Círculo de Leitura 28/08/2020

Os meus amados gregos, depois os romanos, iniciaram um processo de racionalização do mundo, que veio a culminar no monoteísmo, afastando os seres humanos de uma realidade supra-sensível, em prol de um torpor resultante uma promessa de salvação eterna.
A ponto de, por volta do século das Luzes, pelo menos no Ocidente, a iniciação resultar tão só em rituais vazios de significado interno, vazios de transformação e alteração da visão do mundo daquele que supostamente era iniciado. A iniciação passou a ser, apenas, um rito de passagem, em que o candidato, após cumprir os pré-requisitos, passou a ser aceite na estrutura corporativa da irmandade aonde se candidatava. É a Maçonaria e os Rosacrucianos que mais contribuem para uma adulteração do processo iniciático, através de formas teatrais, com muito simbolismo, mas com pouca capacidade transformadora. Aquilo que na Antiguidade se chamava de Mistérios (o conhecimento que está para lá da aparência, o que permitia ao ser humano contactar com uma realidade que o ia alterar indelevelmente), foi arredado da maior parte das estruturas iniciáticas. A tal ponto de, no último quartel do séc. XX, algumas correntes new age proporem a auto-iniciação.
O que significava a iniciação nos tempos antigos?
É necessário afirmar que a iniciação, não se +esgota num acto. É um processo contínuo de transformação, de mutação.
Sabemos hoje, que a iniciação, nos tempos antigos, implicava sempre um descer. Aos abismos, como vos digo, às profundezas da mente. Mas também aos reinos da morte. Onde a escuridão, por associação à Senhora, à Deusa, à Lua, reinava soberana. Onde, após esse mergulho, muitas vezes enlouquecedor e doloroso, o iniciado voltava, pelo efeito redentor da luz. Luz do fogo, luz da kundaliní. Nessa descida, o iniciado deve viver a aniquilação dos seus ancestrais, mas também a própria. Assim acontece com os cereais, nas sociedades agrárias, mas também com o metal dos ferreiros, esses grandes demiurgos, que como nós, trabalham e forjam com o fogo. Que, como nós, malham, transformam, moldam o metal, assim como nós fazemos ao corpo, à respiração, às emoções, à mente, para no fim, obterem um metal de especial pureza e qualidade, para no fim obtermos um ser ontologicamente superior, um ser com acesso ao canal intuitivo.
Este processo não é teórico, nem somente simbólico. É um real processo de transmutação, de disciplina continuada, de interferência do guru na vida, na mente, na maneira de ser e de estar do discípulo. O guru, deve, como o ferreiro, malhar, dobrar, submeter ao fogo. E só assim o discípulo se transmutará na lâmina afiada de que a Upanishad fala. Há, tem de haver, uma dimensão vivencial na experiência da iniciação. De outro modo não é real, de outro modo é falsa. E tem de a haver, mesmo nos aspectos menos bons, ou menos agradáveis, ao discípulo. Não basta o aspecto litúrgico, as palavras e as teorias do guru, que se ouvem e se consideram muito bonitas, tal como os católicos fazem em relação às homilias do padre. Há que mergulhar no lado esotérico e mágico da transformação pelas mãos do mestre. Transformação que muitas vezes tem início no ashram, continuidade nas florestas, nas montanhas, nos rios, na percepção das forças e das energias que aí, esquecidas de quase todos, ainda se manifestam. Transformação que ocorre pela acção directa do mestre. Pela interacção do discípulo com este, pelas práticas orientadas por este, pelas práticas propostas por este. Muitas vezes práticas profundas, de grande interferência com a maneira de ser do discípulo, mas que têm como fito modificá-lo, levá-lo mais longe no marga do Yôga Shakta/Sámkhya. Práticas que não devem ter um cariz redutor, interacção que não cessa só porque a prática terminou. Pois a interferência, a acção transformadora, deve ter continuidade em todos os aspectos da vida do discípulo. A acção iniciática tinha, na antiguidade, e tem hoje, quando é autêntica e não apenas litúrgica, a finalidade de preservar a clarividência intuicional. O processo iniciático é, ou deve ser, um mergulho nas entranhas, nas profundezas da mente e da terra e nas suas energias. Porque somos shaktianos, mergulhamos primeiro nas trevas, reino da deusa, reino da Senhora, reino da mãe. Só depois ascendemos à luz. Também por isso preferimos a penumbra da floresta, também por isso fazemos as nossas práticas, no ashram, com as cortinas cerradas e as luzes apagadas. Como se adentrassemos a caverna, ou retornássemos ao útero materno. E o que é o tão decantado hiranyagharbha, ou a caverna, a não ser úteros? O primeiro cósmico, o segundo da terra?
A iniciação autêntica leva à tomada de consciência das energias que se manifestam através do corpo e catapultam-nas, num processo ascendente, para a consciência alargada. O iniciado procura conhecer no corpo a trama dos tecidos, mas também a textura da pedra. Por isso vos tenho sugerido que façam a V. coreografia em cima das pedras. O processo iniciatório autêntico passa pelos Mistérios (vide, por todos, Mircea Eliade), palavra que significa “fechar a boca”, que significa “manter silêncio”. Ora, estamos, com este conceito tão perto do grande ensinamento “os que falam não sabem, os que sabem não falam”. São mistérios, na terminologia grega, mas reparem como estamos perto de gupta vidya (conhecimento secreto), ou de amnaya (misterioso – provindo esta palavra de mistério). Reparem também, como nos remete para outros aspectos. O iniciado, o que vivenciou a experiência transformadora, não tem como expressar por palavras, do discurso racional-intelectivo a sua experiência. Todavia é um testemunho correcto, como Patañjali o indica. E o testemunho correcto é a melhor forma de conhecimento erróneo. É correcto para o que teve acesso directo à experiência, é testemunho, ou seja, a vivência de outro, para aquele a quem a experiência é descrita. Também por isso o mistério – manter o silêncio.
Um outro aspecto também a ter em linha de conta, quando se fala em conhecimento misterioso (amnaya), ou seja, conhecimento sobre o qual se deve manter silêncio, é a moral vigente. O iniciado deve confrontar-se com a moral e com os valores morais que lhe foram incutidos pela sociedade em que está integrado, e que aceitou como bons. Também aí deve pô-los em causa, e num processo de auto-superação, tantas vezes doloroso, penoso, pois entra em linha de conta a noção de pecado e o sentimento de culpa. Nesse processo o iniciado deve por de parte essa moral, transmutando-se também no que lhe foi inculcado como sendo absoluto, natural. Mistério, manter o silêncio, pois se formos discretos, quase tudo nos será permitido. Se formos exuberantes, seremos apedrejados.
Os que um dia são tocados, não mais voltarão a ser os mesmos, ainda que abandonem o caminho, ainda que se afastem do Yôga, ainda que abjurem o mestre. Pois num processo de transmutação propõe-se ao iniciado que morra, que saiba morrer e regressar, regenerado, transformado, da morte. Por isso também é o nascido duas vezes. Não falamos em termos simbólicos. O iniciado transforma-se na sua mundivisão, onde até a sacrossanta moral instituída se modifica no interior deste. Mas não paramos nós o corpo (ásana), como se este estivesse morto? Não cessam os pulmões de respirar (kúmbhaka – shúnyaka)? E não paramos a mente, os seus turbilhões, o pensamento (dhyána)? E para o fazermos não retiramos os sentidos do mundo (prátyahára)?

