MANTRA VIDYA I

Epístolas aos meus discípulos:

 

Os mantra são sons que foram percebidos, na origem, por sábios em profundo estado de meditação.

O mantra vidya, o conhecimento do que concerne à utilização dos mantra, é uma das ciências mais profundas do Yôga.

 

Descontrair o rosto faz parte do trabalho de neutralização emocional. Não como proposta de apatia e de indiferença. Mas sim como caminho para uma vigilância descontraída, confiante, sorridente.

 

O universo é composto por vibração. Inclusive o nosso corpo. No Yôga sabemos que tudo tem consciência, apenas em diferentes graus. O nosso corpo físico, denso, também é energia, logo consciência, portanto é possível, através da consciência, actuar sobre ele e com ele. Não faz sentido algum a separação mente/corpo. A existência é una. É após a separação de Shiva e Shaktí que surgem as divisões na existência. Shaktí no seu devir, na sua práxis transformadora, vai construindo todas as formas e nomes do Universo. E a divisão é uma construção (vikalpa). Ora em nós, kundaliní shaktí é fonte da consciência (chit shaktí) e o suporte que anima o corpo e a mente com energia (prána). Ao despertar vai reestruturar os nossos corpos. Vai fazê-lo, deslocando-se por todo o nosso corpo, detendo-se onde houver bloqueios. Um dos nomes desta energia supracósmica é Saraswáti, ou seja, “aquela que flui”.

 

A kundaliní é, a nível cósmico, shabda brahman, o som sem som. A nível microcósmico é shabda, o som audível, aquele que é designado tanto por Platão, como pelas escolas esotéricas como a “harmonia das esferas”.

 

Fazendo um parênteses, dexio-vos a nota de que o caminho da kundaliní passa por aperfeiçoar 8 qualidades:

 

shôdhana – purificação
dhriti – coragem
sthirata – constância
dhairya – resistência
lághava – subtileza
pratyaksha – evidência directa
nirvikalpa samádhi – identificação sem pensamento

 

O universo, como o conhecemos, resulta da diferenciação vibratória, do momento inicial em que Shiva vibra damaru[i]. O som produzido é pránava, grafado como ômkara –  (ÔM). O ÔM é tanto apelidado de pránava como de udgíthao que ascende. É o som incausado, é o som que é o próprio corpo vibracional do cosmos. É o som que representa a vibração infinitaspanda. Este som é perceptível a vós, praticantes de Yôga, a adeptos de outras escolas iniciáticas, mas sem som, imperceptível para o comum das pessoas.

 

Durante o CFIY expus-vos a doutrina do Rig Vêdá acerca de vak, o Verbo, a palavra, ela também expressão de ÔM. Referi-vos pasyantí-vak (fala visível); madhyama vak (fala mediana); vaikharí vak (fala manifesta) e a que está para lá destes estados – pará vak, a fala suprema. Correlacionei cada um destes níveis de som, com as formas ou os níveis de poder da serpente de fogo. Por isso não me deterei nesta doutrina. Estudem os apontamentos.

 

Tudo o que, no Yôga, dizemos sobre energia, a sua utilização, a sua subordinação à consciência, é mais próximo da física quântica, do que aquilo que a ciência foi exprimindo nos últimos dois milénios.

 

Dizemos nós, de acordo com o nosso conhecido preceito tântrico, que o que está aqui está em toda a parte; o que não está aqui não está em parte nenhuma.

 

Parménides[ii], um filósofo da antiguidade grega, ensinava algo de parecido:

 

– O que é, é.

– O que não é, não é.

 

Tais premissas implicam que aquilo que é, o seja, e não pode deixar de ser. Assim como o que não é, não pode vir a ser.

 

No mesmo sentido, lê-se no Bhagavad Gita:

 

II – 1, 2

O que é não pode deixar de ser

E o que não é, não pode vir a ser.

 

Entendem estas filosofias que experimentar o não ser, é um contra-senso. Apenas há o ser progressivamente revelado, manifestado e reconhecido na consciência, ela própria na sua natureza primeira, una e imutável.

 

O som, Shabda, manifesta-se de muitas formas, umas mais subtis, outras mais grosseiras, mas todas elas veículos da actuação de Parashaktí. Tudo o que é, move-se, e cada movimento é acompanhado de som, de vibração. Shaktí é a potência subjacente ao movimento, Shiva é o suporte. Shaktí corresponde ao plano sonoro de shabdabrahman, o som que não é afectado nem corrompido pelas inumeráveis formas (rupa) e nomes (nama) evolutivos que a Shaktí vai produzindo, incluindo a própria linguagem. Para que, o que vos digo, não sejam meros aspectos teóricos, é necessário desenvolver percepção, sensorial e extra-sensorial, através da purificação do corpo. O ouvido deve afinar-se; o coração deve purificar-se e estar aberto ao afecto, ao amor – sim, ao amor individual, louco, da paixão, de que vos falava, a propósito do filme O Tigre e o Dragão, mas também a um amor mais amplo e mais divulgado pelos santos homens e mulheres de todos os tempos; o tacto, a sensibilidade física ao toque, ao contacto, também deve desenvolver-se; o cheiro deve apurar-
-se; enfim, todo o corpo físico deve fluidificar para ganhar acuidade sensorial. E o desenvolvimento dessa acuidade é o primeiro passo para o surgimento dos siddhi que nos permitem outras percepções mais subtis.

 

O começar a perceber sons subtis, é um primeiro passo para a percepção do resto. Um dia destes, a um de vós, referi que, no que à evolução respeita, temos um chakra onde se escuta o som (anahata), não temos um onde se “vê a luz”. E naquele em que pareceria que assim é, não vê. É ele próprio luz, fonte de luz – sahásrára.

 

O tantrismo que tudo isto nos vai ensinando é uma fantástica e fascinante filosofia, muito para lá dos aspectos sexuais (sem os minimizar ou diminuir) e do maithuna (que é fantástico e proporciona, mais que não fosse, um sublime e supremo prazer). É uma filosofia profunda que nada tem de irracional. Apresenta-nos um sistema equilibrado: Shiva como consciência estática, Shaktí como consciência dinâmica. Também nos apresenta o mundo como algo de real, pois se o mundo é expressão das manifestações de Shaktí, se o mundo são construções (vikalpa) de Shaktí, então são aspectos da realidade última. A evolução, que produz a ilusão da transformação não real, é apenas consequência do movimento (spanda), do devir da Shaktí.

 

É o movimento que produz a tripartição que leva à ilusão de que o mundo não é real:

1 – som (shabda);

2 – objecto (artha);

3 – cognição (pratyaya).

 

E isto porque a evolução vai do subtil (paramshiva) ao grosseiro (ashuddha). Esta evolução, passa por cinco categorias de criação pura e trinta e uma de criação impura, que não desenvolverei.

 

O som articulado, mesmo aquele que usamos para produzir palavras, para falarmos uns com os outros, é, como também sabem da doutrina do mantravaikhari. De vaikhari manifestam-se as letras (varna); as sílabas (pada) e as frases (vákya). Nada e bíndu são complementos da última potência da criação. Nada, bíndu e bíja costumam manifestar-se juntos. Destes saem os tribindu ou kámakála, a raiz de todos os mantra. Os tribíndu são o branco (sita), o vermelho (shôna) e o misto (mishra). Os tribindu têm várias correspondências, como a lua, o fogo e o sol; ou a vontade, (icchá), conhecimento (jñana) e acção (kriyá), etc.

 

Ensinam os shástra que shabda tem a natureza das letras (varna) e dos sons (dhvani). Ora vak é falar. Mas tem a dupla significação de ser o falar, mas também o som dos objectos inanimados. Vak tem um significado parecido com o de shabda. Mas vak é mais m efeito do que uma causa. Shabda, tendo a natureza das letras e dos sons, é-lhes prévio.

 

 

1                      Houve um filósofo, Plotino, que ensinava que no Universo as coisas movem-se e atraem-se por amor. Os planetas, mantém-se em sistemas, com órbitas definidas, mas interligadas, por amor. As pessoas, os homens, as mulheres, aproximam-se e vivem juntos, em família, em grupo, em sociedade, também por amor. Ensinava, Plotino, tal coisa tão bonita. Acontece que quando aprofundamos o estudo do som, o estudo das palavras de poder, o estudo do mantra e do Tantra, descobrimos que na origem dos sons está o desejo cósmico (káma) ou a vontade (iccha). É o desejo ou a vontade, do Um primordial se transmutar em múltiplos de si próprio. E é esse o desejo que anima também, nos planos menos subtis, entre outras coisa, o amor e o desejo sexual. É esse desejo, manifesto através da vibração inicial, que dá origem ao som, ao mantra. Também por isso, muitas tradições tinham e têm, o vishuddha chakra, como o criador por excelência. Desejo e procriação terrestre, humana, são manifestações, limitadas, é certo, do impulso inicial. Também por isso, a sentimento de quase total realização da mulher que se sente grávida e que dá à luz.

 

Ora, o som do movimenteo inicial, no princípio dos tempos, na aurora da diferenciação, é, como acima já vimos o ÔM. Nos seres humanos a cognição, os objectos e o nome dos objectos, aparecem como três realidades distintas. Mas são tão só três manifestações eficazes do movimento, do impulso inicial.

 

Ora a diferenciação entre as manifestações grosseiras do som e as subtis, a percepção das manifestações mais altas (atindriya) só são percebidas pelos Yôgis desenvolvidos. Os Yôgis vêem, apreendem. O kama-manas do Yôgi apreende os objectos subtis, de modo global, numa experiência de identificação, onde não há nem o sujeito, nem o objecto – nyása[iii]. Ora, a apreensão de uma imagem ou objecto (artha) evocado por uma palavra (shabda) é, verdadeiramente, cognição (pratyaya). Como se vê, aquilo que, ao ser humano comum, surge como três manifestações distintas, é para o Yôgi uma só coisa.

 

SwáSthya

 

(C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya

Discípulo de Shrí DeRose

«Sou irmão de dragões e companheiro de corujas.»

[i] O tambor de Shiva. Simboliza a força criadora de Shiva.

[ii] Parménides de Eléia (530 a.C. – 460 a.C.).

[iii] Brahmasvarúpa é outra forma de designar nyása.

“Lição de Sapiência”

 

1- A estrutura organizativa.

 

Antes de mais quero agradecer-vos a todos a V. disponibilidade para aqui estarem presentes e resolvidos a ouvir esta “lição”. Pois que, de “sapiência”, veremos, após, se tem alguma. Mas cumprirei o meu dever.

 

Deixo uma palavra especial para o Dr. Vítor Rosa que, mais uma vez, deixa os seus múltiplos afazeres para nos honrar com a sua presença. Obrigado. Honra que não é menor, ao verificar que também Sensei Rosa Brites, Sensei Alexandre Gueifão e Sensei Jorge Costa, estão presentes, a quem agradeço e expresso a minha alegria por vos poder ter aqui comigo.

 

Permitam-me, todavia, que me demore um pouco mais com o Sensei José Patrão, que se encontra entre nós, o que muito me honra. É um homem de acção, sem deixar de ser, nesta, um contemplativo. À boa maneira oriental, onde intuição e acção devem ser a mesma coisa. José Patrão, é o mentor e o principal impulsionador do Centro de Artes Orientais, onde nós nos acolhemos, como Secção de Yôga. É um prestigiado budôka. É também meu aluno de Yôga, a quem tive o prazer de ensinar Yôga, assim como a outros cintos negros da Assocação Shotokai de Portugal, durante um ano. Um projecto no qual os Karatekas não queriam aprender Yôga, como mo comunicaram. E para o qual eu me lancei com energia, persistência e dedicação. No fim, creio que consegui ensinar-lhes Yôga. Pelo menos um pouco. Pois tenho constatado, não sem alguma satisfação, que passaram a incluir o súrya namaskár nas suas práticas, em alguns dos estágios que organizam. O que significa que, pelo menos esse pedacinho, consegui ensinar-lhes.

