O texto que agora se apresenta, serviu de apoio ao Departamento de Yôgacine,
aquando da exibição do filme O Tigre e o Dragão.
O Tigre e o Dragão. O Amor e a Morte.
Neste filme pode observar-se a relação entre mestre e discípulo. Como pode ser intensa, como pode ser traída, como pode o discípulo ir além do mestre. Como o poder que os conhecimentos iniciáticos proporcionam pode ser atraente. Uma proposta de como funciona o siddhi da levitação. Mas essencialmente a força do amor. E como este se pode constituir um obstáculo, para uma linhagem brahmachárya, e como, em simultâneo pode ser libertador para aquele que o aceita. Veremos o grande herói ser detido na meditação, pelo amor que sente por uma mulher. Vemos como isso lhe impede os mais elevados estados de iluminação. Veremos também, no fim, que prefere assumir esse amor, morrendo por ele, e ainda assim libertar-se, pela sua força, no momento do mahá samádhi. Para além de tudo o mais é um filme de grande valor estético, de grande beleza visual e com grande poesia – só por isso já valeria vê-lo.
Veremos como, também por amor, para além do herói, outras duas personagem se libertam, através do mahá samádhi, num abandono total, de um desapego tão grande, até à própria vida, como só é capaz quem ama com a intensidade altruísta dos grandes amores. E falamos do amor de um homem por uma mulher. Duma mulher por um homem. Vemos também o amor traído de uma mestra, que me verdade não o era. Claro que, neste filme, a morte, como fonte de libertação, está patente. É um filme oriental, onde a morte, sobretudo quando escolhida, quando resulta de um acto de vontade, é valorosa acima de tudo – recordar-se-ão, aqueles que participaram no meu último seminário dedicado à meditação, do CFIY, ter eu referido um dos poderes que o tântrico deve desenvolver: iccha mrityu – o poder de matar o corpo por um acto de vontade. Vejam, como este filme o apresenta como algo de tão sublimemente belo, pois essa vontade resulta de um amor intenso.
E a propósito do filme, que veremos um dia destes, deixo-vos alguns, poucos apontamentos que me limitei a coligir sobre o amor. Espero não fazer como alguns catedráticos de anatomia que falam dos órgãos sexuais e do acto sexual de modo a tirarem a vontade ao mais excitado.
Refiro-me ao amor, por ser Primavera, talvez. Estimula as nossas sensações e as nossas emoções. Mas refiro-me ao amor, também e sobretudo, porque está patente no filme e há que separar águas. Nos textos e nos mestres brahmachárya, o amor surge tão só como algo de universal – amamos a criação, amamos o cosmos, amamos todos os seres, humanos e os outros, pois no grande plano cósmico somos todos irmãos, amamos a divindade a que nos dedicamos e pronto – quando ao resto, ensina Shivánanda, não brinque com as mulheres, nem ria com elas; ele lá saberá a que coisas poderá conduzir o brincar e rir com as mulheres.
Mas, as escrituras, também referem outro tipo de amor. O amor do bhakta, aqueles que adora; o amor próprio de bhakti – a adoração. Bhaktí é o aspecto afectivo da tomada de consciência do Eu, que se manifesta sob a forma de alegria, intensa e pura, que preenche aquele que a sente. Reparem que para o adorador – bhakta – para aquele que ama, o que o atormenta não é a sujeição ao samsára, ou seja a existência condicionada, como algo de volúvel e instável. Não! Para aquele que ama, é a separação que o angustia. E qual é o significado da palavra Yôga – união, integração. Aquele que ama intensamente quer unir-se, integrar-se. A libertação do sofrimento passa pela união. A afeição resultante deste amor tem, nas escrituras o nome de madhura. É o amor que um homem sente por mulher e esta por um homem. Este tipo de amor é o mais íntimo de todos os que o Bhakti Yôga identifica. Depois este tipo de amor tem ainda diversos cambiantes. Mas o mais intenso, é o que se classifica como parakía – é o amor dos amantes, em todos os sentidos que isto possa ter, o daqueles que se amam, que se desejam e que, eventualmente, concretizam esse amor e desejo, carnalmente. Todos nós estamos ligados por uma rede de relações, de direitos e deveres, que nos prende. A erupção do amor intenso, arrebata o ser que ama dessa rede e catapulta-o para uma dimensão desconhecida, a do amor. Nesse amor a posse é breve, até rara, mas a separação quotidiana. Isso leva o bhakta a desejar constantemente a união. Esse sentimento, o do amante, tem três características:
1 – a lembrança constante do bem-amado
2 – o desejo insaciável de o encontrar
3 – uma capacidade de ver o que na bem-amada, é sagrado, o que é expressão de Shiva/Shaktí, a capacidade de vê-lo numa forma transfigurada pelo amor.