Círculo de Leitura 24/08/2020

Hoje abordarei a não democraticidade da inicia-ção e do caminho iniciático e da relação Mestre/Discípulo.
Julius Evola, no seu livro Le Yôga Tantrique, refere que a ciência, a técnica, são democráticas. Têm uma estrutura, intrínseca, de organização e de transmissão do conhecimento democrática. Qualquer um, medianamente inteligente, consegue ir à Universidade e fazer seus os conhecimentos actuais. Uma pistola produz o mesmo efeito nas mãos de um idiota, de um soldado, de um polícia ou de um chefe de estado. E a qualquer um deles é possível transportá-los de avião, no mesmo número de horas. Mas assim já não é com o conhecimento iniciático. No âmbito da ciência estamos no plano ontológico do ser humano. E aí, os princípios são os da igual dignidade. Porém o homem é qualquer coisa que pode ser ultrapassada, como ensinou Nietzche. A transcendência da condição humana, objectivo das disciplinas da auto-superação, como a nossa revolução cultural, conduz o sádhaka a um estado existencial e ontológico (ontos – ser, logos – fogo; ciência; estudo). Ou seja, a um estado de ser superior ao do ser humano comum, consequência da superioridade de uma evolução que leva a que o yôgin seja um mutante, por comparação com o resto da humanidade. Ora, o calor, o despertamento, da kundaliní, os siddhis que com isso se manifestam, são pessoais, intransmissíveis e não democratizáveis. E isto, esta profunda diferença, é a divisão fundamental entre a tradição e a modernidade. Pois a diferença real entre os seres é a base de um conhecimento e dum poder inalienáveis, não comunicáveis, logo, exclusivos e esotéricos pela sua própria natureza e não por artifício, pois trata-se de um culminar de um desenvolvimento excepcional, que não se pode partilhar com toda a sociedade.
Nesta sequência, René Guenón, o grande orientalista francês da primeira metade do séc. XX, estabeleceu, para classificar uma fraternidade, um círculo interno, como detentora de autênticos processos iniciáticos, três características que se devem observar:
1- Necessidade de uma genuína qualificação interna dos seus membros
2- Necessidade de uma transmissão do saber esotérico e de auto-aperfeiçoamento interior de cada um dos membros
3- Necessidade de actualização activa subsequente, pelo es-forço individual
Tais exigências devem-se ao facto de a iniciação não ser um mero ritual de passagem que celebra a aceitação numa fraternidade – por isso te fui alertando para o erro em que laboravas do “nós”, por contraponto a “mim”. Há “nós”, sim, mas com genuína qualificação interna dos seus membros e depois com a individual “actualização activa subsequente”. A iniciação é muito mais do que ser aceite num grupo. É, e pretende ser, um processo transformativo, de mutação, de auto-superação, que começa com um influxo energético, polarizado, pelo Mestre, proveniente dos domínios transcendentes e exercendo os seus efeitos ao nível dos corpos subtis. Porém, o que se envolve no processo iniciatório, deve ultrapassar-se também em provas físicas (vês aqui outra razão para a coreografia?) e ser corajoso. (…) O iniciado para vencer as provações e receber o conhecimento do Mestre, deve desenvolver, entre outras, as seguintes qualidades: saber, querer, ousar e calar.
A iniciação foi sempre reservada a alguns e nunca aberta a toda a gente. O impulso iniciatório transmuta o seu humano, se este não o detiver. Uma tradição iniciática usa tudo o que não é racional como elemento de transformação: o cor-po; os desejos; as pulsões; a imaginação; a clarividência; a emoção; a intuição. Pois o processo só pode iniciar-se e ter continuidade de fora para dentro, do Mestre para o discípulo.

Círculo de leitura de 24/07/2020

ORIGENS – Súrya namaskára
O Súrya namaskára foi criado há milhares de anos, na civilização do Indo-Saraswatí, entre o povo drávida. Alguns autores ocidentais, erradamente, atribuem ao Súrya namaskára uma origem próxima, na Idade Média. Laboram em erro. As origens do desta antiga prática radicam na própria origem do Yôga. Ensina Satyánanda que
“As origens do Súrya namaskár datam de antes das mais antigas épocas da história quando os seres humanos pela primeira vez tomaram consciência da existência de um poder espiritual existente dentro deles e que se encontra também no universo material. Esta consciência é a fundação do Yôga.”
Ainda segundo Swami Satyánanda
“A adoração e veneração do sol foi uma das primeiras e mais naturais formas de expressão interior. A maior parte das antigas tradições incluem formas de adoração do sol, incorporando vários símbolos solares (…).”
E, de modo inquestionável, o ilustre Mestre, explica que
“Este grupo dinâmico de ásana não é entendido como sendo uma parte tradicional das práticas de Hatha yôga, uma vez que só foi adicionado mais tarde ao grupo de ásana definidos inicialmente.”
No mesmo sentido, declara António Blay, conhecido mestre de Hatha Yôga, que “o Súrya namaskár não é propriamente um exercício do Hatha Yôga.”
TEORIA GERAL
Começamos por indicar o que significa súrya. É uma das palavras do sânscrito, uma língua morta, muito antiga, indo-europeia, que designam o Sol. O sânscrito é também a linguagem técnica do Yôga. Namaskára significa saudação.
Súrya é o fogo que aquece e ilumina, mas que também cega e queima. Dá vida e destrói. Da fusão entre o oceano e o sol surgiu a vida. Pois esta obtém a sua energia de Súrya, o grande dispensador de vida.
Súrya tem dois aspectos:
O primeiro como Súrya: É o que aquece, mas é o que queima. É o que ilumina, mas é o que cega. É o que dispensa vida, mas é o que destrói.
O segundo aspecto é Savitur: É o poder de dar vida. É o poder básico motivante para a auto-superação. É também o sol que se pode olhar, ao nascente e ao poente. É a este poder inspirador da auto-superação que o Gáyatrí Mantra se dirige.
Shrí DeRose apresenta esta bela tradução :
ÔM bhúr bhuvah swaha, Em todos os planos da criação,
ÔM tat Savitura varênyam. sejamos como o Sol,
bhargô dêvasya dhímahi. esplendorosos como deuses.
dhiyô yô naha prachôdayátô. Que isso estimule nossas
mentes.
A tradução apresentada é a mais consentânea com o Dakshinacharatántrika-Niríshwarasámkhya, as raízes filosóficas da nossa ancestral tradição. Decompondo:
o ÔM – O mais importante dos mantras, o próprio corpo sonoro do Absoluto.
o Bhúr – terra, o plano físico.
o Bhuvah – atmosfera, o plano intermediário entre a terra e o céu.
o Swaha – luz, céu, espaço.
o Tat – aquele.
o Savitura – genitivo de Savitri, estimulante, nome de uma personalidade mitológica ligada ao Sol;
o Varênyam – desejável, excelente.
o Bhargô – esplendor.
o Dêvasya – digno dos deuses.
o Dhímahi – possamos nós alcançar.
o Dhiyô – pensamento, meditação, devoção.
o Prachôdayatô – estimular, pôr movimento.
Há muitas variantes de Súrya namaskára. Seguidamente apresentamos a forma base que adoptamos como a forma estilo da nossa linhagem e assim definida por Shrí DeRose . Acrescentámos o nome de cada uma das posições, assim como a numeração, em sânscrito.
O Súrya namaskára pode ser olhado a partir de três principais componentes:
Forma: A ordem sequencial dos doze ásana que compõem esta prática é a sua matriz que permite autonomizá-la e distingui-la de outras coreografias.
Energia: A sua prática estimula a absorção e circulação de prána a nível dos corpos físico e energético, agindo, pelo acréscimo energético sobre o funcionamento dos corpos emocional e mental, preparando o caminho para o intuicional. E regula, especificamente, o funcionamento de píngala nádí.
Ritmo: A prática de Súrya namaskára deve ser feita com ritmo. Veremos à frente, alguns dos ritmos possíveis. Deve, no entanto, deixar-se a nota de que algumas escolas de Yôga associam cada uma das posições a uma casa do Zodíaco, entendendo que, dessa forma, o ritmo expresso no Súrya namaskára é um ritmo cósmico.
Cumpre tecer ainda alguns comentários sobre o Súrya namaskára, no sentido de melhor se compreender o seu fundamento e simbolismo, de acordo com os preceitos do Tantra/Sámkhya. Fá-lo-emos vivenciando esse simbolismo no corpo com a execução do Súrya namaskára.