 

José Patrão é também o principal suporte da Surya online, revista que vai publicando artigos de um grupo de estudiosos destas artes do oriente e que já tem vários anos de existência. A sua vida constitui também um exemplo de dedicação a uma causa e a uma cultura. Podemos ver nele um paladino. E na sua pessoa saúdo o Centro de Artes Orientais e a Associação Shotokai de Portugal.

 

Saúdo também todos os restantes que, por serem da casa, me perdoarão a referência breve e rápida. E em especial, os meus discípulos, que  uma vez mais me acompanham nestas andanças. E que continuam a acreditar que somos capazes de concretizar a nossa missão. Continuando persistentemente a prosseguir os objectivos da Nossa Cultura.

 

Saúdo, em geral, a comunidade de alunos, professores, que integram as várias escolas que se agregam em volta do Centro de Artes Orientais.

 

Saúdo também os alunos que este ano vão frequentar o Curso de Formação de Instrutores de Yôga. Bem-hajam. Desejo-lhes um óptimo curso e muito sucesso.

 

Agradeço, em geral, a todos os que aceitaram o convite para participar neste importante acto.

 

Deixo por fim, uma palavra de reconhecimento e de admiração pela obra, ímpar e grandiosa, do meu Mestre, Shrí DeRose, que nos esforçamos por divulgar e promover.

 

Queridos amigos, alunos e discípulos. Caros Colegas

Minhas Senhoras e meus senhores

 

Esta sessão solene ocorre num momento de incertezas, de dúvidas, de expectativas. Num momento em que sofremos de uma crise de crescimento. Num momento em que, pelas características do nosso trabalho, pela qualidade que lhe imprimimos, pelas actividades em que nos envolvemos, temos recursos humanos que não conseguem já dar a adequada resposta, por exíguos.

 

Por outro lado, crise, porque alguns dos nossos instrutores não conseguem congregar a vontade dos seus alunos para participarem nos eventos e nas actividades, constituindo-se assim, também, um obstáculo ao nosso crescimento e capacidade de resposta e de intervenção.

 

Crise, porque queremos dedicar-nos a projectos e parcerias para as quais necessitamos de maior dedicação e dispêndio de tempo. Estudamos, neste momento, parcerias diversas instituições.

 

Também temos contado, recentemente, com a Câmara Municipal do Barreiro, que nos tem proporcionado a possibilidade de ministrarmos aulas públicas, gratuitas, no Parque da Cidade, proporcionando-nos, assim, um meio privilegiado e bem visível, de divulgarmos a Nossa Cultura. A Câmara Municipal de Palmela, também nos tem proporcionado apoio logístico, pelo qual estamos gratos e honrados.

 

Por isso, se o futuro se avizinha luminoso, está envolto num manto de preocupações.  .

O momento exige esta capacidade para fazer e aceitar um diagnóstico, rigoroso, das motivações dos que estão comigo e daqueles que me acompanharam no passado. Sou exigente. Muito. E o grau de exigência que imprimo pode, nalguns casos, resultar numa provação. Mas nestes caminhos, temos de equacionar a possibilidade de sermos postos à prova. Mesmo quando, em cada momento, não discernimos exactamente o que está em causa. E quando é chegado o momento de darem um salto evolutivo, seja como pessoas, seja como praticantes, seja no tipo de dedicação, seja pelas práticas e ensinamentos, mais intensos, mais exigentes, têm-me lá a indicar-lhes o caminho a seguir. Claro que percorrê-lo, como viandantes do subtil, isso já depende de cada um. O mestre só indica o caminho. Muitas vezes volta a percorrê-lo, com cada um dos discípulos, acompanhando-os para que não desfaleçam. Mas a eles cabe caminharem. Cabe aqui acrescentar o velho aforismo oriental de ser preferível ensinar a pescar a quem tem fome, em vez de lhe dar um peixe. Outros, de quem guardo boas memórias, mas cuja falta sinto entre nós, seguiram outras andanças.

 

Olho para todos vós e tendo noção daquilo que vos falta percorrer, também sei como evoluíram, como se transformaram. O mesmo olhar que me permite saber como, às vezes, não conseguem dar o passo que vos catapultaria à libertação mais rapidamente. Hesitam fazê-lo. Ficam enredados nas vossas perspectivas, convicções, teoremas sociais e pessoais. Enredados numa teia, quando, se se querem enredar, deveria ser na “trama do tecido” da Nossa Cultura. Ou seja, nas propostas do tantrismo.

 

Mas ainda assim olho-vos com admiração e carinho. A todos vós. Por também ver e saber o quanto já andaram, o tamanho da trajectória que já percorreram.

 

O momento não pode permitir silêncios e cumplicidades que poderiam ser, aparentemente, confortáveis, face aos tempos que correm, dizendo que tudo está bem e que estou totalmente contente com o caminho já percorrido. Seja em relação a cada um de vós, seja em relação a todos em conjunto. Tal significaria um capitular inaceitável perante os princípios e os valores, pelos quais nos devemos pautar, nomeadamente, o preceito ético – satya (verdade).

 

E é necessário fazer um diagnóstico, tanto no plano externo, como no plano interno.

 

No plano interno, há muito tempo que assumi a necessidade de repensar o nosso projecto cultural, a nossa maneira de pensar, agir e estar.

 

Os nossos departamentos não andam todos à mesma velocidade, nem com a mesma produção de trabalho. Andamos a duas ou três velocidades. Os directores executivos dos departamentos ainda não interiorizaram, totalmente, o papel preponderante que devem ter na organização e na direcção dos respectivos departamentos. Mas, não conseguindo manter sempre o mesmo ritmo, conseguimos, pelo menos, e assinalo-o de modo positivo, em todo o caso, mantermo-nos fiéis ao caminho traçado e trilhar uma boa parte do percurso.

 

É fundamental neste momento que saibamos quem somos, o que somos, o que queremos ser e para onde queremos ir. É tempo de acabar com as indefinições de carácter geral. Por isso estamos a preparar, para por à discussão colectiva, um Plano Estratégico para a próxima década.

 

Por isso é tão premente identificar com rigor as ameaças, as oportunidades, os pontos fortes e os pontos fracos.

 

Em relação a estes, que merecem particular atenção da nossa parte, temos:

 

  1. a) as dificuldades em atrair homens como alunos;
  2. b) o, ainda, limitado nível de interacção com o meio ambiente, não obstante as actividades que organizamos e para as quais nos convidam.
  3. c) o baixo nível de actividades de investigação e desenvolvimento por parte dos instrutores;
  4. d) o ainda limitado número de instrutores e ainda muito menor de Instrutores no grau de docente, com a perda que a Prof.ª Ana e o Prof. Juan representaram.
  5. e) a forte dependência da minha pessoa para a planificação e desenvolvimento de actividades nos departamentos.

 

Como pontos fortes há que apontar, indubitavelmente, o nosso capital humano. Não obstante os aspectos que há a corrigir, temos instrutores de alto nível, com grande conhecimento acumulado, com grande capacidade de entrega e com grande potencial de realização. É cada vez mais consensual, a importância estratégica que as pessoas desempenham e desempenharão nos próximos anos, no sucesso das organizações, num contexto global de acelerada mudança, de constante mudança do grau e do tipo de exigências que vão surgindo, seja lá qual for o ramo de actividade a que as organizações se dediquem. É hoje ponto assente que os recursos humanos, mais do que quaisquer outros, podem fazer toda a diferença numa estrutura organizativa. E da vossa competência, conhecimento e capacidade estou eu certo.

 

Também a nossa capacidade de congregar apoios e esforços de instituições, é um ponto forte.

 

O reconhecimento da qualidade das nossas realizações, do acervo de conhecimento que acumulamos é outro ponto forte.

 

Posso afirmar que temos, neste momento, no âmbito nacional um prestígio reconhecido. O que representa mais responsabilidade.

 

Revi, no essencial, o nosso projecto e a forma como vos orientava. Reabri os departamentos já com novos moldes de funcionamento. Passando apenas a ser integrados pelos que forem convidados pelas suas pessoais e especiais características. Consolidei, assim, a existência dos departamentos. Dei prioridade ao projecto Yôgayana em detrimento dos restantes projectos.

 

Em relação à V. orientação, como sabem, produzi profusamente doutrina, resultante da minha aprendizagem, da minha vivência nestas andanças e da minha experiência. Posteriormente, dediquei-me a um trabalho mais específico, mais pessoal, de maior proximidade e de orientação específica, com alguns de vós. Fi-lo sem precipitação, escolhendo, em cada momento, o caminho a trilhar, a técnica a utilizar, o trabalho interno de desenvolvimento a fazer. Trabalho pessoalíssimo, ao qual me entreguei, como faço nos projectos em que me envolvo, com intensidade e dedicação.

 

Os frutos desse trabalho são bons e estão à vista.

 

Com isto, creio ter consolidado a posição de alguns de vós. Que por cá estão e com que conto, a todos, ter ao meu lado, para o futuro.

 

Com as medidas tomadas creio ter consolidado a nossa posição, e ter criado as necessárias condições para crescermos.

 

Não cedemos a pressas conjunturais, que caracterizam, infelizmente, a tomada de algumas decisões estruturais. Com a revisão feita no nosso trabalho, as nossas linhas estruturais mantiveram-se, embora com ajustes conjunturais. Pois o caminho definido é justo e certo.

 

Reforçámos a interacção com o meio envolvente, com o nosso envolvimento num número cada vez maior de actividades em parceria, sendo que não estamos já passivos à espera que nos convidem, mas temos tomado a iniciativa de propor, apresentar, projectos, iniciativas.

 

Temos em funcionamento os departamentos de:

 

Ásana [Nadánta];

Mantra [Rájas agni]

Crianças [BalakiGanêsha]

Teatro [Purána]

Yôgacine

Protocolo

Formação e ensino

Informática [Sandezah Tantra]

Documentação e arquivo.

 

Deveremos em breve, ponderar na possibilidade da criação de um departamento de meditação.

 

Todos estes departamentos deverão passar a trabalhar, ainda mais, no sentido de criar conhecimento em cada uma destas áreas e de conseguirem congregar à sua volta os nossos melhores alunos. Pois da sua capacidade de o fazer também dependerá, em grande parte, o seu futuro, mas também o nosso futuro como organização.

 

Todo o trabalho que temos feito tem sido sem qualquer apoio financeiro seja de quem for.

 

Todas as mudanças pelas quais temos passado como organização e cada um de vós como pessoa, na vossa evolução e transformação interna, não têm representado decisões fáceis, nem um ano fácil. E a previsão para o próximo ano é de céu luminoso, uma ou outra vez algo nublado, sendo que espero algumas trovoadas. Veremos. Em todo o caso o futuro, nosso e de cada um de vós no Yôga, depende de nós. E por isso continuo a trabalhar, com os que estão, e trabalharei com os que virão, com os que querem dar um futuro à Nossa Cultura. Pois sou Tântrico, isto significa interveniente.

 

Caros amigos, alunos e discípulos, Caros Colegas,

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

 

Não vale a pena iludir e acreditar que todo este esforço e trabalho se fará com facilidade. Mas cá estaremos com a nossa força, com a nossa capacidade, com a nossa dedicação e entrega.

 

A metodologia com que vos tenho orientado é corolário do que aprendi com os meus mestres, a quem devo a posição que hoje ocupo. Posição que devo mais à generosidade dos meus mestres do que ao meu mérito. Facto que não me canso de evidenciar. Junto ao que os meus mestres me legaram, o meu cunho pessoal.

 

Quero acreditar que esta lição será o ponto de partida para uma ainda maior transformação organizacional entre nós.

 

Quero acreditar que a reorganização do CFIY, que passaremos a analisar, possa ser vista como uma oportunidade de crescimento pelos instrutores.

