com nenhuma designação. Apenas pretende a saturação pránica do corpo e o despertar da kundaliní. Refere que a inspiração deve permitir acumular a força-fogo, a energia ígnea – TEJAS.Descrição:

a) Inspiração – Visualiza uma corrente de luz viva, cada vez mais intensa, saturada, dirigindo-a ao centro do coração, à partícula vital que representa o eu de cada um, que aí se encontra como uma chama, que se torna gradualmente mais intensa e forte, sob a acção da respiração.

b) Expiração – Expira no mesmo tempo que levou a inspirar, sempre concentrado na chama no centro do coração.

Ghêranda-Samhita

O Ghêranda-Samhita propõe os seguintes tipos de pránáyama:

1 – Sahita (o combinado)

Refere-se ao kumbhaka. Sahita é a combinação entre antara kumbhaka [interno] que é a retenção após uma inspiração e bahya kumbhaka ou shunyaka [externo] que é a retenção após uma expiração completa.2 -Surya-bheda (penetrando o Sol)

Também é descrito no Yoga Kundaliní Upanishad, do seguinte modo:

“Inale lentamente o alento desde fora, pela narina positiva, o mais profundo possível. Faça jalandhara. Retenha o mais longo possível, até que a transpiração surja na raiz dos cabelos [só para os adiantados]. Em seguida expire-se lentamente.”

Mãos em gñana mudrá. Obstruir a narina negativa. Inspirar pela positiva – visualizar a energia solar, de cor amarela, a entrar pela narina. Reter o alento com jalandhara e jhiva bandha. A retenção é tão longa quanto possível. Desfaz o jalandhara e jhiva bandha  e enquanto expira executa uddiyana e mula bandha.

Chandrabheda pránáyama  (penetrando a Lua)

Não faz parte do Gheranda Samhita, é descrito no Yoga Chudamani Upanishada. Apresentamo-lo fora de ordem pela sua relação evidente e de sentido contrário, com o súrya bheda.

A inspiração realiza-se pela narina negativa e a expiração pela narina positiva. A inspiração atravessa a ída nádí e a expiração a píngala nádí. Visualiza-se, na inspiração a absorção de energia azul prateada. A retenção é tão longa quanto possível. Desfaz o jalandhara e jhiva bandha  e enquanto expira executa uddiyana e mula bandha.

3 – Ujjayi (o vitorioso)

Também é descrito no Yoga Kundaliní Upanishad e no Hatha Yoga Pradipika. Neste último shastra o ujjayi é descrito da seguinte forma:

“Cerrando a boca, inspirar pelas narinas, produzindo um ruído, até que o ar preencha o espaço compreendido entre a garganta e o coração (….) Efectuar o kumbhaka com bandha e exalar através de ída.”

Som sibilante, O atrito do ar na glote produz um som sibilante uniforme, quase imperceptível. É o resultado do atrito do ar contra a glote meio fechada. A inspiração é profunda e total. Até não caber mais ar nos pulmões.

Em seguida e com um jalandhara poderoso, com uma contracção intensa dos músculos do pescoço e com mula bandha, executa-se mula bandha. No final e imediatamente antes de terminar a retenção ainda acrescenta, até aos momentos finais, uddiyana bandha.

Provém a expiração, que se faz sempre pela narina negativa.

Desenvolve flexibilidade se executado durante a prática de ásana.

Inspirar pelas narinas contraindo a glote, produzindo um ruído como o ressonar suave – a pessoa do lado não ouve. Retém o ar com a glote fechada, com jalandhara bandha. Expirar pela narina negativa.4 – Shitali (o serenidade)

Também é descrito no Yoga Kundaliní Upanishad.

Colocar a língua em forma de calha entre os dentes semicerrados. Realizar a inspiração pela boca. Reter o ar. Expirar pelas narinas.5 – Bhástrika (o pulmonar)

6 – Bhramari (o semelhante à abelha)

Inspiração até não caber mais ar nos pulmões, tal como no ujjayi. Retenção prolongada. Os dedos polegares tapam os ouvidos. O ruído semelhante à abelha, não resulta da respiração, mas sim da percepção do som interno.

“Tape os ouvidos com os polegares. Inale por ambas as fossas, retenha o alento tanto quanto seja possível e então exale por ambas as fossas. Isto deverá ser praticado em lugar solitário, pela noite, quando não haja perturbação nenhuma. Assim poderá sentir os sons introspectivos (anahata) e o praticante experimentará gozo ilimitado e indescritível.”

7 – Murcha (o desmaio)

Padmásana. Inspirar como no ujjayi. Reter o ar por muito tempo com jalandhara. A retenção deve ser feita quase até ao desmaio. Após, expirar muito lentamente.8 – Nádi shodhana pránáyama

Este pránáyama é descrito no Hatha Yoga Pradipika, no Shiva Samhita, no e no Yoga Chudamani Upanishada.

Obstruir a narina direita. Inspirar pela narina esquerda. Reter o ar nos pulmões o maior tempo possível. Trocar de narina com os pulmões cheios e expirar pela outra narina.

9 – Kêvali (o completo)

O alento deve ser retido em qualquer fase da respiração. Isto é qualquer momento é bom sem Ter havido prévia inspiração ou expiração afim de preparar a retenção seguinte. A retenção deve manter-se por todo o tempo possível. Aqueles que alcançarem samádhi, experimentaram kevala automaticamente.

Quadro elaborado a partir de Motoyama

Interpretação do fluxo das nádí.