Círculo de leitura – 22/05/2020

Do livro do Mestre João Camacho, Yantra. A estrutura do Cosmos
Yantra é uma representação gráfica, drasticamente reduzida, do universo. Yantra significa ‘instrumento’, ‘recurso’ ou ‘tramóia’. O Kularnava Tantra descreve o yantra como aquele que salva, trayatê, todos os seres do medo e do próprio Yama. A palavra yantra deriva da raiz yam ou ainda da palavra yantrati ou yantrayati. O significado destas duas últimas palavras é: ‘conterá’, ‘obrigará’, ‘dirigirá’. Yantra também significa artefacto, aparelho, máquina. Assim, a pedra do moinho, a mó, é yantrapala. A marionete que se move por cordas é yantra putrika. A palavra yantra também designa aparelhos cirúrgicos, tal como consta no Susruta-samhita, um tratado de medicina cirúrgica. Por sua vez, a palavra yantranam significa ‘protecção’, ‘guardar’, ‘atadura’, tal como consta do mesmo tratado. Etimologicamente é composta por yan, ‘suporte de energia’ , e tra, ‘instrumento’.
Os yantras são tão antigos quanto a emergência do pensamento mítico e simbólico, que foi a primeira forma de o ser humano abordar, compreender e explicar o real e encerram os princípios do tantrismo. Constituem excelentes objectos de meditação e são utilizados na magia tantrica hindu .
Alguns yantras, como o ÔMkara, são de estrutura muito simples. Outros, como o Shrí Yantra, são de estrutura muito complexa.
Os yantras também foram usados com intenções mágicas que consistiam, v. g., em afastar o mal, vencer os perigos, erradicar a peste, impedir as tempestades, aumentar a fertilidade da terra, entre outros.
A palavra magia significa, originalmente, a sabedoria dos sábios orientais. A palavra magus ou magi refere-se aos membros da classe sacerdotal persa. Supõe-se que a palavra deriva do termo sânscrito magha, que significa uma dada classe de pessoas, mas também grande riqueza proporcionada por Indra, o rei dos deuses do panteão védico; é neste sentido que a palavra é utilizada no Rig Vêda. Magha também designa quem possui riqueza em abundância e uma grande riqueza é designada por maghavan. Ora, a palavra magha está relacionada com mahat um dos princípios do sámkhya. Mahat, o grande, é a consciência indiferenciada, por oposição à consciência individualizada, o ego, ahamkara e consciência objectiva, manas. Assim, pretende a magia compreender a dinâmica da consciência e utilizá-la. A magia é uma arte tradicional essencialmente prática e utilitária . Enquanto outros caminhos pretendem elevar o ser humano ao nível da consciência indiferenciada, a magia procura baixar esse plano superior ao nível do quotidiano.
Ao nível da metodologia da nossa tradição ancestral e, em concreto, do tantrismo, repare-se nos chakra, centros energéticos de um mundo abstracto, invisível, subtil, a manifestarem-se no corpo concreto. Ao nível do desenho subtil dos corpos de cada ser humano, o Shrí Chakra é um mapa do cosmos abstracto existente dentro do corpo físico.
O yantra é, para o próprio tantrismo, um poderoso instrumento mágico. O yantra é uma representação visual das energias, forças, vectores que operam no corpo e no cosmos. O mesmo é dizer, no micro e no macro cosmos. Se o mantra utiliza os símbolos sonoros, verbais, o yantra utiliza os visuais. No yantra todo o mundo visível é reduzido às suas essências e às unidades fundamentais, como o ponto, o círculo, o triângulo, o quadrado, etc… O yantra é utilizado no tantrismo como um instrumento de concentração e visualização.
O poder protector do yantra tem a ver com o seu desenho. Cada yantra é auto-suficiente, contém-se a si mesmo, e está protegido contra influências externas pelas linhas que rodeiam o desenho principal – repare-se, por exemplo, na utilização que a magia dá ao yantra, o círculo mágico.
No yantra o seu ponto central (bindu) é o aspecto focal da energia. É o ponto de mais intensa concentração de energia. O ponto está rodeado de sucessivos recintos, linhas, triângulos, quadrados, que representam distintas modalidades de energia. A intersecção de formas simples, como linhas, quadrados, triângulos, é considerada mais poderosa. E os espaços formados por essas intersecções são campos especiais de operações de energia. O poder do yantra pode ser potenciado com o mantra adequado.
João Camacho

O centro. O fio de Ariadne e a busca introspectiva – maithuna.

 

1. Coligi alguns apontamentos que se vos destinam. Vamos ver se ao passá-los à forma escrita os consigo apresentar como sútra, ou seja, com um fio condutor, o fio que sustenta a nossa caminhada no labirinto, o fio que une os fragmentos da nossa existência, quando somos confrontados, directamente, sem subterfúgios connosco e com aquilo que de facto somos. E esse confronto ocorre uma e outra vez, se o procuramos, evidentemente. O centro não estará definitivamente resolvido enquanto não nos libertarmos totalmente das amaras da acção dos triguna. Assim, passamos tantas vezes de um labirinto a outro – a constante procura do centro que deve ser tão imóvel quanto rápida. Alguns de vós afirmam ir entendendo o que vos digo umas vezes, e outras nem por isso. Deixando o que não conseguem decifrar para depois. Não tem importância que assim seja. Nestas coisas a que nos dedicamos, entendemos de imediato quando já experimentámos, percebemos o que está em causa quando, na nossa caminhada individual, nos estamos a aproximar da experiência referida. Ficamos sem saber do que se trata se ainda estamos longe, mas o importante é estarmos no caminho.
2. O confronto connosco, no trabalho de introspecção de que tantas vezes falamos, pode e causa muitas vezes sofrimento, dando-nos a sensação de estarmos perdidos, de não sermos capazes de nos encontrarmos mais. Podemos ter o delírio de ficarmos para sempre retidos no labirinto, sempre longe de encontrar seja o centro, seja o caminho para a saída. E quantas vezes, cada um de vós, não se sentiram já perdidos? Daí a importância do fio de Ariadne, do sútra condutor, que liga os rudráksha do japamálá.
E referir o sofrimento, numa linhagem tântrica, não será um contra-senso? Neste caso não. Continuamos no caminho da sensorialidade. Reparem, perguntem a uma mulher que já tenha sido mãe se o sofrimento das gestações e respectivos partos, não lhes causou uma alegria tal como nós, os homens, não conseguimos alcançar? Para as mães como para os bebés, o cordão umbilical energético não desaparece, antes dos nove meses de existência fora do corpo da mãe. Perguntem-lhes o que sentiram, como se sentiram – acreditem, mesmo que não o confessem, sentiram-se verdadeiras deusas-mães, capazes de realizar o milagre da vida. Capazes de o realizarem para além do pai e, por vezes, não obstante o pai, que não passa do lingdhara, ou seja, o portador do pénis. Sofrimento, para a mãe e para o novo ser? Sim Alegria infindável, auto-realização e auto-satisfação para as mulheres-deusas que concretizaram o milagre da criação? Também um inequívoco sim. Em relação aos nossos colegas homens, se querem mesmo sentir o que vos digo, e só o conseguirão de forma aproximada, fundam-se na Shaktí. Sejam um só com a Shaktí, coincidentia opositorum – a coincidência dos opostos. Em maithuna, se e quando o quiserem fazer, poderão ter a graça de a Shaktí-deusa, que aceda ao maithuna convosco, vos permitir esse fundor de corpos (os vários que identificamos no Yôga). E aí terão um vislumbre do ser, do sentir, da sensibilidade, da emoção de uma mulher. E, também ela perceberá a força viril, a masculinidade do macho, do homem-touro, a fonte e aorigem da sua força, que por vezes, não contida, se revela como brutalidade. E os dois poderão ser um – o andrógino. E tudo isto, porque nesse instante aquele homem e aquela mulher, são tão só Shiva e Shaktí.
Não deverão confundir maithuna com sexo. Poderão ter relações sexuais sempre que quiserem e muito bem entenderem, o que vos saberá muito bem, pelo menos assim vos desejo, sem que isso tenha algo a ver com o maithuna, a alquimia sexual. Claro que têm de comum que ambas as actividades, passam pela sexualidade e implicam uma boa dose de excitação. Mas a semelhança termina aí.