 

 

 

2- O Curso: da validade; dos objectivos; da reestruturação. Breve análise do programa

 

Caros amigos, alunos e discípulos, Caros Colegas,

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

 

Os meus discípulos sabem, pois tenho-os alertado para isso, que muitas vezes o artístico está a um passo do intuicional. E, mesmo sem o artista muitas vezes o saber, transmite-nos informação preciosa, verdadeiras pérolas. A música de fundo, quando entraram, era Sem Perdão do grupo 7.ª Legião. Escolhia-a intencionalmente. Nesta composição pode ouvir-se o seguinte poema:

 

Se a fé não mudar,

Se a noite acabar,

Vai nascer aqui o dia

 

Se a Lua deixar,

Se o sol me guiar

Só quero de ti um dia

 

Se a fé não mudar

E a noite acabar

Hei-de ver nascer o dia

 

Se a lua deixar

E o Sol me guiar

Hei-de ver nascer o dia.

 

É um poema de que muito gosto. Nos momentos em que me sinto em provação, às voltas no labirinto, perante os revezes, as contrariedades, o imobilismo, os ataques, com que tantas vezes nos deparamos, nestas nossas andanças, lembro-me muitas vezes destas palavras.

 

Desde logo, sobre elas, devo referir que interpreto , no seu sentido original, de firmeza na execução de um compromisso, ou de convicção profunda. Ora, se a nossa convicção não mudar e a lua deixar, se o sol nos guiar, haveremos de encontrar a luz, o dia, o caminho no labirinto.

 

Recentemente, o meu Mestre, Shrí DeRose, ensinava que [1]:

 

A Luz não deve temer as Trevas, pois quando as duas se confrontam é sempre a claridade que faz a escuridão recuar e nunca o contrário.

 

E para referir o que será tido como mais uma coincidência, aos olhos não treinados a ver para lá do óbvio, num dos artigos publicados na revista Surya online, Sensei Patrão declara o seu propósito com estas actividades a que se dedica. Passo a citá-lo:

 

Eu ando a juntar os que dão luz branca à roda a mesa em forma de prisma.

Quero ver o arco-íris!

 

Possamos todos nós, juntos, irradiar a luz que nos conduza ao arco-íris. Possa o Curso de Formação de Instrutores de Yôga, catapultar-nos, a todos, à condição daqueles qe irradiam luz branca.

 

Este curso tem a duração de 12 anos. E, nesta fase inicial, é composto por um conjunto de Seminários que decorrerão por um período superior a um ano.

 

Neste curso, para o qual vos desejo, aos que vão iniciá-lo, desde já, felicidades, não iremos encontrar astrofísica, física quântica ou anatomo-fisiologia, como em outros cursos de Yôga. Mas encontraremos, seguramente, Yôga. Posso prometer-vos que não será um curso fácil. Representará horas, semanas e meses e anos de estudo e prática. Será um curso onde deveis demonstrar um elevado nível de proficiência. Devereis ser capazes de ensinar, de argumentar, de investigar. Sereis, no futuro, cultores desta antiga filosofia, exemplos vivos duma linhagem tão antiga como a noite dos tempos, mas pujante, actuante e congregadora.

 

Os documentos de apoio, as normas, os ensinamentos, serão os do Yôga antigo, codificado e apelidado, na passagem ao terceiro milénio, de SwáSthya Yôga, por Shrí DeRose. Este Yôga tem os elementos integrantes de todas as outras escolas, daí que qualquer praticante de Yôga, ainda que queira trabalhar e seguir um Yôga menos autêntico, poderá frequentar o curso.

 

Iniciaram um percurso de 5 anos, dos 13 de duração total da formação. Devereis validar a Vossa formação todos os anos, nas datas marcadas para exame. Recebereis um certificado da formação que fizestes. Este certificado deverá ser renovado todos os anos, sendo-lhe aposto um selo de revalidação e por mim assinado. Que o vosso exemplo frutifique. Como diz Shri DeRose [2]

 

«Você é uma pessoa privilegiada por estar preparado para ensinar SwáSthya Yôga. Tornar-se instrutor de SwáSthya Yôga é ser depositário da confiança dos Mestres; é ser representante de Shiva; é ser pesquisador sério e missionário de saúde, beleza, felicidade e autoconhecimento.”

 

 

Doravante, lembrai-vos que representam Shiva, representam o SwáSthya Yôga, representam Shrí DeRose, representam-me a mim e, em última análise, representam-se a vós próprios.

(C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya

[1] DeRose, Quando é Preciso Ser Forte, pg. 123.

[2] Programa do Curso Básico de Yôga, p. 68.

KUNDALINÍ, A ENERGIA CRIADORA

por Alexandre Ramos

 

“O Yôga é a arte de unir a alma individual (jívátmam) com a Alma Suprema (Paramátmam), de unir a kundaliní-shaktí que está adormecida no múládhára chakra com Shiva no sahásrara chakra” (Sivananda, 1953, p. 274)

 

Kundaliní é um termo sânscrito que pode ser traduzido por serpentina ou enroscada, aquela que tem a forma de uma serpente. O termo é feminino, deve ser sempre acentuado e pronunciado com o í final longo (DeRose, 1992, 1999, 2007). Segundo documentos indianos antigos, bem como autores contemporâneos, a kundaliní é uma forma de bioenergia latente no corpo humano, concentrada na base da coluna vertebral, na região dos órgãos genitais, transmissores de vida e força (White, 1977).

Apesar de ainda não ter sido identificada pela Ciência (White, 1977), a kundaliní não é um mito ou uma ilusão. Não é uma mera hipótese ou uma sugestão hipnótica. A kundaliní é uma substância biológica que existe no organismo. Ela não é psicológica, filosófica, ou transcendental. O seu despertar gera impulsos eléctricos através de todo o corpo, e estes impulsos podem ser detectados por aparelhos científicos modernos (Satyananda, 1984). No entanto, ela também não pertence ao corpo físico denso (annamáyákôsha), apesar de estar conectada com ele, mas sim ao corpo físico energético (pránamáyákôsha) (Descamps, 2005; Satyananda, 1984).[1]

A kundaliní está “adormecida” como uma serpente de fogo, enroscada 3 vezes e meia[2] em torno do svayambhu linga(m) (falo), no múládhára chakra,[3] o centro de força que todos possuímos junto à base da coluna vertebral e órgãos genitais (DeRose, 1992, 2007), ou seja, na base da nádí[4] sushumná[5] (Santos, 2000), obstruindo desta maneira o brahmadwára (a «porta» de Brahman, o Ser, a consciência suprema) (Eliade, 1954). Segundo Sivananda (1953), as 3 voltas e meia representam a Prakrití (a Natureza em geral) da filosofia Sámkhya e os seus 3 gunas (qualidades: tamas – inércia, rajas – movimento, e sattwa – equilíbrio), juntamente com os vikritis (o mental, a matéria e as suas múltiplas formas). De acordo com Satyananda (1984), as 3 voltas representam os 3 matras (uma unidade de tempo que corresponde a pouco menos de um segundo) do mantra ÔM, relacionados com o passado, presente e futuro; os 3 gunas: tamas, rajas e sattwa; os 3 estados de consciência: vigília, sonho e sono sem sonhos; os 3 tipos de experiência: experiência subjectiva, experiência sensual e ausência de experiência. A meia volta representa o estado de transcendência. Assim, as 3 voltas e meia dizem respeito à experiência total do universo e a experiência da transcendência.

Enquanto a kundaliní está adormecida, é como se fosse uma chama congelada, um fogo parado. Uma vez desperta,[6] é tão poderosa que o Hinduísmo a considera uma deusa, a Mãe Divina, a Shaktí[7] Universal (DeRose, 1992, 2007). “De facto tudo depende dela conforme o seu grau de actividade – a tendência do Homem à verticalidade, a saúde do corpo, os poderes paranormais, a iluminação interior que o arrebata da sua condição de mamífero humano e o catapulta em uma só vida à meta da evolução sem esperar pelo fatalismo de outras eventuais existências” (DeRose, 1999, p. 77, 2007, p. 58).

Podemos definir a kundaliní como uma energia física, de natureza nervosa e manifestação sexual (DeRose, 1992, 1999, 2007; Santos, 2000). Quando é despertada é conduzida pelo sistema nervoso central até ao cérebro. Mediante esse processo alquímico de transmutação da energia genésica em poder criador, exacerbam-se a inteligência, a criatividade, percepções e estados expandidos de consciência (DeRose, 2007). De acordo com a opinião dos antigos mestres, o aparelho reprodutor tem duas funções: a reprodução e a evolução. A kundaliní é a guardiã da evolução humana. Com o despertar da kundaliní dá-se a reversão do aparelho reprodutor e o seu funcionamento mais como mecanismo de evolução do que de reprodução, enviando para o cérebro um fino fluxo de “energia nervosa” muito potente (Krishna, 1985). O acordar dos chakras é um importante evento na evolução humana. Não deve ser confundido com misticismo ou ocultismo, porque com o acordar dos chakras há mudanças na consciência e na mente. Estas mudanças têm significativa relevância e relação com a vida do dia-a-dia. Com o despertar da kundaliní não apenas visões transcendentes têm lugar. Ocorre também o desenvolvimento da inteligência criativa e o acordar de faculdades supramentais. A kundaliní é a energia criativa; é a energia da auto-expressão. Não só a mente muda, bem como as nossas prioridades e afectos. Porém, esta transformação pouco tem a ver com a vida moral, religiosa ou ética de cada um. Tem mais a ver com a qualidade das nossas experiências e percepções. Tal como na reprodução, uma nova vida é criada. Ocorre como que uma metamorfose. Há até a possibilidade de todo o corpo físico ser reestruturado (Satyananda, 1984).

Por meio de técnicas esta «energia da serpente» pode ser despertada e guiada ao longo da coluna vertebral através de vários chakras até ao cérebro (White, 1977). O Tantra[8] fornece um curso graduado de maneira a despertar a kundaliní no Homem, fazendo-o atravessar várias etapas no caminho da grande consciência cósmica, que os Upanishads (comentários dos Vêdas[9]) descrevem como sendo o grande objectivo da vida do Homem. O culto tântrico, assim como os seus exercícios, têm influenciado continuamente o Hinduísmo e o Budismo. Esta influência é sentida desde o culto de gráma-dêvatá, no mais interior vilarejo da Índia, até ao mais elevado dêví-upásana dos grandes adwaitins (monistas) como Shankarácharya (788-820 d.C.). Penetrou até num ritual puramente vêdico: a meditação do gáyatrí mantra no sandhyá vandana. Os Tantras são, na realidade, escrituras comportamentais que passaram a existir como resultado do desejo hindu de não se satisfazerem, através dos tempos, com meras teorias em religião, mas trazer cada teoria ao teste da experiência concreta. O Vêda, sem dúvida, proclama a identidade do jívátmam, a alma individual, e do Paramátmam,[10] o Espírito Supremo. Porém, como redescobrir esta identidade perdida? Como purificar (sôdhana) e levantar (uddhára) a alma imersa em pecado e tristeza ao nível original da chaitánya (consciência) pura? É aqui que o Ágama ou Tantra vem em nosso auxílio e descreve o caminho da realização, passo a passo, de acordo com o adhikára (qualificação) de cada um (Sarma, 1967).

