Epístolas aos meus discípulos:
Os mantra são sons que foram percebidos, na origem, por sábios em profundo estado de meditação.
O mantra vidya, o conhecimento do que concerne à utilização dos mantra, é uma das ciências mais profundas do Yôga.
Descontrair o rosto faz parte do trabalho de neutralização emocional. Não como proposta de apatia e de indiferença. Mas sim como caminho para uma vigilância descontraída, confiante, sorridente.
O universo é composto por vibração. Inclusive o nosso corpo. No Yôga sabemos que tudo tem consciência, apenas em diferentes graus. O nosso corpo físico, denso, também é energia, logo consciência, portanto é possível, através da consciência, actuar sobre ele e com ele. Não faz sentido algum a separação mente/corpo. A existência é una. É após a separação de Shiva e Shaktí que surgem as divisões na existência. Shaktí no seu devir, na sua práxis transformadora, vai construindo todas as formas e nomes do Universo. E a divisão é uma construção (vikalpa). Ora em nós, kundaliní shaktí é fonte da consciência (chit shaktí) e o suporte que anima o corpo e a mente com energia (prána). Ao despertar vai reestruturar os nossos corpos. Vai fazê-lo, deslocando-se por todo o nosso corpo, detendo-se onde houver bloqueios. Um dos nomes desta energia supracósmica é Saraswáti, ou seja, “aquela que flui”.
A kundaliní é, a nível cósmico, shabda brahman, o som sem som. A nível microcósmico é shabda, o som audível, aquele que é designado tanto por Platão, como pelas escolas esotéricas como a “harmonia das esferas”.
Fazendo um parênteses, dexio-vos a nota de que o caminho da kundaliní passa por aperfeiçoar 8 qualidades:
shôdhana | – purificação |
dhriti | – coragem |
sthirata | – constância |
dhairya | – resistência |
lághava | – subtileza |
pratyaksha | – evidência directa |
nirvikalpa samádhi | – identificação sem pensamento |
O universo, como o conhecemos, resulta da diferenciação vibratória, do momento inicial em que Shiva vibra damaru[i]. O som produzido é pránava, grafado como ômkara – (ÔM). O ÔM é tanto apelidado de pránava como de udgítha – o que ascende. É o som incausado, é o som que é o próprio corpo vibracional do cosmos. É o som que representa a vibração infinita – spanda. Este som é perceptível a vós, praticantes de Yôga, a adeptos de outras escolas iniciáticas, mas sem som, imperceptível para o comum das pessoas.
Durante o CFIY expus-vos a doutrina do Rig Vêdá acerca de vak, o Verbo, a palavra, ela também expressão de ÔM. Referi-vos pasyantí-vak (fala visível); madhyama vak (fala mediana); vaikharí vak (fala manifesta) e a que está para lá destes estados – pará vak, a fala suprema. Correlacionei cada um destes níveis de som, com as formas ou os níveis de poder da serpente de fogo. Por isso não me deterei nesta doutrina. Estudem os apontamentos.
Tudo o que, no Yôga, dizemos sobre energia, a sua utilização, a sua subordinação à consciência, é mais próximo da física quântica, do que aquilo que a ciência foi exprimindo nos últimos dois milénios.
Dizemos nós, de acordo com o nosso conhecido preceito tântrico, que o que está aqui está em toda a parte; o que não está aqui não está em parte nenhuma.
Parménides[ii], um filósofo da antiguidade grega, ensinava algo de parecido:
– O que é, é.
– O que não é, não é.
Tais premissas implicam que aquilo que é, o seja, e não pode deixar de ser. Assim como o que não é, não pode vir a ser.
No mesmo sentido, lê-se no Bhagavad Gita:
II – 1, 2
O que é não pode deixar de ser
E o que não é, não pode vir a ser.
Entendem estas filosofias que experimentar o não ser, é um contra-senso. Apenas há o ser progressivamente revelado, manifestado e reconhecido na consciência, ela própria na sua natureza primeira, una e imutável.
O som, Shabda, manifesta-se de muitas formas, umas mais subtis, outras mais grosseiras, mas todas elas veículos da actuação de Parashaktí. Tudo o que é, move-se, e cada movimento é acompanhado de som, de vibração. Shaktí é a potência subjacente ao movimento, Shiva é o suporte. Shaktí corresponde ao plano sonoro de shabdabrahman, o som que não é afectado nem corrompido pelas inumeráveis formas (rupa) e nomes (nama) evolutivos que a Shaktí vai produzindo, incluindo a própria linguagem. Para que, o que vos digo, não sejam meros aspectos teóricos, é necessário desenvolver percepção, sensorial e extra-sensorial, através da purificação do corpo. O ouvido deve afinar-se; o coração deve purificar-se e estar aberto ao afecto, ao amor – sim, ao amor individual, louco, da paixão, de que vos falava, a propósito do filme O Tigre e o Dragão, mas também a um amor mais amplo e mais divulgado pelos santos homens e mulheres de todos os tempos; o tacto, a sensibilidade física ao toque, ao contacto, também deve desenvolver-se; o cheiro deve apurar-
-se; enfim, todo o corpo físico deve fluidificar para ganhar acuidade sensorial. E o desenvolvimento dessa acuidade é o primeiro passo para o surgimento dos siddhi que nos permitem outras percepções mais subtis.