3. Ainda a propósito das últimas aulas e dos efeitos que possam ter tido sobre vós e sei de quase todos vós que foram intensos e se manifestaram, de maneira diferente em cada um. Nuns com mais intensidade, noutros com mais serenidade.
Uma aula de Yôga pode ser modulada de muitas formas, de modo a produzir mais efeitos aqui, menos ali, equilibrar exageros energéticos neste aspecto, intensificá-los quando são parcos naquele. Um mestre de Yôga deverá conseguir fazê-lo, orientando a prática de modo a intensificar ou diminuir este ou aquele efeito. Pode fazê-lo porque sabe o que está a manipular, conhece intimamente as energias que está a usar, a estimular. Por isso, pode acontecer que um discípulo sinta efeitos tão dispares de uma aula para a outra. Não que esteja algo mal com esse discípulo, que sentia efeitos tão intensos e depois suaves, nas mesmas zonas do corpo e com os mesmos exercícios.

A progressão do yôgi de acordo com as escolas tântricas medievais

Algumas tradições tântricas medievais, apontam para uma progressão do yôgi da seguinte forma:
# Pashu, o homem comum, o homem animal, que ainda não iniciou o caminho. Sendo que Shiva, o mahêshwara (o primeiro nascido), o Sadyôjata (o nascido espontaneamente), se apresente tão só, com a humildade dos sábios, como Pashupati, o senhor dos animais, pois, em verdade, esses são os que mais necessitam de Shiva e dos seus ensinamentos.
# Sádhaka (o praticante), sádhika (a praticante). O pashu transmutou-se em aprendiz. É aquele que transpôs o 1º véu da ignorância, iniciou os passos rumo à libertação. É o que segue o sádhana com afinco e disciplina e no Yôga tântrico não importa qual seja o passado desse sádhaka, ou a sua origem, só importa o que acontece depois do início do caminho.
# Vira. Seguidamente passa a herói ou adepto. Neste estado já pode distinguir e ultrapassar as aparências do mundo material. São iniciados que pela prática do Yôga adquiriram o poder de dominar o mundo físico e o mundo subtil. Já transcenderam a condição humana. Um vira pode já ser um mestre que domina todas as energias em si latentes e em sua volta. É capaz de dominar as forças elementares da natureza. Tem a capacidade de atravessar o labirinto interno e aceder aos níveis superiores.
# Siddha, o realizado. Este é o estado seguinte, tembém apelidado de kaula (membro do grupo), palavra que corresponde a companheiro. Encontra-se num estado de verdade. Pode dominar as pulsões naturais, não necessitanto nem de rituais, nem de virtude. Ele é, no seu corpo, mestre da criação. Domina o poder da serpente.
# Divya. É um estado acima e para além do anterior, É um senhor da energia e do fogo, em si e fora de si.

Voltando ainda aos efeitos energéticos, a tradição hindu aponta a existência de 10 principais deusas, apelidadas de mahá vidyá (as grandes sabedorias). Estas dez grandes deusas são Kálí, a negra, a personificação da ira, da fúria de Durga; Tára; Tripurá Sundarí, Bhuvanêshwarí; Dhúmávatí, Bagalámukhí; Bhairaví; Mantagí; Kamalá e Chinnamastá. Entre estas, para os aspectos energéticos que foram sentindo, umas vezes mais intensos outras vezes mais suaves, é Chinnamastá, a da cabeça cortada, que tem importância especial. Esta deusa costuma ser representada nua, com uma guirlanda de crânios ao redor do toco do pescoço. Segura a sua prápria cabeça cortada com a mão esquerda. Muitas vezes é ainda representada sentada ou em pé sobre um lótus e sobre um casal, Shiva e Shaktí, em cópula, com esta por cima daquele. Do pescoço, jorram duas correntes de sangue, com as quais a deusa pretende alimentar as suas duas servas, Jayá e Vijayá, que recebem, cada uma deles, um dos jorros de sangue na boca, ou num recipiente, dependendo das representações gráficas que se olhem. O cortar da cabeça, tal como já acontece no mito de Ganêsha, representa a morte daquele que, uma vez iniciado, renasce. Mas agora num estado ontológico superior. O cortar da cabeça significa o cortar das amarras do mundo profano, o libertar-se para o mundo sagrado. Por outro lado, este sacrifício da mãe divina, representa o sacrifício das correntes esquerda e direita, pingalá e idá, que têm de ser sacrificadas para permitir o livre fluxo de energia pelo canal central, sushumna nadí. Sem o sacrifício destas duas correntes, consegue-se equilíbrio, mas não exactamente o despertar da kundaliní. Tanto assim é que o outro nome desta deusa é Sushumnêshwara Bhásiní, ou seja, “a que brilha com o som do canal central”. O casal por baixo da deusa, é a estimulação sexual que desperta a kundaliní pelo facto de terem sido sacrificadas as duas correntes, prána e apána.

Mestre João Camacho, O sono de Ganêsha. O poder adormecido; Edição comemorativa do duplo aniversário (25/50) de João Camacho, Yôgachárya. Págs. 17-22