A kundaliní é um termo feminino por ser o Poder Ígneo, de natureza feminina, isto é, de polaridade negativa (DeRose, 1992, 1999). Na doutrina do Tantra Shakta, macho (Shiva) e fêmea (Shaktí) são dois princípios do universo. Estes dois princípios existem no interior de cada indivíduo (Rama, 1995). Shiva é a consciência suprema, imutável e eterna e Shaktí o seu poder cinético. O Universo é Poder. O Universo é uma manifestação da glória desta dêví (deusa) (Sivananda, 1979). Ela é identificada com shabda-brahman (o som primordial ou som do Absoluto: o mátriká mantra ÔM) (Eliade, 1954; Muktananda, 1994b; Van Lysebeth, 1990). Shaktí é, acima de tudo, uma força consciente e inteligente (Feuerstein, 2001). À escala cósmica esta Shaktí é designada pelo nome de mahakundalí, o Grande Poder enrolado. À escala microcósmica (humana) é denominada kundaliní, a enrolada, a energia que, no termo do processo involutivo que produziu o psiquismo e o corpo, continua a ser o suporte da manifestação individual (Michael, 1978). Porém, pensa-se que a kundaliní contém não apenas energia latente mas também memórias latentes, quer pessoais, quer transpessoais.[11] O modo moderno de entender este poder latente é em termos do inconsciente[12] (Rama, 1990).

A kundaliní é conhecida tradicionalmente como Durga, a criadora, Chandi, a feroz, sedenta de sangue, e Kali, a destruidora (Krishna, 1985). Por exemplo, quando ela acabou de despertar e somos incapazes de dirigi-la, é chamada Kali. Kali, a primeira manifestação da kundaliní é um poder terrível; é o poder inconsciente do Homem. Kali subjuga completamente o indivíduo, o que é representado pela sua dança sobre o Senhor Shiva. Isto acontece às vezes devido a instabilidade mental; neste caso, as pessoas ao tomarem contacto com o seu inconsciente vêem inauspiciosos e ferozes elementos – fantasmas, monstros, etc. (Satyananda, 1984). Krishna (n.d.), após ter despertado a kundaliní, escreveu: “Nada pode expressar a minha condição mais graficamente do que a representação de Shiva e Shaktí (na forma de Kali) pintada por mestres antigos, na qual vê-se Shiva prostrado na posição supina, indefeso, enquanto que a outra, de maneira absolutamente despreocupada, dança alegremente sobre o corpo do primeiro. O observador autoconsciente em mim, o assim chamado dono da estrutura carnal, agora completamente subjugado e posto fora de acção, constata que ele próprio está completamente à mercê, ou seja, falando literalmente, está aos pés de um poder que inspira pavor, totalmente indiferente àquilo que o dono pudesse pensar ou sentir, prosseguindo impassivamente com o corpo até à meta escolhida, sem mesmo conceder-lhe o direito de saber o que fez para merecer a injúria. Tenho todas as razões para crer que a representação foi planeada para pintar uma condição exactamente similar à minha por parte de um iniciado, o qual passou por uma provação igual” (p. 173). Quando Kali desperta desloca-se para cima para encontrar a manifestação ulterior, tornando-se Durga, a supraconsciente, que outorga glória e beatitude. Durga é a removedora das circunstâncias nefastas da vida e a dadora do poder e da paz que se libertam do múládhára chakra. Em suma, quando já somos capazes de dirigir a kundaliní e usá-
-la para propósitos benéficos, e nos tornamos poderosos à sua custa, é chamada Durga (Satyananda, 1984).

Na Índia, a kundaliní-shaktí também é conhecida por: bhujangí, kutilangí, shaktí, íshwarí, kundalí, arundhatí (Eliade, 1954, 1989), dêvátma shaktí (Swêtáshvatara Upanishad, citada por Rama, 1990), chiti (Muktananda, 1994a, 1994b), chiti kundaliní (Muktananda, 1994a), cit-kundaliní (Feuerstein, 1998), mahakundaliní (Santos, 2000), kúlakundaliní (Feuerstein, 1998; Sivananda, 1991), bhujanginí, phaní, nágí, chakrí, saraswatí, lalalná, rasaná, samkiní, rájí, sarpiní, mani, ashtá-vakrá, átma-shaktí, avadhútí, kuntí, entre outros nomes (Feuerstein, 1997). O despertar da kundaliní é designado por udghata (Sivananda, 1986; Vivekananda, 2000). O Tantra Álôka de Abhinava Gupta (citado por Feuerstein, 1998) distingue a púrna-kundaliní, a prána-kundaliní e a urdhwa-kundaliní. A primeira é o poder divino enquanto Plenitude (púrna); a segunda é o poder divino na sua manifestação de energia da vida (prána); a terceira é o poder divino enquanto serpente acordada movendo-se para cima (urdhwa).

Porém, o despertar da kundaliní não é exclusivo da prática tântrica; é a base de todas as modalidades de Yôga (Mookerjee, 1991). A palavra Yôga significa «união», e esta união pode ser entendida como a união de kundaliní-shaktí com Shiva (consciência pura) (Rama, 1990). Sivananda (1953) escreveu: “O Yôga é a arte de unir a alma individual (jívátmam) com a Alma Suprema (Paramátmam), de unir a kundaliní-shaktí que está adormecida no múládhára chakra com Shiva no sahásrara chakra” (p. 274). Ideias relacionadas com a kundaliní e os chakras podem também ser encontradas no Budismo Tibetano, no Tauismo, no Sufismo (C. Grof & S. Grof, 1994) e no Kalarippayattu (arte marcial indiana de origem dravídica) (Maliszewski, 1996) e no Budismo Zen coreano (C. Grof & S. Grof, 1994). Contudo, não devemos confundir o satori (iluminação repentina) do Zen japonês com o despertar da kundaliní, pois existem dezenas de livros sobre a experiência suprema dos grandes mestres japoneses ao longo dos séculos: Dogen, Daito, Mûso, Takuan, Hakuin, Suzuki, etc., mais nenhum nos fala de uma subida desta energia luminosa ao longo da coluna vertebral (Descamps, 2005).

Há também indícios de que a activação da kundaliní não é um fenómeno limitado às culturas orientais. Aparentemente, o mais antigo dos símbolos da kundaliní proveio da Índia. O signo hindu da kundaliní representa-a como um bastão central (a nádí sushumná, que corresponde à coluna vertebral), com duas linhas sinuosas laterais (as nádís idá e pingalá) que sobem serpenteando até à altura da cabeça. Inseridos na haste central estão os 7 principais dos chakras primários, representados por sete círculos. Este símbolo foi aborvido pelos gregos (caduceu de Hermes, ou de Mercúrio, para os romanos), judeus (Árvore Sephirotal) e cristãos (Santo Graal) (ver DeRose, 2007).

Em África, as danças do povo bosquímano !kung, que habita o deserto do Kalahari, a noroeste do Botswana, têm como finalidade “esquentar” uma força cósmica de cura chamada n/um (literalmente: remédio) que se encontra na base da espinha. Esta força é passada de uma pessoa a outra por meio de um contacto físico directo, de modo a atingir !kia, o estado de transcendência. Este povo realiza regularmente rituais que duram toda a noite, nos quais as mulheres sentam-se no chão, batucando, e os homens andam em círculo, com movimentos rítmicos monótonos. Uns após outros, os participantes entram num profundo estado modificado de consciência, associado à libertação de emoções fortes, tais como: a raiva, a ansiedade e o medo. Em geral, são incapazes de manter uma posição vertical e são acometidos por violentos tremores. Em prosseguimento a essas experiências dramáticas, eles entram em típico estado de êxtase (C. Grof & S. Grof, 1994; Katz, 1973; Sannella, 1992). Conceitos semelhantes à kundaliní e ao sistema dos chakras também existiram entre as tribos indígenas norte-americanas. Os hopis, por exemplo, imaginam centros de energia que se parecem muito com os chakras (C. Grof & S. Grof, 1994). Também é difícil acreditar que o fenómeno do despertar da kundaliní fosse desconhecido na Europa pré-moderna, considerando-se o fascínio que a Alquimia e a Magia desfrutavam desde longa data. Podemos nós acreditar com seriedade que os antigos druidas ignoravam essa força? Ou que os místicos da cristandade antiga e medieval nunca experimentaram este fenómeno (Sannella, 1992)? De acordo com Eliade (1954, 1989), a kundaliní corresponde ao poder sagrado experimentado como um calor extremo nas iniciações militares. Para este autor, vários termos do vocabulário “heróico” indo-europeu (e.g., furor, ferg, wut, ménos) exprimem justamente esse “calor mágico” e essa cólera que caracterizam, nos outros planos da sacralidade, a incorporação do “poder”; tal como um yôgin (praticante de Yôga) ou um xamã (adepto do Xamanismo), o jovem herói “aquece” durante um combate iniciático. Além disso, segundo Weil (1977), o próprio símbolo da Medicina convencional, a serpente de Hipócrates, é nada mais nada menos que, a kundaliní. Assim, segundo Satyananda (1984), há muitas pessoas que podem despertar a kundaliní. Não somente santos e saddhus (praticantes de Yôga que renunciaram à vida profana), mas também poetas, pintores, guerreiros, escritores, etc.

Quem tornou disponíveis as informações acerca da kundaliní junto a grandes audiências ocidentais de forma geral e popular, foi o indiano Gopi Krishna (1903-1984), fundador da Kundaliní Research Foundation, Ltd. (S. Grof & C. Grof, 1995). Na sua opinião (Krishna, n.d.):

Esse mecanismo, conhecido como kundaliní, é a verdadeira causa de todos os fenómenos espirituais e psíquicos autênticos, é a base biológica da evolução e do desenvolvimento da personalidade, a origem secreta de todas as doutrinas ocultas e esotéricas, a chave mestra para o ainda não resolvido mistério da criação, a fonte inesgotável da filosofia, da arte e ciência, e o manancial de todas as crenças religiosas, presentes, passadas e futuras. (p. 199)

 

Sivananda (1953, 1956, 1986) realça que nenhum samádhi é possível sem despertar a kundaliní, que se encontra latente na base da coluna (múládhára chakra). Sivananda (1953) escreveu: “Até um vêdantin (um estudante do Jñána YôgaYôga do conhecimento) para conseguir o jñána nishtha (esclarecimento), só mediante o despertar da kundaliní que está adormecida no múládhára chakra. Não é possível o estado supraconsciente ou samádhi sem despertar esta energia primordial, quer se trate de Rája Yôga (Yôga mental), Bhakti Yôga (Yôga devocional), Hatha Yôga (Yôga do esforço físico violento) ou Jñána Yôga” (p. 128). Por isso, Muktananda (1994b) salienta que não há conhecimento mais importante do que o conhecimento da kundaliní.

 

 

 

 

Referências Bibliográficas

 

 

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[1] A maioria das escolas filosóficas de inspiração orientalista, adopta a divisão didáctica em 7 níveis de actuação do ser humano no universo, em ordem de subtileza crescente. Desses 7 veículos de manifestação da consciência, os 4 primeiros (corpo físico denso, físico energético, emocional e mental concreto), considerados concretos, chamam-se quaternário inferior ou personalidade (simbolizados pelo quadrado); os 3 mais subtis (corpo mental abstracto, intuicional e mónada), considerados abstractos, denominam-se tríade superior ou individualidade (simbolizados pelo triângulo). Para os reencarnacionistas, a tríade é a parte que reencarna e o quadrado consome-se totalmente, entre uma encarnação e outra (DeRose, 1992).

[2] Alguns tratados referem 8 voltas em vez de 3 e meia (Eliade, 1954).

[3] Termo sânscrito que pode ser traduzido por roda ou círculo. Chakras são centros de captação, armazenamento e distribuição do prána, a energia vital. Estes centros de força estão situados em todo o corpo humano; contudo, os 7 principais localizam-se no plano médio-sagital (ao longo da coluna vertebral, intercílio e topo do crânio). De cada chakra principal partem algumas correntes (nádís) para distribuir o prána pelos chakras secundários (DeRose, 1999, 2007).

[4] Termo sânscrito que pode ser traduzido por rio, torrente ou corrente. São canais do corpo físico energético, análogos aos meridianos da Acupunctura, que vascularizam todo o corpo (DeRose, 1999, 2007).

