O Dragão e o Um

Epístolas aos meus discípulos:

Meus queridos, hoje irei falar-vos um pouco do dragão e do um. Falar-vos-ei nessa medida de numerologia.

Neste momento, o A. já estará de cabelos em pé a pensar: “mas que diabo tal coisa tem a ver com Yôga?”. O J. pensará: “Numerologia? Mas agora ele enveredou pela minha área? E quais números? Binários? Vamos lá a ver, pois isto cheira-me a conversa estranha e eu não papo grupos.” Já a Sílvia, estará neste momento derretida, quase em samádhi, com a mente paralisada em apenas uma frase: “Ah! Os números…”

À parte a brincadeira, os números têm tudo a ver com o Yôga. Desde logo na sua fundamentação filosófica, o sámkhya, que significa nada enumeração, descrição numérica. E explica a cosmogonia através da enumeração de 24 princípios. Para além da estrutura numérica, tanto do Pátañjala Rája Yôga, como do SwáSthya Yôga, em oito partes ou módulos. Mas não me alongarei nesses aspectos, por vós por demais conhecidos.

Como sabem, vou estabelecendo elos de ligação individuais com cada um de vós, para além dos elos comuns que a todos nos juntam. E, um dia destes, numa dessas trocas de informação e de vivências bilaterais, a nossa querida senescal dizia-me algo como: “por vezes passamos pelas coisas, sem as vermos.” E é bem verdade. A C., ficou, noutra ocasião, espantada por lhe ter afirmado que, muitas vezes, o que está melhor escondido é o que está à vista de toda a gente. E assim é.

De cada vez que leio o pequeno e velhinho Prontuário do Yôga Antigo, descubro coisas novas, aprendo coisas novas. No entanto, já o li tantas vezes. E o que vou descobrindo sempre lá esteve, visível, não escondido. Eu é que não conseguia ver. O mesmo acerca da numerologia e do Yôga. E se outra fonte não existisse, teríamos no nosso Mestre, no Yôga. Mitos e Verdades, na p. 33, a referência à numerologia, com o tom coloquial que ele gosta de utilizar, assim como quem não quer a coisa, do seguinte modo: “para quem gosta de malabarismos numerológicos…”. Acrescenta uma informação muito importante, atentem nela: “o nove, número da Iniciação”. Em seu socorro, Shrí DeRose proclama a autoridade dos Shástra, citando o próprio Bhagavad Gitá: “segundo aqueles que conhecem a ciência dos cálculos.”

A propósito dos números binários deixem-me dizer-lhes que nalgumas tradições os números pares e, em especial, o número dois (2) eram vistos com uma conotação maléfica. Pois o dois implica a oposição, a divisão. E reparem, rajas[i] e tamas[ii], contradizem-se, e só com satttwa[iii] se ultrapassam os contrários e se consegue a harmonia. Dois é imperfeito, três é perfeito. Há uns anos atrás, participei, como conferencista, numa conferência dedicada ao simbolismo nas artes orientais, organizada e promovida pelo Centro de Artes Orientais. Recordo-me de Sensei Patrão, na sua conferência, chamar a atenção para os números binários, apelidando-os de duais. São dipolo, “di – pólo”, “dia – bolo”, “diablo”, “diabo”. É uma demonstração curiosa.

Se o 9 (nove) é o número da iniciação, o 10 é o número da criação. 1 + 0 = 1. Pitágoras assentou a sua filosofia e os ensinamentos esotéricos da sua escola filosófica nos números. Pitágoras[iv] disse, sobre os números, duas coisas muito importantes e de grande transcendência:

1 – Todas as coisas têm número.

2 – Os números são coisas.

Com a primeira afirmação, Pitágoras segue os ensinamentos do sámkhya, mas, ao mesmo tempo, antecipa em mais de 2000 anos a ciência moderna, que a tudo quantifica para conhecer.

Já se afasta da moderna ciência ao afirmar que os números são coisas. E demonstra-o. Diz que a soma dos primeiros 4 algarismos é sempre igual a dez, para além da nossa vontade: 1 + 2 + 3 + 4 = 10. Ou seja, resistem à nossa vontade, pois são coisas com existência própria para além da nossa mente. O dez, a década de Pitágoras. Não vou desenvolver esse aspecto, por agora.

Na tradição hindu, o Dragão da Sabedoria, o Um, como sabem, em sânscrito êka, ou saka. O Dragão é igualmente a serpente. É o dragão, ou a serpente que, na tradição bíblica, tentou Eva. O Dragão é um antigo símbolo para a luz primordial, representando a sabedoria do caos. Na antiga filosofia oriental, o Bem e o Mal, como potências com autonomia própria, não existem na origem da criação. São apenas dois aspectos da luz primordial. Como dizia a um de vós, já não sei a quem, a luz ilumina, mas cria sombras. Estas precisam daquela para viver. A luz, por sua vez, também pode cegar. O Bem e o Mal são conceitos morais, que se referem à condensação, no plano material destas energias de sinal oposto. Ora, o Dragão, ou serpente, representa a Sabedoria, a regeneração da vida, a recriação. Daí que Sêsha, ou Anata, no fundo a serpente ou o Dragão infinito, representam a continuidade do mundo, pois está com a boca no rabo, desenhando com o corpo um circulo, que faz lembrar a serpente nórdica, Ragnarok, que no fim dos tempos acordará e porá fim ao mundo. Mas, dizíamos, Sêsha é uma abstracção alegórica, que simboliza o tempo infinito. Sendo o Dragão o Um, comunga da capacidade de criação do cosmos.

Noutro dia voltarei a este assunto e falar-vos-ei do um pouco mais sobre números.

 

SwáSthya

 

(C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya.

Discípulo de Shrí DeRose.

«Sou irmão de dragões e companheiro de coruja.»

 

 

[i] Movimento, actividade, dinamismo.

[ii] Inércia.

[iii] Equlíbrio, leveza, bondade.

[iv] Pitágoras (571 a.n.E. ou 570 a.n.E. a 497 a.n.E. ou 496 a.n.E.), filósofo grego considerado um dos maiores matemáticos da antiguidade.

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