Este amor não é o da posse, mama. Tantas vezes, na nossa sociedade, próprio do casamento e do marido, o patriarca. E esse sentimento de propriedade, de posse, não liberta – pois intensifica ahamkára, o ego.
A paixão dos amantes que se amam, como exposto, é um símbolo da libertação, pois está isenta de egocentrismo, não conhece a segurança do dever, é devoradora, impetuosa, vivida com intensidade. O mundo torna-se estranho ao que assim, ama. Aqueles que assim amam querem unir-se. A separação é tormentosa, intolerável. O encontro entre dois amantes assim proporciona-lhes uma alegria indescritível. Todo o ser aspira a uma união com o outro que ama. Uma união tão intensa, tão absoluta, que fica para lá do tempo e espaço e não dependente deste. Uma união que não possa mais ser desfeita. Tal como ocorre com a união entre Shiva/Shaktí, tal como ocorre com a união entre kundaliní shaktí e Shiva alojado no brahmárandra, no sahásrara chakra. Não ensina Pátañjali que «ele [o samádhi] está próximo para os que o anseiam com intensidade» (Y. S., I-21)? Samádhi significa também integração, como sabem. A integração tão desejada e tão ansiada pelos amantes, que são aqueles capazes dessa auto-entrega ao outro. E o samádhi «também pode ser obtido através da autoentrega » (Y. S., I-23). A loucura dos amantes, a loucura que é uma verdadeira dádiva de amor puro, não é afectada pelo dever, ou pelo interesse. Tal loucura, por vezes, põe em risco a segurança, o dever, por vezes implica um sacrifício que põe em causa a reputação, deita tudo a perder, tantas vezes, como cantam os poetas, tal amor deita a perder até a vida. Esse furor é a intensidade com que se deve ansiar a união, o samádhi. As escrituras ainda descrevem as duas fases desse amor:
Madana – embriaguês na comunhão com o amado.
Môhana – desvario na separação.
E tem seis cambiantes:
Snêha – ternura.
Mana – despeito amoroso.
Pranaya – intimidade.
Rága – paixão.
Anurága – paixão extrema.
Mahábháva – sentimento supremo.
Todos estes conceitos, toda esta exposição teórica descrevem uma experiência que não se consegue comunicar por palavras. Há que senti-la, e só entende o que está subjacente a estes conceitos, provenientes do Bhakti Yôga, quem já sentiu ou sente tais emoções. Pois está em causa a experiência incomunicável do amor perfeito – prêman. E prêman é tão só a perfeição do amor, dominando todo o psiquismo do que ama, crescendo continuamente, de modo subtil, de modo aprendido apenas pela intuição, tal como o ensina a obra Narada Bhakti Sútra. Esse amor faz o bhakta rir, dançar, cantar, mergulhar num estado de grande produção de ambrósia, o néctar da imortalidade – amrita. Aquele que alcança a experiência de prêman está para lá do que é ilusório, pois a cegueira do amor, em verdade não é cegueira, é percepção intuicional do que no outro é resultante dos princípios elevados, de Shiva e Shaktí, e que se manifestam ou potencialmente podem manifestar-se em todos os homens e todas as mulheres. Todos os homens e mulheres podem ser expressão da deusa e do deus. E também estas características mais se manifestam quando estão em estado de prêman. Ou seja, aquilo que é, tantas vezes se revela aos amantes. Como dizem as escrituras do Bhaktí Yôga, para aqueles que amam, com o amor dos amantes, a proximidade do samádhi é intensa e não só quando recitam mantra, ou quando meditam. É a todo o instante e em tudo o que fazem. Pois tudo se funde e dissolve no amor. E o samádhi está próximo pois a união entre o amante e o amado não pode ser completa enquanto não há uma imersão total um no outro. Aqueles que amam e se abraçam não querem saber mais do ‘eu’ e do ‘tu’, pois fundem-se numa totalidade una – Shiva andrógino. Para os amantes que unem e pelo menos durante a união, é o ‘divino’ que se exprime em todos os seus gestos e em todos os seus pensamentos. Integram-se e movem-se um no outro, em unidade. Deixo-vos estas poucas notas que, espero, vos ajudarão a “olhar” o filme.
SwáSthya
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Discípulo do Mestre DeRose
«Sou irmão de dragões e companheiro de corujas»