[5] As principais nádís são idá, píngalá e sushumná; todavia, esta última é a mais importante, pois é por ela que a kundaliní deverá ascender. Corresponde espacialmente à espinal medula (DeRose, 1999, 2007). É uma nádí bipolar. É muito atrofiada no homem comum, permitindo apenas a passagem do mínimo de energia, necessário à manutenção das suas limitadas aptidões. Através da prática do Yôga a sushumná desenvolve-se, ocasionando a ascensão da kundaliní e o desenvolvimento total das faculdades pertinentes ao homem (Straube, n.d.).

[6] Segundo Muktananda (1994b), apesar de falarmos no despertar da kundaliní, a verdade é que ela já está desperta em todas as pessoas. A partir do centro do corpo, no múládhára chakra localizado na base da coluna vertebral, ela controla e mantém todo o sistema fisiológico, através da rede de 720 milhões de nádís. Kundaliní é o suporte das nossas vidas; é Ela que faz tudo trabalhar nos nossos corpos. Também para Irving (1998), embora expressões como «activação da kundaliní» ou «despertar da kundaliní» sejam usadas para descrever o fenómeno, a kundaliní, na realidade, está sempre activa no corpo. Comummente, porém, a kundaliní opera numa frequência tão baixa, que não damos conta dela. Termos como «despertada» referem-se tão só a uma activação altamente aumentada, em que a kundaliní atrai, de maneira demonstrável, a atenção do indivíduo.

[7] Termo sânscrito que pode ser traduzido por energia ou força. Por extensão, esposa ou companheira no sádhana (prática, ritual) tântrico. É também um nome ou qualidade da Mãe Divina e, consequentemente, designa também a kundaliní (DeRose, 1999). Segundo o Tantra Shakta, a energia (shaktí) no ser humano polariza-se em duas formas, a saber, a estática ou potencial (kundaliní) e a dinâmica (as forças activas no corpo, como prána). Por detrás de toda a actividade há um fundo estático. Este centro estático é o «poder serpentino» do múládhára chakra, localizado próximo da base da coluna vertebral e órgãos genitais (Woodroffe, 1978).

[8] Termo sânscrito que pode ser traduzido por tecido ou rede. Tantras são livros da Índia antiga, provavelmente de origem pré-ariana (DeRose, 1999). O termo “Tantrismo” é ocidental (Riviére, 1962).

[9] Os quatro Vêdas (Rig Vêda, Yajur Vêda, Sama Vêda e Atharva Vêda) são as mais antigas escrituras do Hinduísmo. Vêda provém da raiz vid, conhecer; pode ser traduzido como revelação (DeRose, 1999). Compreendem várias categorias de escritos cujo período de formação está compreendido entre 1400 e 400 a.C. (Eliade & Couliano, 1995).

[10] De acordo com os textos clássicos, o jívátmam, a consciência humana ordinária, isto é, a consciência de um ser encarnado e limitado, habita o chakra do coração (anáhata), enquanto o Paramátmam, a Consciência incondicionada, infinita e perfeita, habita o chakra do topo da cabeça (sahásrara) (Michael, 1979).

[11]Transpessoal” (literalmente: “além do pessoal” ou “além da personalidade”) significa transcender o modo usual de perceber e interpretar o mundo a partir de uma posição de ego individual ou ego corporal (C. Grof & S. Grof, 1994).

[12] Na Psicanálise, o inconsciente designa o sistema que, segundo a primeira teoria proposta por Sigmund Freud (1.ª tópica), constitui o aparelho psíquico, juntamente com o sistema pré-consciente/consciente. É formado pelas pulsões e pelos materiais recalcados. Freud ao lidar com os seus pacientes, deu-se conta que havia conteúdos psíquicos (desejos, lembranças, etc.) de que o indivíduo não só não tinha consciência, como eram contrários, chocavam essa consciência e por isso eram mantidos fora dela pelo processo de recalcamento. Mais, eram esses conteúdos e a energia que lhes estava ligada (libido), que davam origem às perturbações psicológicas (neuróticas em particular), aos sonhos e aos actos falhados do quotidiano. O seu funcionamento rege-se pelo princípio do prazer. É o conceito-chave de toda a Psicanálise, ao ponto de se poder dizer que esta é, no fundo, o estudo e a abordagem dos conteúdos inconscientes (Pestana & Páscoa, 1998). Mas, para Jung (1995), ex-discípulo de Freud, o inconsciente pessoal nada mais é do que uma camada que assenta numa base de natureza inteiramente diversa: o inconsciente impessoal, suprapessoal ou colectivo. A razão desta denominação está na circunstância de que, ao contrário do inconsciente pessoal e das suas imagens meramente pessoais, os conteúdos do inconsciente mais profundo (os arquétipos) são de natureza nitidamente mitológica e são totalmente universais. Isto significa que essas imagens coincidem, quanto à sua forma e ao conteúdo, com as representações primitivas universais que se encontram na raiz dos mitos. No entanto, isso não quer dizer, em absoluto, que essas imaginações sejam hereditárias; hereditária é apenas a capacidade de ter tais imagens, o que é bem diferente.

Chakra e glândulas

Epístolas aos meus discípulos:

 

Meus queridos,

 

Deixo-vos um quadro, rudimentar, com paralelismo entre os chakra e as glândulas correspondentes. É uma informação que podem obter em qualquer livro. Mas deixo-
-a já destilada. Tenho com isso o objectivo de vos chamar a atenção para estas correspondências. Muito do que ocorrer no corpo físico, em consequência da prática de Yôga, provém da reacção das glândulas. A juventude, muitas vezes o rejuvenescimento, a longevidade, a boa saúde, que costumam ser apanágio dos praticantes de Yôga (ah, e no caso dos swástha yôgis, parece ser imortalidade J), é corolário do funcionamento óptimo, equilibrado, das glândulas. Mas também a manifestação de siddhi, nos quais o corpo físico também interfere, resulta, em grande parte, da acção das glândulas e, obviamente, das hormonas que produzem. Certamente já ouviram falar do fenómeno poltergeist. Há até um filme, já com uns bons anos, que se debruça sobre esse fenómeno. Habitualmente esses fenómenos ocorrem em casas e famílias onde há adolescentes entre os 10-12 anos e os 19-10 anos. Como saberão também, a glândula pineal, glândula cujo funcionamento é algo estranho, actua intensamente durante aquele intervalo de tempo. Por outro lado, tal glândula, corresponde, aproximadamente, no corpo físico, à localização do sáhásrara chakra. E, singularmente, tal glândula, na nossa idade adulta, parece ter a função de reagir à luz. Ou seja, perante a luz, acorda-nos. Se abrirmos a janela do quarto de alguém que dorme, será uma das formas mais adequadas de acordar essa pessoa. Mas sobre esta glândula, deixo ao Prof. A., para quem estes apontamentos também são remetidos, o apelo a que nos encaminhe algumas informações que tenha sobre a mesma e sobre o seu funcionamento.

Estes apontamentos, que vos vou deixando, resultam da minha necessidade de vos comunicar muito sobre o SwáSthya Yôga que habitualmente não está à luz do dia, por muitas e variadas razões. Desde logo porque não se dão pérolas a porcos. Na viagem vai-se indicando este ou aquele aspecto. Vamo-nos transformando com o processo evolutivo. E os arcanos vão sendo comunicados e nós passamos, gradualmente, a ter a capacidade de os entender e de os incorporar de modo a servirem o nosso caminho para a luz. Vou conversando tudo isto convosco, porque sois tão excepcionais que estimulais em mim a necessidade de vos comunicar todas estas pequenas e insignificantes coisa, que vou conseguindo partilhar. Faço-o também, para que a profundidade iniciática do SwáSthya Yôga não se perca entre nós. Pois, infelizmente, em muitas escolas de Yôga, até a referência a chakra, kundaliní, é olhada com desconfiança (a desconfiança resultante de, aquele instrutor de Yôga, em concreto, não saber do que falamos, de nunca ter tido a mais pequena experiência energética, a mais pequena vivência, seja por si e em si, seja pelo contacto, o toque, a presença do seu mestre – e quando assim é, difícil se torna compreender do que se fala). E assim, poupo-vos o trabalho de acederem ao inconsciente colectivo para redescobrirem, mais uma vez, o que já foi descoberto, cujo dever dos que conhecem (o pouquito que “conheço”) é ensinar, transmitir aos discípulos.

Antes de, finalmente, passar ao dito quadro, ainda vos quero dizer porque razão Shrí DeRose é o meu Mestre. É-o antes de mais porque me aceitou como discípulo. Mas também porque foi e é por ele e através dele, ou seja, da motivação que me proporcionou, por si, através da sua palavra, do seu ensinamento, que consegui fazer as minhas práticas de Yôga e concentrar-me o suficiente, para aceder, quando o momento me é favorável, ao inconsciente colectivo e ajudar a resgatar conhecimentos ancestrais que são património da humanidade. Como afirma, no seu último livro, Mestre Sérgio Santos, no SwáSthya Yôga, por vezes, quando escrevemos, o que estamos a fazer é quase psicografia. Não à moda dos médiuns, que escrevem sem saberem o quê, sem terem consciência do que escrevem. Mas, de modo consciente, pomos para o papel esses conhecimentos de antanho, que se resgatam do akasha. É pela força da sua inspiração e do seu exemplo, que tenho Mestre DeRose, como meu Mestre.

Cá segue o dito quadro:

 

Chakra Significado Correspondência física
Localização Glândula

endócrina

Hormona
Da flor Da raiz
Sáhásrara De mil pétalas Brahmarandra

Crânio: fontanela, ou bregma

Cérebro: sulco central ou de Rolando

Glândula Pineal Pineal ou epífise Melatonina
Ajña Comando Bhrumadhya. Intercílio. Glândula pituitária + hipotálamo Pituitária ou hipófise (+ hipotálamo) (Hipotálamo) – Hipófise posterior.

(Neuroipófice):

– Vasopressina – ADH ou hormona anti-diurética

– Oxitocina

Hipófise anterior (adenoipófise):

– Somatotrofina – GH, ou hormona do crescimento – HCH

– Prolactina

– Tirotrofina – TSH

– Adrenocorticotrofina – ACTH ou corticotrofina

– Folicolina FSH

– Luteína

Vishuddha Purificação Kantha múlá sthana, garganta. 4.ª vértebra cervical Tiróide/paratiróides Tiróide:

– Tiroxina – T3

– Triodotironina – T4

– Calcitonina

Paratiróides:

– Paratormona

Anáhata ou

(Shabda Brahman)

Onde se escuta o som Sobre o coração, com um desvio para o lado esquerdo. 6.ª dorsal Timo Hormona tímica
Manipura Reluzente como uma jóia. A cidade das mil pedras preciosas Nabhi sthana – sobre o umbigo 4.ª lombar Pâncreas. Ilhéus de Langerhans

Supra-renais

Pâncreas – Ilhés de Langerhans:

– Insulina

– Glucagon

Supra-renais – córtex:

– Mineralocorticóides – aldosterona

– Glucocorticóides – cortisol (cortisona)

– Androgénios – androstenediona

Medula:

– Epinefrina (adrenalina)

– Norepinefrina (noradrenalina)

– Dopamina

Swádhisthána Fundamento de si mesmo Yôni/Linga 4.ª sagrada Glândulas sexuais ou gónadas (ovários/testículos) Ovários:

– Progesterona

– Estradiol

– Estrona

– Testículos:

– Testosterona

– Androstenediona

– Estradiol

– Estrona (estrogénios)

Múládhára Suporte da raiz Guna sthana – períneo, junto do ânus. Kanda – 3.ª coccígea Corpo de Luschka

 

SwáSthya

(C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya.

Dsicípulo de Shrí DeRose

«Sou irmão de dragões e companheiro de coruja.»

Celebro os ciclos

              Deixo-vos um texto, inspirado, que escrevi à nossa senescal.