Nádí Jabala Darshana Upanishad Yoga Chudamani Upanishad Yoga-shikka Upanishad Gorakshashatakam Siddhasidhantapa-
dhahati
Shandilya Upanishad ShatChakra Nirupana
01. Sushumna Sobe pela coluna vertebral até ao cimo da cabeça No meio. No meio, brahmanádí. No meio. Sobe pelo palato até ao brahmarandra. Sobe por trás do anus até à cabeça e termina no brahmarandra. Desde o centro do kanda subindo até à cabeça.
02. Ida À esquerda do sushumna, a sua abertura é acima do brahmarandhra; termina na narina negativa. À esquerda. À esquerda do sushumna, desde o “círculo do umbigo”, contornado a base do mesmo até se juntar ao vilamba. À esquerda. Termina nas narinas. Do lado esquerdo de sushumna. Do lado esquerdo de sushumna.
03. Píngala À direita do sushumna. Sua abertura é acima do brahmarandhra. À direita. À direita do sushumna, desde o “círculo do umbigo”, contornado a base do mesmo até se juntar ao vilamba. À direita. Termina nas narinas. Do lado direito do sushumna, sobe até à narina direita. Do direito esquerdo de sushumna.
04. Gandhari Atrás do ída, passa por um dos lados e termina no olho esquerdo. O olho esquerdo. Desde o “círculo do umbigo” até ao olho. Termina no olho esquerdo. Termina nas duas orelhas. Parte detrás de ída e termina no olho esquerdo. __
05. Hastijihva Atrás do ída, passa por um dos lados e termina na ponta do dedo grande do pé negativo. O olho direito. Desde o “círculo do umbigo” até ao olho. Termina no olho direito. Termina nas duas orelhas. __ __
06. Pusha Passa atrás do píngala, sobe por um dos seus lados até ao olho positivo. A orelha direita. Desde o “círculo do umbigo” até à orelha.. Na orelha direita. Termina nos dois olhos. Passa atrás de píngala. __
07. Yashasvini Ao lado de píngala, entre o pusha e a sarasvati, terminando no dedo grande do pé esquerdo. A orelha esquerda. __ Na orelha esquerda. __ Entre a gandhari e sarasvati , terminando na orelha direita e nas pontas dos dedos dos pés. __
08. Alambusha Em kandasthana e ao redor do anus. A boca. Desde o “círculo do umbigo” até à orelha. Termina na boca. __ Sobe e desce e pelas tonsilas, a partir da base do anus. __
09. Kuhu Desce ao longo de  sushumna, faz uma curva de 90º antes do término do sushumna e do raka, até terminar no lado direito do nariz. Os órgãos genitais. Desce a partir do umbigo para descarregar impurezas. Termina no pénis. No anus. Ao lado do sushumna, descendo até ao final do pénis. __
10. Shankini Entre a gandhari e a sarasvatí, terminando na orelha  esquerda. Muladhara. Na garganta, conduz energia para a cabeça. No anus, ou seja, no muladhara. No final do pénis. Sobe até à orelha direita. Abaixo do sáhasrara, apoia o sushumna em seu pecíolo, acima do pescoço.
11. Sarasvati Sobe ao lado de sushumna. __ Termina na ponta da língua. __ Na boca Atrás do sushumna até  à ponta da língua. __
12. Varuni Entre o yashasvini e o kuhu. __ Desce a partir do umbigo para levar excrementos. __ __ Entre o yashasvini e o kuhu, atingindo todas as partes da kundaliní, acima e abaixo dela. __
13. Payasvini Termina na orelha direita. __ __ __ __ Entre o pusha e a sarasvati. __
14. Shura __ __ Parte do “círculo do umbigo” até o ponto entre as sobrancelhas (trikuta). __ __ __ __
15. Visvodari Entre o kuhu e o hastijihva, localizado dentro do kandasthana. __ Sai do umbigo; conduz quatro tipos de energia. __ __ __ __
16. Saumya __ __ __ __ __ Atinge diversas pon-
tas dos dedos dos pés.
__
17. Vajra __ __ __ __ __ __ No interior de sushumna.
18. Chitrini __ __ __ __ __ __ No interior de vajra.
19. Raka __ __ Absorve a água instantaneamente; produz espirros; recolhe a fleuma para a garganta. __ __ __ __
20. Citra __ __ Desce a partir do umbigo para descarregar sémen. __ __ __ __
21. Jihva Circula para cima __ __ __ __ __ __

MOTOYAMA, Hiroshi, Teoria dos Chakra. Ponte para a Consciência Superior, 3ª edição, Ed. Pensamento, pgs. 127 e 128

JOÃO CAMACHO

Yogachárya Docente formado pela Uni-Yoga – União Nacional de Yoga de Portugal

2º Dan de Judo – Presidente do Yudanshakai da Associação de Judo Tradicional de Portugal

(C)Copyright, João Camacho, 1999-2000

 

[1] Hymnes Spéculatifs du Véda, traduits du sanskrit et annotés par Louis Renou, col. Connaissance de l’Orient – collection Unesco d’oeuvres représentatives: série indienne, Ed. Gallimard/Unesco, 1985.

[2]Os outros são Rig-veda, Yajur-veda e o Sama-veda.

[3] MOTOYAMA, Hiroshi, Teoria dos Chakra. Ponte para a Consciência Superior, 3ª edição, Ed. Pensamento, pgs. 127 e 128.

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