Repetição da cosmogonia

TEXTO PARA A REUNIÃO DE OUTUBRO 2019

Portanto, preeminentemente, o Centro é o âmbito do sagrado, a zona da realidade absoluta. De modo semelhante, todos os demais símbolos da realidade absoluta (árvores da vida e imortalidade, fontes da juventude, etc.) encontram-se também situados em lugares centrais. A estrada que leva para o centro é um “caminho difícil” (duro hana), e isso pode ser verificado em todos os níveis da realidade: difíceis convoluções de um templo (como em Borobudur); peregrinação a lugares sagrados (Meca, Hardwar, Jerusalém); viagens cheias de perigos, realizadas por expedições heróicas, em busca do Velo de Ouro, das Maçãs Douradas, da Erva da Vida; desespero dentro de labirintos; dificuldades daquele que procura pelo caminho em direção a seu ego, ao “centro” do seu ser, e assim por diante. A estrada é árdua, repleta de perigos, porque, na verdade, representa um ritual de passagem do âmbito profano para o sagrado, do efêmero e ilusório para a realidade e a eternidade, da morte para a vida, do homem para a divindade. Chegar ao centro equivale a uma consagração, uma iniciação; a existência profana e ilusória de ontem dá lugar a uma nova, a uma vida que é real, duradoura, eficiente.
Se o acto da Criação realiza a passagem daquilo que não é manifesto para o que é manifesto, ou, falando cosmologicamente, do caos para o Cosmo; se a Criação teve lugar a partir de um centro; se, consequentemente, todas as variedades do ser, desde o inanimado até o vivente, podem alcançar a existência apenas numa área de domínio sagrado — tudo isso ilumina de uma forma maravilhosa para nós o simbolismo das cidades sagradas (centros do mundo), as teorias geomânticas que orientam a fundação de cidades, os conceitos a justificar os rituais que acompanham sua construção. Nós estudamos esses rituais de construção, e as teorias que eles implicam, numa obra anterior, e a ela remetemos o leitor. Aqui pretendemos destacar apenas duas importantes propostas:
1. Toda criação repete o ato cosmogônico pré-eminente, a criação do mundo.
2. Conseqüentemente, qualquer coisa que é fundada tem sua fundação no centro do mundo (desde que, como sabemos, a própria Criação teve lugar a partir de um centro).
Entre os muitos exemplos de que dispomos, vamos escolher apenas um, que, por ser interessante também em outros aspectos, reaparecerá mais tarde, em nossa exposição. Na Índia, antes que uma única pedra seja colocada, “o astrólogo mostra qual é o ponto da fundação que está exatamente acima da cabeça da serpente que sustenta o mundo. O pedreiro produz uma pequena estaca de madeira, a partir de um galho da árvore Khadira, e, com o uso de um coco, crava a estaca no chão, bem nesse lugar particular, de maneira que a estaca fixe a cabeça da serpente naquele ponto, com toda a segurança… Se essa serpente algum dia sacudir a cabeça com muita violência, sacudirá todo o mundo até que ele fique em pedaços”. Uma pedra fundamental é colocada em cima da estaca. Assim, a pedra angular fica posicionada exatamente no “centro do mundo”. Mas, ao mesmo tempo, o ritual de fundação repete o ato cosmogônico, porque, “prender” a cabeça da serpente, cravar uma estaca sobre ela, representa uma imitação do gesto primordial de Soma (Rg- V e da , II, 12, 1) ou de Indra, quando este “atirou a serpente em sua toca” (VI, 17, 9), quando seu raio “cortou sua cabeça” (I, 52, 10). A serpente simboliza o caos, aquilo que é disforme e não manifestado. Indra vem sobre Vrtra (IV, 19, 3) não dividido (aparvan), não despertado (abudhyam), dormindo (abudhyamanam), mergulhado no mais profundo sono (susupanam), estendido (asayanam). O lançamento do raio e a decapitação são equivalentes ao ato da Criação, com a passagem daquilo que não é manifestado para o que é manifestado, do disforme para o que foi formado. Vrtra tinha confiscado as águas e as mantinha no interior das montanhas. Isso significa que Vrtra era o
senhor absoluto — do mesmo modo que Tiamat ou qualquer divindade em forma de serpente — em relação a todo o caos anterior à Criação; ou que a grande serpente, mantendo as águas apenas para si mesma, tinha deixado todo o mundo louco por causa da seca. Independente de esse confisco ter ocorrido antes do ato de Criação, ou se deve ter lugar depois da fundação do mundo, o significado permanece o mesmo: Vrtra “impede” que o mundo seja criado, ou
de durar muito. Como símbolo daquilo que não é manifestado, do que é latente, ou do disforme, Vrtra representa o caos que existia antes da Criação.
Em nossos comentários sobre a lenda do Mestre Manole (cf. nota 35, acima), tentamos explicar os rituais de construção através da imitação do gesto cosmogônico. A teoria implicada nesses rituais resume-se nisto: nada pode durar se não for “animado”, se não receber uma “alma”, por intermédio de um sacrifício; o protótipo do ritual de construção é o sacrifício que teve lugar no momento de fundação do mundo. Na verdade, em certas cosmogonias arcaicas, o mundo recebeu existência por meio do sacrifício de um monstro primordial, simbolizando o caos (Tiamat), ou através do sacrifício de um gigante cósmico (Ymir, Pan-Ku, Purusa). Para garantir a realidade e a durabilidade de uma construção, existe uma repetição do ato divino da construção perfeita: a Criação dos mundos e do homem. Como primeiro passo, a “realidade” do lugar é garantida por intermédio da consagração do terreno, isto é, por sua transformação em um Centro; então, a validade do ato de construção é confirmada pela repetição do sacrifício divino.
Naturalmente, a consagração do Centro ocorre num espaço de qualidade diferente do espaço profano. Por meio do paradoxo do ritual, cada espaço consagrado coincide com o centro do mundo, da mesma forma que a hora de qualquer ritual coincide com o momento mítico do “princípio”. Através da repetição do ato cosmogônico, o momento concreto, no qual a construção tem lugar, é projetado para o tempo mítico, in illo tempore, quando ocorreu a
fundação do mundo. Assim, a realidade e a durabilidade de uma construção ficam garantidas, não apenas pela transformação do espaço profano em espaço transcendental (o Centro), mas também pela transformação do tempo concreto em tempo mítico. Seja qual for o tipo de ritual, como vamos ver adiante, ele se desenvolve não só num espaço consagrado (isto é, num lugar diferente, em essência, do espaço profano), mas também num “tempo sagrado”, “era uma vez” (in illo tempore, ab origine), ou seja, quando o ritual foi celebrado pela primeira vez por um deus, um ancestral, ou um herói.

Eliade, Mircea; O Mito do eterno retorno, Ed. Mercuryo 1991, pg. 23-26

Geometria para conhecer-se a si mesmo

TEXTO PARA REUNIÃO DO CÍRCULO DE LEITURA DE SETEMBRO 2019

 

Platão, no livro VII da República diz que a finalidade da Geometria não é só medir linhas, superfícies ou volumes, ou as relações entre ambos, é elevar o olhar da alma para a
contemplação daquilo que não morre.
Um triângulo equilátero, por exemplo, definido pelos seus ângulos iguais, é ele mesmo quer seja do tamanho de um átomo ou do universo inteiro, estático ou em movimento, só ou acompanhado de outras figuras geométricas. E não encontramos nada na natureza que os nossos sentidos percebam que não dependa total ou parcialmente do quando, do como, de onde, se está parado ou dinâmico, ou seja, depende sempre das mudanças no espaço, do tempo e da circunstância.
Trabalhar na investigação das propriedades das figuras geométricas e das suas relações, traçarmos nós mesmos estas figuras (polígonos regulares, circunferências, linhas
tangentes, etc.), serena as nossas mentes, ordena-as, desperta intuições e faz-nos vislumbrar o mistério do que não muda, e portanto, estabelece a ponte com aquilo que é mais eterno dentro de nós.
Este é o motivo por que na educação clássica foi incluída a Geometria no Quadrivium. Além disso, cada elemento geométrico é o esqueleto simbólico de muitas noções, ideias, vivências, é a chave que permite abrirmo-nos ao seu sentido. Toda a situação vital, todo o problema, todo o processo da natureza poderia ser decifrado se encontrarmos a
chave geométrica da qual depende. A geometria do átomo permitiu-nos conhecer todos os elementos da Natureza e os das moléculas que formam a estrutura armilar em si das formas vivas e as suas propriedades físico-químicas, e a geometria espiral do ADN na linguagem da vida no nosso planeta.
A mesma linguagem popular expressa conceitos muito profundos com palavras ou frases que não são senão percepções ou vivências geométricas de um dado assunto.
Dizemos “estás descentrado” e todos temos uma noção clara do que isto significa; ou falamos de “rectidão moral” ou de uma vida “sinuosa” ou de um olhar oblíquo, tendencioso. Olhamos para cima e para a esquerda para recordar (passado), e para cima e para a direita para imaginar ou projectar (futuro).

Os generais chineses diziam que quando se dá uma ordem, há que sentir que a linha do seu peso moral nos leva ao centro da terra, e o filósofo Sri Ram (1973) disse que a
Educação é uma elipse cujos focos são os pais, por um lado, e a Escola, por outro; os nossos caminhos de vida encontram-se ou separam-se, embora sigam a mesma direcção,
falamos de se encontrarem, mas no infinito; os incas diziam que a Raiz de 2 (a hipotenusa de um triângulo rectângulo cujos catetos são a unidade) é o “caminho da verdade”, pois é o caminho entre o que somos aparentemente como sombras projectadas na terra, e que somos realmente, e assim, poderíamos continuar a fazer correlações até o infinito, pois os mesmos mundos internos e externos são-no relativamente: desde um qualquer ponto dado numa espiral, o que se abre ao infinitamente exterior é idêntico ao que se submerge até ao
infinitamente interior.
A Geometria é determinante na arte de aprender a pensar rectamente, e também na de perceber as analogias que existem na natureza, esqueleto da compreensão dela mesma.
É muito belo voltar a sentirmo-nos jovens, quase crianças, e voltar a encontrar geometricamente (e não só aproximadamente) o centro de um círculo, ou desenhar
polígonos dentro dele, ou circunferências ao redor de um triângulo ou de um quadrado; encontrar das tangentes a uma circunferência num ponto dado, traçar um pentágono (o
grande segredo pitagórico), ou racionalizar a medida de uma linha (o desconhecido) dividindo-a num número de partes iguais, seguindo as diretrizes do mesmo sábio grego a
quem se atribuiu a máxima “Conhece-te a ti mesmo”, ou seja, do filósofo Tales de Mileto.
Além disso, como cada um destes elementos geométricos é um símbolo, uma janela que nos abre a uma infinidade de significados, podemos fazer filosofia só com eles e com a
relação com o que sobre a vida conhecermos ou pensarmos.
Podemos fazer estas simples experiências geométricas, para lançar desde a circunferência do que somos um raio que
ilumine o interior, uma ponte para dentro, e conhecer-nos melhor a nós mesmos. Pois, como figurava escrito no frontispício do templo de Apolo em Delfos:

CONHECE-TE A TI MESMO E CONHECERÁS O UNIVERSO E AS LEIS QUE O GOVERNAM.