              Hoje passei numa floresta que cheirava a floresta. Com um cheiro húmido, a uma infinidade de plantas, árvores de várias espécies e algo de abafado, um certo cheiro a decomposição de matéria verde, orgânica. Há muitos anos que não sentia tal cheiro. Foi inebriante, foi tão bom, tão sereno. Abri a janela do carro, fechei os olhos e deixei-me envolver na experiência. Por vezes, estes pequenos momentos, estes instantes, chegam a compensar todas as chatices de um ano inteiro.

              Quando assim é sinto-me parte de toda a Natureza. Sinto-me sólido, denso e ancião como as pedras, sinto-me arguto, ágil, feroz, sereno, sem esperança, mas sem desânimo, como os animais, eterno na mudança, igual no renascimento; como as plantas, sinto-me um parente afastado dos Elementais.

              Sinto-me em comunhão com esta grande família, como se já lhe tivesse pertencido, como se tivesse que buscar em mim a harmonia que anseio.

              Recentemente falei-te que o equinócio de Outono havia chegado. Ainda não há muito tempo assinalávamos a chegada das estações, procurava despertar-vos para o fecho e o início de ciclos, através da mudança das estações. Procurava, convosco, celebrar a mudança das estações. Assinalávamo-las com cânticos (mantra), dança (ásana), festas (as delícias que compravam ou preparavam com as vossas mãos e o vosso amor). (…) Ainda assim, eu celebro cada giro da Roda com as minhas práticas, por vezes, na floresta, ou no cimo da montanha.

              Eu celebro outros momentos, alguns adequados a descobrir o passado, outros nos quais se deve olhar, contemplar, o futuro. E trabalho esses momentos com toda a liberdade, onde presto homenagem aos que me precederam e aos que amo, assim como aos que me hão-de suceder. Honro a luz do sol, queimando um tronco, ou melhor parte dele, de carvalho (dru para os celtas) na lareira, no Inverno, num fogo que adquire, por esta razão, contornos de sagrado, assinalando o Solstício de Inverno. Honro o sol cuja luz é diminuta. Honro a nova criança-Sol que acabou de nascer (chamam-lhe de natal, chamam-lhe de Menino Jesus), é um festival de paz e uma celebração da minguante luz solar. Honro a Grande Mãe, na sua forma de azevinho, na sua forma de hera, e outras ervas tidas como sagradas, com que procuro decorar a minha casa, por altura do que se chama de Natal. Por volta desse tempo, vou de noite para a minha varanda, e sento-me nesta, no azulejo do chão, e deixo-me por ali ficar, a comungar com as cortantes temperaturas de -4 ou -5 graus que às vezes se registam, de noite, onde moro. Deixo-me ficar por lá a receber no corpo a luz da Lua.

              Em Janeiro ou Fevereiro, procuro da terras altas e geladas onde procuro harmonizar-me com outro tipo de frio, com a neve e as suas especiais características. Em Fevereiro, procura intensificar a minha purificação, aproveito para mais uma fase de bhutta shuddhi, eliminando bloqueios, de modo a receber, condignamente, nos meus corpos, a Primavera e o novo renascimento. É na Primavera que vos tenho proposto novos objectivos, que vos convido para actividades artísticas, pois celebro-a, assim como à terra que está verdejante. Maio é um verdadeiro festival de luz, cor, cheiro, flores, fertilidade, prazer.

              No Solstício de verão, momento principal de reunião e de união de forças e de energias, procuro saudar os velhos amigos. Procuro honrar com ritmo, o movimento do sol, agora forte e pujante. Em Agosto celebro o ápice do Verão.

              Estamos no equinócio de Outono, que é o momento final de um ciclo. É tempo de devolver à terra o que esta nos facultou.

              Mas também honro as minhas jornadas, da minha vida, dos ciclos de crescimento e de recuo, de frutificação, de colheita, de paragens e de recomeços. A minha vida como a de todos, mesmo que disso não tenham consciência, é uma sucessão de ciclos. Que se vão desenvolvendo desde o nascimento até à morte desta, de novo, até que a morte sobrevenha.

              Mas estes ciclos, de mudança e renovação, não ocorrem só na minha vida, mas também na estirpe de onde provenho, na herança da Nossa Cultura, com os quais a minha vida se conecta, dos meus antepassados até hoje. Dos meus mestres, até vós, dos meus mestres até ti. Toda a minha herança, e os ciclos pelos quais passaram fazem parte de mim. É a antiga sabedoria da Renovação, Destruição, Conservação, contida e expressa nas lendas e ensinamentos de Shiva.

(…)

              Honro a natureza, nas árvores, na floresta, nas ervas, no jardim, nos pássaros, na montanha.

              Sei que, tanto os obstáculos como a evolução, têm muitas facetas. Por isso deixo que o sol me energize; deixo que a água do oceano me purifique; deixo que o vento gelado, pouco a pouco, faça a vida esvair-se de mim, pouco a pouco vá levando o meu sopro; deixo que os bosques e as florestas me renovem, me façam sentir como se fosse de novo uma criança; deixo que Pashupati me proteja na montanha. Deixo que as árvores me falem e que a sua linguagem flua por mim. Deixo que fluxos de energia passem pelas minhas mãos na montanha. Deixo que as grutas, às vezes, tão só, meros buracos numa parede rochosa escarpada, me protejam, deixo que estas experiências me perpassem nas minhas jornadas internas, enquanto busco, sozinho, o caminho para o centro. Dessas jornadas, por vezes, regresso, de outras dimensões, com conhecimento. A introspecção, a intuição, a percepção do subtil, é algo natural e comum aos seres humanos.

              Faço o que posso para transmitir um pouco do que aprendi, daquilo que me foi ensinado, preocupo-me em ensinar qual o caminho através do qual poderão encontrar maior equilíbrio, que terão de buscar na própria vida. Procuro, com o conhecimento obtido, ser um catalisador, que faça desvendar em vós o que cada um tem de melhor.

 Cantanhede, Setembro de 2008

© João Camacho

Bandha

                        Bandha significa fecho, controlo, contracção. São contracções ou compressões de plexos e glândulas. Actua sobre glândulas endócrinas e plexos nervosos e no nosso sistema têm por finalidade despertar e controlar as energias subtis que circulam no nosso corpo. Profundamente fisiológicos, criam um estado de consciência entre o ásana e o Yôganidrá.

A prática de pránáyáma é indissociável da prática de bandha e mudrá. Têm a função de controlar e guiar o prána absorvido, produzido, ou posto em circulação pelo pránáyáma.

                        Os bandha têm a função de fusíveis, ou de interruptores de segurança, que impedem curto-circuitos energéticos.

 

Jalándhara Bandha

O fecho da rede

O queixo pressiona o cimo do esterno e estes ossos ficam juntos. Fecha as 16 partes vitais (ádhára), destrói a morte. As 16 partes vitais são: polegares, tornozelos, joelhos, fémures, prepúcio, órgãos de reprodução, umbigo, coração, pescoço, garganta, palato, nariz, intercílio, testa, cabeça, fontanela (brahmarandhra).
Uddiyana Bandha

Voar; Para Cima

O Grande Pássaro é forçado a voar para cima através do sushumnâ; emancipando-se com facilidade, conquistando a morte.
Múla bandha

contracção da raiz da base

Destrói a decadência; controla o prána

 

 

Jalándhara Bandha

O Fecho da Rede

 

                        Consiste na compressão do queixo sobre o peito, na zona da depressão jugular, a cavidade da união das clavículas. É citado no Yôga Chudamani Upanishada, Shiva Samhita, Hatha Yôga Pradipika e Yôga Mimansa e no Ghêranda-Samhita.

Protege o cérebro da desoxigenação. Desde que bem feito fecha as artérias carótidas e as veias jugulares, permitindo que o sangue arterial fique no cérebro, que, não obstante ser o maior consumidor de oxigénio do nosso corpo, em repouso não consome quase nenhum. Como a grande circulação também não se faz, o sangue que fica no cérebro é suficiente para protegê-lo. As zonas baixas, maxime as pernas, também consomem muito pouco oxigénio, tal como já vimos acima, quando tratamos o ásana.

Evita o congestionamento do rosto. As grandes pressões internas, provocadas pela absorção de 5,5 l ar são mantidas abaixo da epistole evitando-se assim prováveis lesões no canal auditivo, trompa de eustáquio, cóclea. Para se conseguir máxima compressão este bandha deve ser acompanhado de jíhva bandha, que trataremos abaixo.

A finalidade do pránáyáma é a ausência da respiração, num estado de auto-suficiência, que só se atinge com a diminuição das funções vitais. Ora acontece que durante as retenções o batimento cardíaco aumenta, o que não deveria acontecer. Os batimentos deveriam diminuir e estabelecer-se um ritmo poderoso, mas lento. Porém o sistema simpático aumenta o ritmo cardíaco, o impulso respiratório e o metabolismo basal. Parece então que o que conseguiríamos com o kúmbhaka seria o contrário do que se pretenderia. Se assim fosse não passaríamos de aprendizes de feiticeiro.

                        Este bandha alonga as vértebras cervicais e a espinal medula. O que conduz à compressão do bolbo céfalo raquidiano onde se inicia o nervo vago, pneumogástrico, o principal nervo parassimpático, parte integrante do sistema nervoso autónomo. O gânglio plexiforme também é comprimido, e deste parte o ramo cardíaco-cervical do nervo vago. Assim desencadeia-se uma acção reflexa de diminuição das funções vitais e do batimento cardíaco.

Ora o estímulo do bolbo raquidiano, centro de comando respiratório, localizado por cima da medula oblonga na base do tronco cerebral, reage à condição psicofisiológica global que ocorre no sádhaka. Assim reage ás variações do ph do sangue, às variações do CO2, às variações de O2, às diferenças de pressão sanguínea. Adapta a respiração às condições internas e externas existentes, determinando uma diminuição das funções vitais, aumenta as secreções gástricas. Consegue-se um estado pré-comatoso de modo consciente. Desta forma inicia-se o reflexo de mergulho, em que as pulsações baixam de 70 por minuto para 12 por minuto. O sangue é retirado de outros órgãos para ser concentrado no coração e no cérebro, suprindo assim as necessidades destes órgãos. O oxigénio contido nos músculos é libertado e o metabolismo altera-se. O organismo começa a decompor o açúcar existente no sangue, produzindo ATP e ácido láctico. A temperatura corporal sobe por falta de ventilação. Os pulmões entre outras cumprem uma função de regulador térmico do corpo, ventilando-o. Durante uma retenção essa função não é cumprida. A respiração celular é estimulada, com consequente aumento e libertação de energia. O corpo transpira devido à degradação de ATP, que produz imenso calor.

A respiração celular é um estimulante geral do nosso organismo. Rejuvenesce e aumenta o período de juventude saudável, diminuindo o período de velhice senil.

Para além do fenómeno já descrito ainda há a considerar a cavidade jugular onde se localiza o sinus carotidiano, local onde a carótida se bifurca, seguindo depois uma pelo lado esquerdo, outra pelo lado direito do pescoço.

Do sinus carotidiano saem nervos, barorecpetores, isto é, terminações nervosas sensíveis à pressão, que, comprimidos, modificam a actividade do cérebro e o estado de consciência. Determinados estados de consciência alterada, só passíveis de ser alcançados com grande prática de meditação, podem ser «facilmente» alcançados com este bandha. Toda a compressão nesta zona produz, por via reflexa uma diminuição da tensão arterial, dos batimentos cardíacos e da respiração, pois estas fibras nervosas estão ligadas ao sistema parassimpático, que tem sobre estas funções a acção de refrear.

Em termos energéticos o jalándhara bandha transforma prána em apána.

 

Uddiyana Bandha

Voar; Para Cima

 

Este bandha é citado pelo Ghêranda-Samhita.

O processo de uddiyana bandha, consiste em elevar, por sucção, o diafragma e pressionar os órgãos abdominais contra a coluna vertebral. É executado com uma participação intensa dos grandes rectos e do diafragma. Modifica a forma da caixa torácica que se eleva ao máximo e se abre. O vértice do triângulo inverte-se. Os pulmões desenhavam um triângulo com o vértice para cima, Com esta contracção este inverte-se e o vértice fica em baixo.

