O nosso corpo

Tudo o que alcançamos ou somos, passa também pelo corpo. Este é a condição necessária para a nossa evolução. É o centro das nossas percepções e da nossa noção de espaço e tempo. Através do ásana, nós vamos descobrindo esse desconhecido que é o nosso corpo e a sua potência se abre à nossa consciência. Associar-lhe-emos o mudrá e o pránáyáma, como caminhos de aprofundamento da consciência do corpo.

 

O corpo, quando não rejeitado é fonte de questionamento permanente. É um objecto eminentemente filosófico. Tem um impacto sobre a nossa percepção do universo.

 

Este entendimento foi comum a muitas civilizações e filósofos. Encontramos tais preocupações nos tempos modernos, com o Prof. Manuel Sérgio a propor que a genérica designação de educação física seja substituída, com ganho, por motricidade humana. Mas já a encontrávamos na alta antiguidade grega, com Platão ente outros, que não desenvolveremos agora, a expressar as suas preocupações sobre a educação na República. Este filósofo entendia ser necessário trabalhar o corpo juntamente com a mente. Pois seria preciso à equilibrada educação e desenvolvimento das qualidades do cidadão aprimorar, em simultâneo, as capacidades físicas e a as mentais. A supremacia das primeiras leva à agressividade, a supremacia das segundas, desenvolve excesso de sensibilidade. A educação deveria permitir uma interacção entre estas duas vertentes. Ora este desenvolvimento equilibrado é conseguido pelo Yôga.

 

A Oriente o corpo sempre esteve no centro do desenvolvimento do ser humano, individualmente considerado. Fosse, em tempos mais recentes, para o rejeitar como fonte de sofrimento, fosse para o cultuar, como morada excelsa do púrusha [1], a perspectiva tântrica, recuperada na Idade Média, com a afirmação de que o corpo é um templo. Esta perspectiva de conciliação com o corpo, por onde tudo passa, proporciona o desenvolvimento saudável das aptidões físicas, assim como a sensibilidade e a clareza mental.

 

No Yôga outras potencialidades são desenvolvidas, através do corpo. Seja pela prática de ásana [2], de mudrá [3] ou de pránáyáma [4]. O uso das mãos, no mudrá, é disso evidência. Os mudrá contêm significados profundos.

 

O Yôga constitui-se como o caminho para o desenvolvimento integral do ser humano, em todas as suas dimensões. A longa aprendizagem do ásana leva o aluno/discípulo à descoberta do corpo.

 

A flexibilidade, a elasticidade, a descontracção, a resistência, a capacidade de adaptação, desenvolvem-se no corpo físico a par com o desenvolvimento, no corpo mental, da serenidade, elasticidade, rapidez de raciocínio, concentração, força de vontade, etc.

 

O corpo energético que funciona como ponte entre o corpo físico e os corpos emocional, mental e proporciona o alcançar do intuicional, é fortemente trabalhado pelas técnicas do Yôga. Pelo que o trabalho sobre o corpo físico não é um fim em si, mas uma forma de ir mais longe, de alcançar outras dimensões e outros estados mentais, que não se alcançariam a não ser através da intervenção do corpo. O ásana pretende proporcionar ao sádhaka o fortalecimento da estrutura biológica, fortalecendo as qualidades endócrinas, mentais, psicológicas, vitalizando o corpo e proporcionando saúde e resistência a doenças. O que permitirá suportar fluxo evolutivo proposto pelo Yôga.

 

Ter em vista que a nossa acção sobre o corpo, é tão só uma forma de mobilizar, potenciar, activar o corpo energético, de modo a que a progressão não tenha limites, mesmo em idade avançada, constitui uma grande diferença em relação a outras propostas que visam, com o treino, predominantemente, o corpo físico. Poder-se-á, desta forma, alcançar uma progressão geométrica, com resultados quase inesgotáveis e gratificantes.

 

Ora a acção sobre o corpo é indispensável, pois somos, também, o corpo que temos. O modelo mental que se deve cultivar é o de um corpo flexível, como se os próprios ossos fossem flexíveis e leves, como se fôssemos plumas que se movem sentindo a resistência do ar. Como se este nos amparasse e nos permitisse voar como aos pássaros. Com a concentração e respiração estas sensações são perceptíveis a um praticante de nível médio.

 

A tomada de consciência do corpo permite tornar conscientes as sensações pelas quais o corpo passa. Com o tempo e com a tomada de consciência o corpo modifica-se. O aperfeiçoar do corpo altera os limites da capacidade de perceber as sensações corporais, aperfeiçoa a capacidade de visualização e alarga os horizontes do movimento e das suas consequências, Os ásana utilizados passam a ter uma nova dimensão, ainda que sejam os mesmos e, concomitantemente, tornam-se mais eficazes. Tal corpo adquire mais características de um fluído do que de um sólido. Tal corpo fica mais perto da leveza do ar, do que da densidade da terra. Fica mais puro, como o diamante.

 

Pela ausência de contracção, a energia flui, pois onde há contracção não há passagem de energia. E vai-se criando um modo favorável ao expressar aquilo que de criativo há na mente de cada um. Também como forma, através do artístico, de acesso ao intuicional.