O começar a perceber sons subtis, é um primeiro passo para a percepção do resto. Um dia destes, a um de vós, referi que, no que à evolução respeita, temos um chakra onde se escuta o som (anahata), não temos um onde se “vê a luz”. E naquele em que pareceria que assim é, não vê. É ele próprio luz, fonte de luz – sahásrára.
O tantrismo que tudo isto nos vai ensinando é uma fantástica e fascinante filosofia, muito para lá dos aspectos sexuais (sem os minimizar ou diminuir) e do maithuna (que é fantástico e proporciona, mais que não fosse, um sublime e supremo prazer). É uma filosofia profunda que nada tem de irracional. Apresenta-nos um sistema equilibrado: Shiva como consciência estática, Shaktí como consciência dinâmica. Também nos apresenta o mundo como algo de real, pois se o mundo é expressão das manifestações de Shaktí, se o mundo são construções (vikalpa) de Shaktí, então são aspectos da realidade última. A evolução, que produz a ilusão da transformação não real, é apenas consequência do movimento (spanda), do devir da Shaktí.
É o movimento que produz a tripartição que leva à ilusão de que o mundo não é real:
1 – som (shabda);
2 – objecto (artha);
3 – cognição (pratyaya).
E isto porque a evolução vai do subtil (paramshiva) ao grosseiro (ashuddha). Esta evolução, passa por cinco categorias de criação pura e trinta e uma de criação impura, que não desenvolverei.
O som articulado, mesmo aquele que usamos para produzir palavras, para falarmos uns com os outros, é, como também sabem da doutrina do mantra – vaikhari. De vaikhari manifestam-se as letras (varna); as sílabas (pada) e as frases (vákya). Nada e bíndu são complementos da última potência da criação. Nada, bíndu e bíja costumam manifestar-se juntos. Destes saem os tribindu ou kámakála, a raiz de todos os mantra. Os tribíndu são o branco (sita), o vermelho (shôna) e o misto (mishra). Os tribindu têm várias correspondências, como a lua, o fogo e o sol; ou a vontade, (icchá), conhecimento (jñana) e acção (kriyá), etc.
Ensinam os shástra que shabda tem a natureza das letras (varna) e dos sons (dhvani). Ora vak é falar. Mas tem a dupla significação de ser o falar, mas também o som dos objectos inanimados. Vak tem um significado parecido com o de shabda. Mas vak é mais m efeito do que uma causa. Shabda, tendo a natureza das letras e dos sons, é-lhes prévio.
1 Houve um filósofo, Plotino, que ensinava que no Universo as coisas movem-se e atraem-se por amor. Os planetas, mantém-se em sistemas, com órbitas definidas, mas interligadas, por amor. As pessoas, os homens, as mulheres, aproximam-se e vivem juntos, em família, em grupo, em sociedade, também por amor. Ensinava, Plotino, tal coisa tão bonita. Acontece que quando aprofundamos o estudo do som, o estudo das palavras de poder, o estudo do mantra e do Tantra, descobrimos que na origem dos sons está o desejo cósmico (káma) ou a vontade (iccha). É o desejo ou a vontade, do Um primordial se transmutar em múltiplos de si próprio. E é esse o desejo que anima também, nos planos menos subtis, entre outras coisa, o amor e o desejo sexual. É esse desejo, manifesto através da vibração inicial, que dá origem ao som, ao mantra. Também por isso, muitas tradições tinham e têm, o vishuddha chakra, como o criador por excelência. Desejo e procriação terrestre, humana, são manifestações, limitadas, é certo, do impulso inicial. Também por isso, a sentimento de quase total realização da mulher que se sente grávida e que dá à luz.
Ora, o som do movimenteo inicial, no princípio dos tempos, na aurora da diferenciação, é, como acima já vimos o ÔM. Nos seres humanos a cognição, os objectos e o nome dos objectos, aparecem como três realidades distintas. Mas são tão só três manifestações eficazes do movimento, do impulso inicial.
Ora a diferenciação entre as manifestações grosseiras do som e as subtis, a percepção das manifestações mais altas (atindriya) só são percebidas pelos Yôgis desenvolvidos. Os Yôgis vêem, apreendem. O kama-manas do Yôgi apreende os objectos subtis, de modo global, numa experiência de identificação, onde não há nem o sujeito, nem o objecto – nyása[iii]. Ora, a apreensão de uma imagem ou objecto (artha) evocado por uma palavra (shabda) é, verdadeiramente, cognição (pratyaya). Como se vê, aquilo que, ao ser humano comum, surge como três manifestações distintas, é para o Yôgi uma só coisa.
SwáSthya
(C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya
Discípulo de Shrí DeRose
«Sou irmão de dragões e companheiro de corujas.»
[i] O tambor de Shiva. Simboliza a força criadora de Shiva.
[ii] Parménides de Eléia (530 a.C. – 460 a.C.).
[iii] Brahmasvarúpa é outra forma de designar nyása.