Devido às diferenças de pressão que se exercem sobre o abdómen neste bandha, o sangue venoso é devidamente drenado através da veia cava inferior. O diafragma cumpre assim a sua função de «coração venoso», auxiliando o músculo cardíaco.

Quando a kundaliní desperta e entra em sushumná, em conjunto com apána que inverteu a sua polaridade, junta-se ao fogo, agni, do manipura chakra onde se localiza samána váyu. Desta forma há uma alteração quantitativa e intensa no nível de energia, que permite à kundaliní continuar a elevar-se e atingir os chakra superiores. Com o que o sádhaka conseguirá estados de consciência alterada: dhyána – hiperlucidez; samádhi – megalucidez.

Se for estático é tamas uddiyana bandha. Se for dinâmico é a variante rajas uddiyana bandha.

 

Múla Bandha

Contracção da Raiz da Base

 

Esta contracção é citada pelo Gheranda-Samhita.

Consiste numa forte contracção dos dois esfíncteres anais. Mas na verdade, pelo menos no início, enquanto o sádhaka é incapaz de fazer dissociação muscular entre os esfíncteres anais e a musculatura pélvica, esta contracção também contrai os músculos dos órgãos genitais. Desta forma permite à mulher um grande domínio sobre os músculos vaginais e nos homens aumenta a potência sexual e ajuda a controlar a ejaculação. Mas a este tema voltaremos mais tarde.

Em termos energéticos este bandha fecha uma das saídas de energia do corpo e transforma apána em prána. Estimula e empurra kundaliní para cima. Acorda o múládhára chakra. Abre também a entrada de sushumná nádí (brahmá dvara) obstruída pela cabeça da adormecida Kundaliní.

Localizado na zona sacra, encontra-se uma parte do parassimpático, desligada do principal, atrofiada, antiga, ligada às funções ancestrais do paleocórtex, às funções animais de sobrevivência e reprodução – o parassimpático pélvico.

Estimula também o corpo de Luschka, pequena glândula localizada na extremidade do cóccix.

É difícil agir de modo consciente sobre este nervo. Mas com o múla bandha podemos fazê-lo.

Do parassimpático saem fibras nervosas vasodilatadoras, que estimulam e controlam o funcionamento do cólon descendente, do ânus, e da bexiga, zona do apána. Outras, vasodilatadoras, vão para o pénis e para o clítoris e a vulva. Também estimulam as glândulas sexuais.

Pelo que a execução deste bandha é importantíssima.

Múla bandha adquire a designação de rajas múla bandha [1] sempre que os esfíncteres anais são contraídos e descontraídos com ritmo e sucessivamente.

À contracção chama-se acuncana, e prakashana à descontracção.

O rajas múla bandha fortalece a musculatura pélvica, impedindo ou eliminando hemorróidas e fissuras anais.

Se múla bandha estiver bem executado o sádhaka deve sentir uma vibração interna desde os genitais até ao umbigo. Mais tarde poderá senti-la quase até ao coração e inclusive até à garganta.

 

Bandha Traya

 

                        Bandha traya significa – três bandha. Se juntarmos os três bandha anteriores, praticando-os conjuntamente e executados um após o outro na ordem indicada – múla bandha, uddiyana bandha e jalándhara bandha, – temos o bandha traya, os três bandha.

                        É durante a execução de bandha traya e kúmbhaka, que apána e prána váyu se equilibram, que a energia deixa de circular por idá e píngala nádí, para subir e circular pela nádí do fogo, pela nádí ígnea, sushumná.

 

Jíhva Bandha

 

                        Para executar este bandha o sádhaka deverá iniciar uma deglutição. A musculatura accionada sobe. No ponto mais alto o sádhaka não a conclui. Aí tem a língua a pressionar o céu da boca e a ulva. E é nisto que consiste este bandha.

                        A glândula pineal é estimulada por massajamento reflexo, isto é, é comprimida pelo aumento da pressão intracraniana.

Também poderá ser utilizado por si e não como complemento do jalándhara bandha. Acontecerá quando o sádhaka estiver impossibilitado temporária ou permanentemente de executar o jalándhara. Neste caso deverá executá-lo com a cabeça tombada para trás e a língua a pressionar o céu da boca e a ulva. Ou ainda quando quiser fazer retenção em algum ásana que não permita comprimir o queixo contra a cavidade que fica imediatamente acima do externo, como seja em bhujangásana ou em padma shirshásana.

 

 

(C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya

 

[1] Algumas escolas chamam-lhe asvini mudrá. E fazem-no porque asvini significa égua, que após expulsar o excremento, contrai e descontrai diversas vezes o anus. Mas mudrá é gesto feito com as mãos. Então um movimento anal não pode ser mudrá. Daí que no Yôga antigo não adoptemos essa nomenclatura, mas sim a proposta, visto que do que se trata é do mula bandha, feito com movimento (rajas).

A simbologia da origem lendária do Yôga

Quando se procura a origem do Yôga, verifica-se que se perde na noite dos tempos. Os documentos históricos e arqueológicos são escassos e referem-se à Nossa Cultura como algo de muito ancestral. Mas a mitologia dá o seu contributo. E é possível encontrar nas lendas muitas informações sobre a cosmogénese e a antropogénese na perspectiva hindu.

Uma das mais antigas lendas relata que a filosofia que preconizamos surgiu na Terra quando um peixe, matsya, que nesta lenda simboliza a forma de vida primordial no planeta, assistiu ao ensinamento que Shiva ministrava à sua Shaktí. Este ensinava-lhe a nossa tradição ancestral. E Matsya foi imitando os exercícios que Shaktí ia praticando. E à medida que o ia fazendo foi evoluindo. Primeiro saindo da água, depois adaptando-se à vida terrestre. Depois transformou-se em Homem (evolução do peixe ao mamífero humano). Este, o homem, por sua vez, através da prática do Yôga evolui até ao nível do iluminado.

Repare-se no paralelo que se pode estabelecer com a origem da vida na água, a evolução que ocorre da água para terra, e com a própria teoria da evolução.

Por outro lado, também revela que Shiva enquanto princípio da manifestação é um princípio abstracto, ensina, mas não age. É Shaktí, a natureza primordial indiferenciada, a Mãe universal, ou potência da manifestação, que actua, executando as práticas do método que transmitimos. Shiva representa a causa eficiente – nimitta karana – e Shaktí representa a causa material – upadana karana – e da sua união nascem todas as outras formas do ser. A evolução de Matsya é um símbolo da práxis transformadora de Shakti.

Devo acrescentar que, nos shástra, quando se relata Shiva a ensinar a Shakti, estes textos são os ágama. Quando é Shaktí a ensinar a Shiva, recebem o nome de nigama.

 

 (C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya

A simbologia da história de Ganêsha

Ganêsha é filho de Shiva e Parvati. O nome deriva da combinação das palavras sânscritas gana (demónio, exército) e isha (Senhor) = Ganêsha – Senhor dos exércitos de demónios de Shiva. O mito de Ganêsha, escrito nos purána[1], conta que Shiva, após uma longa ausência nas montanhas, regressou e encontrou um guardião de sua esposa Parvati, com ordem para não deixar passar ninguém sem autorização de Parvati. Todos os outros guardiães desobedeciam quando quem se tratava do Mahêshwara Shiva querendo entrar em sua própria casa. Parvati decidiu, então, arranjar um guardião que só lhe obedecesse e a mais ninguém. Tal como fazem os deuses, a partir do barro, matéria, amassada com o orvalho do seu corpo, insuflou-lhe vida e criou um filho. Este era o seu guardião pessoal, o seu dwarapala – o porteiro. Quando Shiva regressou da montanha, o porteiro opôs-se à entrada deste. O menino impediu a passagem do seu senhor e pai. Nada do que Shiva lhe disse o demoveu. Chegou a agredir Shiva. Parvati tomava banho e o menino tinha ordens para não deixar entrar ninguém. Seguiu-se uma luta feroz, épica, lendária, entre o exército de bhutaganas de Shiva e Ganêsha, que lutou contra todos os demónios do pai, vencendo-os. Vishnu, outro deus da trindade hindu interveio contra Ganêsha, mas também a derrota foi o que obteve. Até que então Shiva o matou com a trishula, separando-lhe a cabeça do corpo. Parvati, ao ver seu filho morto, ameaçou destruir todo o mundo. Shiva deu, então, ordem aos seus gana que procurassem na floresta e lhe trouxessem a cabeça do primeiro animal vivo que encontrassem no caminho. Foi um elefante que encontraram. Shiva colocou a cabeça desse elefante no corpo do menino e ressuscitou-o. Reconheceu-o como seu filho e deu-lhe o nome de Ganêsha.

É conhecido como Gâjanana – cara de elefante, mas também como Gânapati – o senhor dos gana.

É o deus dos letrados e da inteligência. É representado com um só dente, pois foi ele que escreveu o Mahábharata. Vyassa, o autor da obra, contou a história e Ganêsha, para que não se perdesse, partiu uma das suas presas e com ela foi escrevendo. É o deus da inteligência porque participa das duas criaturas mais inteligentes, o homem e o elefante.

Várias vezes deu provas da sua inteligência.

Quando Shiva e Parvati tiveram de decidir qual dos filhos casaria primeiro, Ganêsha ou o seu irmão Skanda, comunicaram-lhes que aquele que desse primeiro a volta ao mundo seria o primeiro a casar. Subrahmanya, outro dos nomes de Skanda, imediatamente partiu veloz como o vento. Ganêsha, pesado, corpulento, com uma grande barriga e incapaz de vencer o irmão em proezas atléticas, primeiro saudou, respeitosamente, os pais e só então é que se dispôs a cumprir a sua obrigação. E iniciou uma caminhada em torno de Shiva e Shaktí, no sentido dos ponteiros do relógio (prakshina), dando sete voltas em torno dos destes. Ao terminar, os pais perguntaram-lhe: – porque fazes isso? E Ganêsha respondeu-lhes: – Não sois vós o Universo? E não dizem os Vêda que aquele que faz sete prakshina em torno dos pais tem mais valor do que os que dão sete voltas ao mundo? E ganhou a competição com o irmão, casando primeiro.

É o senhor dos obstáculos, podendo ajudar-nos a ultrapassá-los ou a dificultar-nos todas as tarefas. Como senhor da porta, é também o guardião dos mistérios. É o senhor do labirinto – o labirinto de nadí existente no nosso corpo e que a energia serpentina terá de atravessar.

Shiva corta a arrogância ignorante do filho, que apenas quer cumprir o swádharma. Pelo qual deixa de reconhecer a substância primordial – Shiva. O pai admira a sua coragem, tenta tudo para o iluminar, mas não pode deixar a ignorância vencer. E então Ganêsha morre para a vida profana. Renascendo para a sabedoria e a iluminação.

 

(C)Copyright,  João Camacho, Yôgachárya

[1] “Os Puránas (as Antigas Crónicas) são textos longos, semelhantes à Bíblia, nos quais foram transcritas e resumidas traduções orais que remontam a um período longínquo como, por exemplo, a história do dilúvio, a domesticação do fogo, as migrações dos povos.

Esses textos contêm elementos históricos e geográficos, genealogias que vão, às vezes, até ao sexto milénio a. C., relatos mitológicos, ensinamentos rituais ou técnicos (medicina, arquitectura, pintura, música, dança, etc.) ensinamentos filosóficos, códigos sociais e morais. Formam verdadeiras enciclopédias.» in Danielou, Shiva e Dionoso, p. 33.

A CAIXA DE PANDORA

Epístolas aos meus discípulos:

A CAIXA DE PANDORA

Gnose, a finitude da vida e a supra consciência

 

Meus queridos

 

Os textos que produzo têm-vos como destinatários. Tal como acontece com este, onde, essencialmente, pretendo, deixar algumas notas acerca do simbolismo da caixa.