 

Tudo isto passa pela execução de ásana, a disciplina física do Yôga. E com esta disciplina constrói-se um corpo novo, no qual o ser humano vai percebendo o quanto já transcendeu a condição humana. E esta disciplina, para o ser, tem de reunir, em simultâneo as seguintes condições:

 

 

 

Características do ásana
Ásana Técnica corporal Estável
Confortável
Estética
Respiração coordenada Consciente
Profunda
Ritmada
Atitude interior Localização interior
Mentalização (verbalização positiva, cor e imagens)
Bháva

 

 

Ásana é a técnica mais visível do Yôga. Pátañjali define como sthira sukham ásanam (YS, II-46), ou seja “posição firme e agradável”.

 

Claro que para lá chegar o caminho é longo e exige resistência, pois só se considera firme e agradável a posição que se consegue manter por 3 horas. Pois o objectivo não são os bhôgásana, isto é, os ásana de prazer, mas sim a criação do corpo adamantino.

 

A atitude interior deve ser cultivada. Deve-se manter a atenção no que se vai passando nos diferentes corpos, nos diferentes veículos, máyákôsha, através dos quais o Ser (purúsha) se manifesta:

 

– annamáyákôsha (o corpo ilusório feito de alimento: o corpo molecular, denso)
– pránamáyákôsha (o corpo ilusório feito de prána [bioenergia]; o corpo energético).
– kamamáyákôsha (o corpo ilusório feito de emoções; o corpo emocional; o corpo “astral”)
– manômáyákôsha o corpo ilusório feito de pensamentos concretos; o corpo mental concreto)
– vijñánamáyákôsha (o corpo ilusório feito de pensamentos abstractos; o corpo mental abstracto)
– ánandamáyákôsha (o corpo ilusório feito de felicidade; o corpo intuicional)

 

Ásana deve ser praticado como uma forma de aperfeiçoar o exercitar a consciência testemunho, túriya [5] ou sakshí. Esta consciência é a do que contempla, sem se envolver com o que observa. No caso de ásana, observa a acção, a execução, a reacção dos restantes corpos a esta execução. Percebe o fluxo de energia, de emoções, assim como o fluxo mental durante a execução. Mantém-se atenta, sem interferir e amplia a consciência que o sádhaka tem de si, através do exercício, através da prática corporal. É omnipresente no corpo, nas energias que fluem, nas emoções que surgem, nos pensamentos que se desenvolvem. Observa sem interferir e sem julgar. Tal facto amplia mais e mais a consciência, aproximando o sádhaka, mais e mais, do samádhi. Atento para conhecer, para ampliar a consciência de si mesmo. E é nesse ampliar diário de consciência que se conquista o samádhi. Um dos aspectos maiores do valor da prática de ásana é esta possibilidade de auto-observação consciente.

 

Eliade ensina que êkagráta é o mais elevado nível de concentração, significando ‘concentração da mente num só ponto’. Refere que todas as práticas psico-fisiológicas do Yôga pretendem conduzir o sádhaka a este estado de concentração. E acerca do ásana diz:

 

“A nível do corpo o âsana é um ekâgratâ, uma concentração num único ponto: o corpo está «concentrado» numa única posição.” [6]

 

Para este autor, durante o ásana, a mente concentra-se num só ponto – o corpo. Vai ao encontro do ensinamento de que onde estiver a consciência está o sangue, está o prána, está a mente. E está, acima de tudo, a capacidade de aprofundar a vivência da execução do ásana.

 

A inclusão do pránáyáma, auxilia no aprofundar da vivência do corpo durante o ásana. Logo aprofunda a vivência do nosso ser. Impor ritmo, como se faz no pránáyáma, permite que a observação da consciência testemunho se intensifique, pois o ritmo permite que se vá além da respiração. Pois o ritmo impõe um padrão e cada ciclo desse padrão possibilita aprofundar a introspecção, tornando mais intensa a percepção do corpo e do que se desenvolve neste. Permite descobrir e intensificar a percepção do que ocorre a cada inspiração e a cada expiração e a cada retenção. A consciência vai-se ampliando. Pode utilizar-se na contagem do ritmo um bíja, como o pránava. E o corpo vai mais longe, a permanência é mais intensa.

 

Em conclusão dir-se-á, juntamente com o Padre Stilwell [7], Prof de Teologia da Universidade Católica que:

 

São raros os momentos em que como corpo e mente unidos nos abrimos e nos experimentamos como ponto nodal de consciência, e mais rara ainda a sua apreciação devida.

 

 

[1] Como Shrí DeRose ensina: «homem. Na cosmogonia sámkhya, o Ser, o princípio masculino imutável, que a metafísica do Tantra identiica com Shiva», in Yôga Sútra de Pátañjali, p. 113.

[2] Posição física ou psico-física.

[3] Gestos reflexológicos, magnético e simbólicos, feitos com as mãos.

[4] Expansão da bioenergia a través de exercícios respiratórios.

[5] “O quarto [estado de consciência] (turíya) possui uma dimensão distinta, na qual o sádhaka se encontra iluminado (…). Alguns o apelidam de Eterno Agora, além

[6] Mircéa Eliade, Patañjali e o Yoga, Relógio D’Água Editores, 2000, Lisboa, pag. 72

[7] Peter Stilwell apud Stobbaerts, A Arte do Movimento e a Meditação, p. 12.

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