Fernandez, José Carlos, in Matemática para Filósofos, 1 de Agosto de 2019

Shiva Natarája Nyása, ou Tándava.

TEXTO CÍRCULO DE LEITURA – JULHO 2019

Diferenças de denominação para uma mesma arte? Como logo no início o vimos, e só exemplifiquei com o Karate, este, com uma história muito mais recente, pode ser Tê, Todê, Okinawa Tê, etc.. Quando vamos muito mais longe, 5 ou 6 mil anos atrás , vamo-nos deparar com muito mais dificuldades em destrinçar nas fontes e no resgate que, por vezes, é feito pelos canais intuicionais. Assim há autores que chamam a esta arte antiga Kalaripayt, outros que dizem ser o Vajramushti, ou ainda Tenziku Naranokaku.
Em suma poderemos afirmar que há pelo menos um ramo das artes marciais que vai da Índia para China e desta para o Japão. Há outro ramo que vai da Índia para a China, desta para Okinawa e desta para o Japão. Para Ocidente vamos encontrar fenómenos interessantes. Vamos encontrar as artes marciais gregas, que ainda hoje conhecemos como luta grego-romana. Mas eram muito mais complexa do que hoje se nos apresentam. Tendo aí, na Grécia, por exemplo, o pancrácio. Origem autónoma? Não o sabemos. Mas sabemos que as tribos que chegam à Grécia, como, entre outros, os Dórios e os Jónios, são tribos arianas vindas de leste, da Índia, do Afeganistão, etc… Após os contactos com os drávidas terão levado as suas artes de combate para a Grécia. É uma hipótese altamente provável. Por outro lado, os gregos conheciam o Yôga e os mestres de Yôga que viajaram da Índia para a Grécia. Chamavam aos mestres de Yôga os gimnosofistas, os filósofos nus. Alexandre viajou para a Índia, num percurso de retorno de uma tribo ariana que daí tinha saído e que regressou a casa. Aliás, ao aí chegarem os gregos de Alexandre integraram-se perfeitamente nos cultos a Shiva. Pois cultuavam-no como Dionísio, o Deus de Nisa. E o Deus de Nisa é outra das formas como Shiva é conhecido e tratado na Índia.
Cada povo desenvolve os sistemas de combate de acordo com as circunstâncias históricas, económicas, políticas, culturais vigentes. E as artes marciais indianas, nos últimos milénios, não foram excepção. Sem entrar em pormenor, vamos aí encontrar, com a evolução específica de cada escola, ou de cada região, com a experiência de combate deste ou daquele mestre, diferenças entre as escolas do Norte e as do Sul, entre as escolas internas e as externas. Entre as que usam mais armas e as que usam menos armas, etc.. mas não conhecem este fenómeno? Não é assim nos ryus que praticam? Não é assim entre as escolas de Karate e entre as escolas de Aikido? Não é assim entre o Judo do Kôdôkan e o Judo do Butokukai? E muitos outros exemplos vos poderia dar.
Deixo-vos algumas notas, poucas para não vos cansar, mas que documentam, em parte o que vos tenho exposto. Mas para a extensa fundamentação bibliográfica destes dados tenho vários artigos publicados, seja na MON. Actualizações de Budo, como nas revistas online, Surya online e na Y .

Shiva, enquanto criador do Yôga, é muitas vezes representado como guerreiro:

• Tem como «emblema» principal o trishula, a lança tridente , “a sua arma como herói” – Machado de guerra – labris -«espada (….) um laço, um escudo»

• armado de arco e flechas , sendo designado, quando assim é, como Sharva (o arqueiro) . O seu arco tem o nome de Pinaka.

• Tem um exército – buthagana. Ganêsha é o comandante-em-chefe dos gana (demónios). Aliás esta divindade, habitu-almente representada de modo prazenteiro, até com flores na cabeça, é um temível combatente e tem o seu nome composto das palavras gana (demónio) e isha (Senhor). De onde resulta Ganêsha – o Senhor dos demónios.

• E, maxime, Shiva é “o Deus da Guerra (sômaskanda)” outras vezes é apresentado como “le dieu des soldats”, como surge em L ‘Hymne aux Cent Rudras de Vájasênêyi Samnita (Yajur Vêda, 16, I)

Referi-vos o Bhagavad Gítá. Para finalizar a exposição teórica, antes de passarmos a um pouco de prática, vou ler-vos um pequeno excerto desta escritura.

Bhagavad Gitá

Depois de ver o exército pandava
disposto a combater, Duryôdhana
aproximou-se do seu mestre d’armas
e a ele se dirigiu desta maneira:

Dos filhos de Pandu, este exército imenso
(alinhado pelo filho de Drupada,
o teu aluno mais inteligente),
ó Instrutor, observa bem em pormenor.

Vê os grandes heróis, grandes archeiros,
que são iguais, na luta, a Bhíshma e a Arjuna:
Yuyudhana e Virata e mais Drupada,
exímio condutor do grande carro;

Dhrishtakêtu, aquele cuja luz brilha intensa;
o valoroso rei de Káshi; Kuntibhôja
e Chakitana e Purijit, que conquista
em extensão; e Shaibya, entre os homens, um touro;

Yudhamanyu, o lutador subtil;
o do poder mais alto, Uttamaujas;
de Draupadí, os filhos e o filho de Subhadra,
todos guerreiros poderosos nos seus carros.

Agora, ó eleito entre todos os bráhmana,
ó tu, tu que nasceste duas vezes, dos notáveis
que estão aqui do nosso lado
conhece os principais do meu exército.

Tu, primeiro que todos e, logo de seguida,
Bhíshma, e, depois, Karna, o que nasceu com brincos;
e também Kama, Kripa e mais Ashvattháma
e Vikarna e o grão filho de Sômôdatta;

tantos, tantos heróis, tão numerosos
por minha causa dão a sua vida,
combatendo com toda a espécie d’armas,
n’arte da guerra todos bem treinados.

Vírabhadra namaskára

Convido-vos, então, a uma pequena prática de Yôga. O Yôga Antigo, resgatado por Shrí DeRose na passagem ao terceiro milénio, tem como uma das suas oito principais características, as sequências coreográficas de ásana e mudrá. E sabe-se que assim era na antiguidade, pois, entre outros dados, encontram-se duas antigas sequências que nos dão uma boa ideia de como o Yôga era praticado. E uma dessas coreografias é o Vírabhadra namaskára. Uma saudação a um herói guerreiro. Conto-vos a lenda que lhe está associada e depois vamos experimentá-la no nosso corpo.

Diz esta lenda, da qual há pelo menos três versões, que Shaktí casou com Shiva contra a vontade de seu pai, que era o rei de ariano de uma cidade-estado. Por vezes Daksha, pai de Shaktí, também é apresentado como se fosse uma divindade. Shaktí vai viver com o marido para o monte de Kailasha. Passados muitos anos Shaktí tem conhecimento de que o seu pai marcou uma celebração de culto aos deuses, uma faustosa celebração, mas foi convencido pelos sacerdotes a não prestar culto ao genro – Shiva. Assim não convidou para a festa nem a filha, nem o marido desta. Shaktí, indignada quer aparecer no local na data da celebração. Shiva desaconselha-a de participar em tal festejo. Ainda assim, Shaktí compareceu. Presente estava toda a alta sociedade ariana, outros reis de cidades-estado, nobres, sacerdotes, na lenda também os deuses dos arianos compareceram. Daksha quando a vê, insulta e injuria da pior maneira Shiva. Shaktí sentiu-se tão insultada e humilhada pelo desprezo do pai pelo seu amado esposo, que se lançou às chamas sacrificiais. Morreu queimada.
Shiva sente-se afrontado pela morte da amada Shaktí e decide punir o sogro. Então arrancou um dos seus cabelos da cabeça e a partir dele criou um poderoso herói, de nome Vírabhadra. Ordenou-lhe que comandasse os exércitos de Gana, os demónios de Shiva e que destruísse a cidade de Daksha. Vírabhadra destrói a cerimónia de Daksha, vence e dispersa os deuses presentes, vencendo-os. Afugenta os sacerdotes. E entrega Daksha a Shiva. Enfrentaram-se num combate singular, em que Shiva usou a arte marcial secreta, parte do Yôga, o Shiva Natarája Nyása, ou Tándava. E esmagou-o sobre os pés. Quando observamos uma estátua de Shiva no Tándava, verificamos o pormenor de Daksha, debaixo dos seus pés armado com escudo e espada, a ser esmagado. Outra interpretação diz-nos que Shiva esmaga sob os seus pés o demónio da ignorância.