 

E já que vou falar da caixa e do seu simbolismo, permitam-me deixar-vos algumas classificações conceptuais. São apenas alguns apontamentos que reuni e que partilharei com todos vós.

Antes de mais a distinção de Eliade, sábio, companheiro mais adiantado, como este mestre gostava de a si próprio de designar. Segundo ele há duas grandes categorias de símbolos:

 

1 – Uranianos: seres celestes, deuses da tempestade, cultos solares, mística lunar, epifanias aquáticas, etc.

2 – Ctonianos: pedras, terra, mulheres, fecundidade, reprodução, cavernas, infernos, etc.

 

A estas duas categorias ainda se juntam os símbolos do espaço e do tempo e a dinâmica do eterno retorno, esta muito querida à mitologia grega, mas também à metafísica hindu.

 

Há muitas outras classificações de categorias de símbolos mas, pessoalmente, sem ignorar as outras (a de Krappe, La Genèse dês mythes, – símbolos celestes e terrestres; a de Bachelard, – distribui os símbolos em função dos quatros elementos da divisão esotérica, terra, água, fogo e ar; a de Dumézil, – distribui os símbolos em função de três categorias; a de Piganiol – entre os símbolos dos pastores e nómadas e os símbolos dos lavradores e sedentários; a de Pryzulski, – baseia a divisão na ideia da evolução do pensamento religioso, primeiro, o culto da Grande Deusa, depois, os símbolos do Pai e do Filho; a da Psicanálise de Freud, – o eixo do prazer e os níveis oral, anal e sexual dos símbolos, em função de uma libido recalcada; a de Adler que substitui este princípio, o do prazer, pelo do poder, – a compensação do complexo de inferioridade gera a profusão de símbolos; a de Jung, a quem devemos a introdução na ciência do conceito de inconsciente colectivo, – os símbolos ocorrem e classificam-se em função dos processos de introversão e extroversão, em função dos processos de individuação, tendo a ver com a fase evolutiva de cada um, e outras fenómenos. Jung não sistematizou, apesar da sua grande obra sobre a simbologia, de leitura indispensável. E muitos outros que nem sequer exponho, apesar da sua grandeza, entre estes Gilbert Durand.

 

Então passemos a algumas distinções conceptuais, absolutamente necessárias.

 

Assim, distingamos símbolo destas outras categorias:

 

Emblema – é uma figura visível que representa uma ideia, um ser físico ou moral. Uma bandeira é um exemplo de emblema.

 

Atributo – é uma imagem que serve de signo a uma personagem, a um colectivo ou a um ser moral. Asas, são um atributo do ar, de uma empresa de aviação; um porco, atributo de um talho; a balança atributo da justiça, etc…

 

Alegoria – é uma figuração duma proeza, de um grande feito que é ou virá a ser lendário. Pode também ser duma situação, de uma virtude superior, ou dum ser abstracto. Essa figuração pode surgir sob forma vegetal, animal, humana. A mulher alada é a alegoria da vitória; a mulher jovem, de seios desnudados e generosos, é a alegoria do regime republicano; a mulher vendada, com uma balança nas mãos é a alegoria da justiça. A alegoria não implica naquele que a conhece a passagem a um outro nível ontológico. O que contacta com a alegoria poderá fazê-lo com a segurança de permanecer no mesmo nível de consciência em que se encontrava, pois apenas implica uma operação de lógica-dedutiva, própria do pensamento discursivo.

 

Metáfora – é o desenvolvimento duma comparação entre dois seres, ou duas situações, através de uma infinidade verbal, que essa sim pode, tem a potencialidade de, nos arrastar para outro nível de consciência, sem o qual, por vezes, a metáfora perde parte do seu sentido, ou até se torna incompreensível para o destinatário.

 

Analogia – também aqui a comparação entre seres ou noções, mas agora diferentes, mas nalguns pontos semelhantes.

 

Sintoma – modificação nas aparências ou no funcionamento habitual que pode revelar, ao observador, uma certa perturbação, ou conflito; já a síndroma resulta de um conjunto de sintomas que caracterizam uma situação de conflito em evolução através do qual é possível pressagiar o futuro.

 

Parábola – pretende, para além do seu sentido, constituir uma lição moral.

 

Todas estas formas são figurações do símbolo que têm em comum o facto de serem signos, meios de comunicação, que não ultrapassam, na maioria das vezes, o plano do conhecimento imaginativo ou intelectual. São símbolos arrefecidos, como lhes chama Hegel.

 

Já o símbolo pretende ser verdadeiramente inovador. O símbolo deve ser organizador da consciência, das sensações e de toda a vida psíquica. Pretende operar uma viragem no ser que o usa. Não pretende apenas a ressonância, mas sim a transformação em profundidade daquele que o conhece. Cumpre uma função mediadora, lançando pontes entre elementos separados. Religando os céus e as terras; a matéria e o espírito; o real e o sonho; o inconsciente e o consciente. Um verdadeiro símbolo consegue condensar a experiência total do ser humano, enquanto ser religioso, cósmico, social, psíquico (nos 3 níveis: inconsciente, consciente e supraconsciente). Resultando, o símbolo como unificador.

 

Mas toda esta conversa para chegar ao simbolismo da caixa. Onde se inclui também a de Pandora.

 

Certamente que já repararam que do oriente em geral e, no que nos interessa, da Índia em especial, nos chegam caixas e caixinhas, de todos os tamanhos e feitios.

 

Desde logo é necessário referir que a caixa é um símbolo feminino, frágil. Mas pode conter também o que é temível, tenebroso.

 

A caixa protege. Mas pode sufocar.

 

A caixa deverá ser aberta? Há sempre a tentação de abrir uma caixa. Assim como os homens muitas vezes se tentam a desvendar, a descobrir, uma mulher. Mas o vaso, ou a caixa de Pandora, ficou para a lenda como o aviso de que, às vezes, é preferível não a abrir. A caixa de Pandora continha, guardava, sufocava, protegia, fechava, doenças, males e maldições dolorosas e que trazem a dor, a doença e a morte aos seres humanos. Mas a mulher quis conhecer aquele poder profundo e oculto, pois não é ela, por excelência, profundidade e ocultação? E, não resistindo, Pandora levantou a tampa da caixa, libertando no mundo os males, as pestilências, as maldições, as doenças, de que ainda hoje padecemos. Pandora, aterrorizada, incapaz de pensar claramente com medo do que tinha libertado no mundo, fechou rapidamente a tampa, não percebendo que, dentro da caixa indestrutível, havia deixado a única possibilidade de salvação do ser humano – a Esperança. E ainda hoje lá está.

 

Neste mito, emocionante, a esperança, catapulta-nos para o conhecimento, para a evolução pessoal, para a ascese. Pois a Esperança, encerrada dentro da caixa de Pandora, é o inconsciente. E só os que aprofundam na busca interna conseguem trazê-la à luz do dia. Mas é necessária a disciplina sistemática o Yôga nos proporciona. Pois as forças inconscientes são, por natureza, imprevisíveis, excessivas, irracionais, e podem ser construtivas ou destrutivas.

 

Este mito, resultante do símbolo da caixa, pretende alertar-nos para o facto de que as caixas, ricamente ornamentadas, ou simples e singelas, têm um valor simbólico pelo seu conteúdo. Pelo que abrir uma caixa implica sempre correr um risco. Temam as caixas e decidam sempre se querem correr o risco de as abrir. Nunca se sabe o que lá vamos encontrar. E não é assim, também, quando nos procuramos?

 

O Atharva-Vêdá, assim como alguns Upanishad, referem a caixa de ouro, como símbolo do misterioso vazio interior que encerra e protege um tesouro de valor incalculável: o Sí mesmo. Esta caixa de ouro contém três cavidades, destinadas ao inconsciente, consciente e supraconsciente.

 

Ainda acerca das misérias que a caixa pode encerrar, não resta ao homem se não viver, agora, o presente, com aquilo que de melhor lhe for possível. É o que Homero, que o J. se afadiga a ler, ensina: ao homem resta viver totalmente, mas com nobreza, no presente. E essa é a sabedoria humana, a Esperança, encerrada na caixa. É a sabedoria que advém da consciência da finitude e precariedade da vida humana. Pelo que se deve aproveitar o que nos seja oferecido pelo presente; a juventude, a saúde, a alegria, ou a oportunidade de exercer virtudes. Mas devemos fazê-lo a cada momento.

 

É da consciência dessa finitude da vida humana que nascem as técnicas do Yôga e da necessidade de, no tempo de uma vida realizar a perfeição, alcançar o estado de jiva mukta. Dessa consciência de finitude, nasce a necessidade de transcender a condição humana, a alegria de viver (e aqui entenda-se como a satisfação pelo existir, pelo participar na majestade da vida e do mundo), o valor sagrado da sexualidade, da experiência erótica – intensa acima de quase todas as outras, da beleza do corpo humano e da sua nudez, mas também o júbilo da função religiosa colectiva – danças, rodas, cortejos, jogos, refeições comunitárias, etc… É da consciência dessa finitude que também nasce o sentido transcendente da percepção da perfeição do corpo humano – a beleza física, a harmonia dos movimentos de corpo, a serenidade, a sensualidade, que este pode transmitir, que inspirou sempre os artistas. E não deveríamos praticar Yôga nus? Não deveríamos cultivar uma estética própria do Yôga?

 

Mas, para uma “caixa”, já me alonguei em excesso. Desculpem-me esta verborreia, por vezes, interminável. Mas há coisas que, se não as digo, morro.

 

SwáSthya

 

(C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya

Discípulo de Shrí DeRose

 

«Sou irmão de dragões e companheiro de corujas.»

1000 pétalas

1000 pétalas

Através de um livro de 1952, O reverendo Leadbeater, adepto da teosofia, induz em erro os seus leitores, com uma informação menos exacta acerca do sahásrara. Publicamos um texto do Mestre Goswami, onde se corrige tal erro.

               Devido às deficiências que existem na compreensão dos princípios do Yôga, tem havido muitas ilusões e incompreensões sobre os chakra e sobretudo sobre a kundaliní. Eis como exemplo a interpretação dos teósofos sobre o assunto. Para começar, os teosofistas adquiriram os seus conhecimentos sobre Kundaliní e os chakra, nos trabalhos sânscritos que tratam do assunto. Mas, em seguida, as narrações originais foram distorcidas, quer propositadamente, quer devido a uma falta de compreensão, que necessita, em primeiro lugar, de conhecimento técnico e em segundo lugar das instruções directas de um Mestre. Vamos dar um exemplo: C. W. Leadbeater (Leadbeater, C. W., Os chakras, The Theosophical Publishing House, Adyar, Madras 20, Índia, 1952, na p. 20) diz que o chakra coronário, (o sahásrara), descrito nos livros indianos como tendo mil pétalas, o que não está nada longe da realidade, tem somente, 960 irradiações (i. e., pétalas) da sua força primária no círculo exterior. Significa que o sahásrara teria somente 960 pétalas em vez de 1 000. Isto indica uma completa falta de compreensão da organização do sahásrara. O sahásrara é a expansão do bíndu pránico que está num estado supremamente concentrado quando o prána se torna patente e causa uma emissão de 50 unidades-força, e cada uma destas unidades é    multiplicada    20 vezes para manifestar a sua plena criatividade. Isto significa  50 x 20 = 1 000, e assim, o sahásrara tem exactamente 1 000 pétalas, nem mais, nem menos.

Podemos não ter nada contra uma experiência pessoal ou de grupo de pesquisa, mas quando tais experiências recentemente adquiridas são apresentadas para desafiar as antiquíssimas experiências yôgis, que têm sido verificadas pelos yôgis desde tempos imemoriais, torna-se como uma ‘rã num poço a desafiar uma rã do oceano’.”

Shyam Sundar Goswami, Laya Yôga, p. xvii