Mestre João Camacho

Raízes longínquas das artes marciais

TEXTO PARA CÍRCULO DE LEITURA DE JUNHO 2019

Boas tardes,
Sensei Patrão, meu amigo e, neste momento, Tokugawa, solicitou-me que vos fizesse uma apresentação das artes marciais indianas, nestas 24 horas de Kumite. Onde se procurem as raízes longínquas das artes marciais. E assim o farei. Porém, nada poderei acrescentar ao que já sabeis. Pois as praticais.
O Todê, a mão chinesa, ou o Tê, a mão, ou o Okinawa Tê, a mão de Okinawa. Ou até Karate, a mão vazia, nada mais são do que desenvolvimentos das artes que me pediram para apresentar.
As artes da espada? Bom, os samurais, até ao sec. XII usavam uma espada direita, com duas lâminas. Como algumas espadas chinesas. E passaram a usá-la curva, após a invasão, ou a tentativa falhada de invasão do Japão pelos Mongóis. Estes usavam uma túnica de seda por baixo da roupa ou da armadura. E as setas saiam com facilidade em vez de rasgarem ainda mais os tecidos ao serem retiradas. E as lâminas da espada não cortavam os tecidos porque não conseguiam cortar as fibras da seda. Por isso criaram uma lâmina curta e afiada que permitia cortar as fibras da seda e os tecidos humanos que estavam por detrás delas. Mas, também nas artes marciais indianas se usaram estes dois tipos de lâmina e outros. Também por experiências similares.
Os portugueses chegaram à Índia a usarem duas espadas, como Myamoto Musashi. E antes de terem chegado ao Japão. Não usavam escudo, mas duas espadas. Uma mais longa e outra mais curta. E desenvolveram uma técnica que permitia usar a espada de modo diferente. Passando o dedo indicador para a frente da guarda. Mais tarde as espadas passaram a ter umas partes metálicas que permitiam proteger esse dedo. Este desenvolvimento permitia uma estocada na horizontal, com precisão e força suficiente para perfurar. E a posição do dedo permitia-lhes, em seguida puxar a espada com facilidade. Mas não tinham os indianos uma espada que se agarrava com o punho fechado e que se brandia totalmente na horizontal na estocada?
Também as artes da flexibilidade, como o Jujutsu, ou Judô lá as vamos encontrar. Temos aí técnicas de controlo, de chaves às articulações, estrangulamentos, assim como técnicas de projecção.
As artes do tiro com arco? Bom, conto-vos uma história de Arjuna, o maior guerreiro de sempre, na mitologia indiana. E praticante de Yôga. Ficou para a história como um extraordinário guerreiro, virtualmente invencível, fosse em combate individual com as mãos nuas ou com armas e armadura. Ou fosse em campo de batalha integrado num exército. Como Mestre de Yôga, deve ter-se presente o Bhagavad Gítá. Esta escritura que é considerada quase uma bíblia pelo povo hindu e escrita por volta de 400 a. C. é uma conversa entre Krishna, a divindade solar, o deus-menino, e Arjuna. Horas antes do início de uma gigantesca batalha onde morreram centenas de milhares de soldados. Batalha integrada numa guerra que envolveu muitos povos da zona central da Ásia, sobretudo a Índia e a China. Zimmer, um reputado Orientalista diz que as dimensões desta guerra, para a época, uma espécie de guerra mundial. Mas esta conversa, do Bhagavad Gítá, inicia-se com Arjuna a afirmar que teme combater pois reconhece do outro lado gurus, mestres, de grande valor. E como poderia ele, em consciência, matar tais sábios? E no decurso da conversa, Krishna transmite-lhe o ensinamento do Yôga.
Mas queria referir-vos o arco. Conta o Mahá Bhárata que num treino em que Arjuna e os seus irmãos treinavam as artes da guerra sob a orientação de seu Mestre, Drona, este pediu aos restantes discípulos e príncipes que apontassem a flecha, com o arco, para um pássaro que estava no cimo de uma torre o castelo. E foi-lhes perguntando, um a um, o que viam. Reponderam-lhe que viam a torre, as pedras, a argamassa entre elas, as ervas que cresciam nas fendas, o pássaro, as penas do pássaro, as asas, a cauda, as unhas, o mastro onde o pássaro estava poisado, etc… Drona, zangado, a todos foi dando umas pauladas com o bastão que tinha nas mãos. Quando perguntou a Arjuna, a resposta que recebeu foi: “Vejo o olho do pássaro!”. Ou seja, via apenas o local par aonde ia disparar. Via apenas um ponto – o olho do pássaro. E a mente concentrada num só ponto – êkágratá – é o mais elevado nível de concentração.
O que poderei dizer-vos mais? Olharemos para a arte marcial, dita do amor, o Aikido? A ideia de centro (madhyama), é patente na tradição das artes marciais indianas. A ideia de estar em comunhão com o Universo? Também. Tomar consciência do macro e do microcosmos é uma constante do Yôga e das raízes das artes marciais indianas.
Poderei falar-vos de mokuso, ou de zen? Terão certamente noção de que as técnicas de meditação têm no Yôga o nome, sânscrito, de dhyána. O sânscrito é uma língua muito gutural. Mais gutural do que o alemão ou o inglês. Ora, Bôddhidharma, ou Daruma, ou Bôddhisatwa, ou Damô, alguns dos vários nomes com que é conhecido, patriarca do budismo, decidiu ir pregar o budismo para a China, por volta do sec. V da era Cristã. E foi avisado várias vezes que a viagem era longa e perigosa, encontraria desertos e florestas, vales e montanhas, salteadores e animais selvagens. Como vós, nestas 24 horas de Kumite. E aconselharam-no a levar consigo uma escolta armada. E Daruma reflectiu sobre isso. E ponderou que não podia desistir da viagem por medo de ser morto. Que espécie de alto sacerdote ele seria se se revelasse tão apegado à vida e com tanto medo da morte!? Também não poderia ir com uma escolta militar armada até aos dentes que lhe garantisse segurança pois como teria, depois, moral para falar de ahimsa, a não-violência, se se fizesse acompanhar de uma escolta?! Acresce que, dizem as escrituras, na presença de um mestre que esteja em ahimsa a violência cessa. E sentou-se em estado meditativo e surgiu-lhe à mente, através dos canais intuicionais, Shiva, o criador do Yôga, a dançar uma das suas danças, o Tándava. E esta dança é uma antiga arte marcial, gupta vídya, ou seja de conhecimento reservado, contida no Yôga Antigo. E Daruma marchou rumo à China. Quando chegou à corte do Imperador, perguntaram-lhe como teria conseguido fazer tal viagem, sozinho, sem escolta e sobrevivido? E Daruma, respondeu – de mãos vazias. Dir-me-ão alguns de vós – Karate. Mas queria referir-vos as artes da meditação. E começo por este aspecto – mãos vazias. Vazias as mãos, como a mente – paragem das ondas mentais, como o ensina Pátañjali. Daruma foi expulso da corte. E foi radicar-se num mosteiro que veio a ficar célebre – Shaolin. E aí ensinou aos monges desse mosteiro, fracos, doentes e frequentemente agredidos, ensinou-lhes as técnicas de pránáyáma (expansão da bio-energia através de exercícios respiratórios), as de kriyá (técnicas de purificação), ásana (procedimentos orgânicos) , as de combate (Shiva Natarája nyása)e também as de meditação. Ensinou-lhes dhyána. Esta palavra sofreu uma corruptela, pois a língua chinesa é muito mais doce. E passou de dhyána, a dhyán e a ch’an. E foi como ch’an que os monges chineses levaram o budismo e as técnicas de meditação para o Japão a partir do sec. VI. Também aqui, o termo veio a sofrer uma alteração. Para a língua japonesa, ch’an, não soava bem. Então passou a zen.
Ora praticais toda a sorte de artes marciais indianas. O que posso dizer-vos mais?
Ah os nomes.
Como já vos disse, o Yôga é a mais antiga escola filosófica que existe na Índia. Em paralelo com o Sámkhya e com o Tantra. E a arte marcial contida no Yôga tem o nome de Tándava, ou de Samhara-Tándava. Devo dizer-vos que Hara é outro dos nomes de Shiva, o auspicioso, e que o fonema sam, significa “com”, “integrado”. Tándava é a dança da dissolução cósmica. No Yôga Antigo chamamos-lhe Shiva Natarája nyása – identificação com Shiva na sua forma de bailarino real.

Mestre João Camacho

A nossa linhagem é tântrica

Texto para reunião do Círculo de Leitura de Maio 2019

A nossa linhagem é tântrica. E o tantrismo é uma escola gupta vídya, ou seja, conhecimento, ciência secreta. Logo iniciática. O conhecimento passa da boca do Mestre ao ouvido do discípulo. Até dizem os shástra que a língua do mestre é o lingam que vai fecundar, de conhecimento, a yôni, os ouvidos, do discípulo. Mas ser secreto, ensina Shrí DeRose, significa, também, sermos discretos. E se o formos quase tudo nos é permitido. Isto para dizer que conto com essa discrição. E ela é um dever vosso.
Como também sabem, vou conversando com cada um de vós. Na sequência dessas conversas, em respostas a questões que me vão colocando, vou expondo, explicando.
Há locais de de grande poder. Tenho levado os meus discípulos a locais de grande poder. Por vezes só de dia. Pois, de noite, a correlação de forças às vezes altera-se. Por vezes levo-vos a uma prática de Yôga em antigos locais de culto e perto de necrópoles. São locais antigos, com seres igualmente antigos. Não são bons, nem maus. Quando aí se encontram sentem-nos. Vejo-os. Às vezes, quando de noite, já comentei com os que me acompanhavam, como a nossa querida senescal, que eles andam por lá, entre as pedras, como nós. Os seres que ali vivem, ou que por ali pululam, os que ali se manifestam, sobretudo à noite, mas também de dia, quando lá estamos sozinhos, sem ninguém, sem os domingueiros piqueniqueiros e beberolas, é possível pressenti-los. Reagem perante nós, à noite, como nós reagimos perante as plantas quando caminhamos numa floresta. Estão ali. Sabemo-lo. Mas não interagimos com elas – pelo menos o comum dos mortais. Como já vos referi, a Hispânia é referida pelos antigos como Ophiussa, a terra das serpentes, a terra dos dragani, os iniciados no poder da serpente, os senhores de dragões.
Neste local, há ali seres quase tão antigos como a formação daquelas rochas. Ignoram-nos, tal como as pedras o fazem.
Em tais locais mágicos é quando está muito frio o momento ideal para nos aproximarmos dos lugares pétreos e antigos, quando o nosso corpo se torna frio como a serpente, como o dragão e olhamos os lugares sagrados do mundo com o cérebro da serpente sagrada. Por outro lado, tal como o guerreiro de muita batalhas tem sempre cicatrizes de ferimentos antigos, também o que se dedica a estas artes, traz a marca do sofrimento estigmatizada na carne. Pois são práticas de ferreiros e alquimistas. E o que faz o ferreiro, mestre demiurgo, a não ser bater com o martelo, no metal que tem sobre a bigorna e assim revelar a sua estrutura íntima, transmutando-o em algo de novo, mais perfeito, mais elevado? Concluindo, na sua forja e na sua bigorna, um trabalho, que a mãe terra levaria milénios a fazer. Por isso é um demiurgo. Por isso revela a serpente que se oculta por detrás da carne. Por isso trabalha a carne, o corpo carnal, pois este dá acesso ao resto. E não é o Mestre de Yôga um demiurgo, um senhor de fogo, que trabalha com o martelo e a bigorna (ásana, pránáyáma e mantra), com fogo (kundaliní), para elevar o discípulo? E não o faz no corpo do discípulo?
Julius Evola, no seu livro Le Yôga Tantrique, refere que a ciência a técnica são democráticas. Têm uma estrutura, intrínseca de organização e de transmissão do conhecimento democrática. Qualquer um, medianamente inteligente, consegue ir à Universidade e fazer seus os conhecimentos actuais. Uma pistola produz o mesmo efeito nas mãos de um idiota, de um soldado, de um polícia ou de um chefe de estado. E é possível transportar qualquer um deles de avião, no mesmo número de horas. Mas assim já não é com o conhecimento iniciático. No âmbito da ciência estamos no plano ontológico do ser humano. E aí, os princípios são os da igual dignidade. Porém o homem é qualquer coisa que pode ser ultrapassada como ensinou Nietzche. A transcendência da condição humana, objectivo das disciplinas da auto-superação, como o SwáSthya Yôga, conduz o sádhaka a um estado existencial e ontológico (ontos – ser, logos – fogo; ciência; estudo). Ou seja, a um estado de ser superior ao do humano comum, consequência da superioridade de uma evolução que leva a que o yôgin seja um mutante, por comparação com o resto da humanidade. Ora, o calor, o despertamento da kundaliní, os siddhis que com isso se manifestam, são pessoais, intransmissíveis e não democratizáveis. E isto, esta profunda diferença, é a divisão fundamental entre a tradição e a modernidade. Pois a diferença real entre os seres é a base de um conhecimento e dum poder inalienáveis, não comunicáveis, logo exclusivos e esotéricos pela sua própria natureza e não por artifício, pois trata-se de um culminar de um desenvolvimento excepcional, que não se pode partilhar com toda a sociedade.
Nesta sequência, René Guenón, o grande orientalista francês da primeira metade do séc. XX, estabeleceu, para classificar uma fraternidade, um círculo interno, como detentora de autênticos processos iniciáticos, três características que se devem observar:

4- Necessidade de uma genuína qualificação interna dos seus membros
5- Necessidade de uma transmissão do saber esotérico e de auto-aperfeiçoamento interior de cada um dos membros
6- Necessidade de actualização activa subsequente, pelo esforço individual

Tais exigências devem-se ao facto de a iniciação não ser um mero ritual de passagem que celebra a aceitação numa fraternidade – por isso o “nós” adquire outra significação. Há “nós”, sim, mas com genuína qualificação interna dos seus membros e depois com a individual “actualização activa subsequente”. A iniciação é muito mais do que ser aceite num grupo. É, e pretende ser, um processo transformativo, de mutação, de auto-superação, que começa com um influxo energético, polarizado, pelo Mestre, proveniente dos domínios transcendentes e exercendo os seus efeitos ao nível dos corpos subtis. Porém, o que se envolve no processo iniciatório, deve ultrapassar-se também em provas físicas (aqui outra razão para a coreografia) e ser corajoso. O iniciado para vencer as provações e receber o conhecimento do Mestre, deve desenvolver, entre outras, as seguintes qualidades: saber, querer, ousar e calar-se.
A iniciação foi sempre reservada a alguns e nunca aberta a toda a gente. O impulso iniciatório transmuta o seu humano, se este não o detiver. Uma tradição iniciática usa tudo o que não é racional como elemento de transformação: o corpo; os desejos; as pulsões; a imaginação; a clarividência; a emoção; a intuição. Pois o processo só pode iniciar-se e ter continuidade de fora para dentro, do Mestre para o discípulo.

Mestre João Camacho