Tango do exílio

 

 


Inst. Júlio silva
 , João camacho,

                                                                                                 Tenho canções de mil cidades  

                                                                                                 Que a névoa apagou

                                                                                                 Não há ninguém a quem contar…

 

                                                                                                 Atravessei mil tempestades   

                                                                                                 Que o tempo amainou

                                                                                                 Hoje não sei a quem contar…

 

                                                                                                 À noite lembro essas cidades

                                                                                                 Que me hão-de levar

                                                                                                 Eu quero alguém a quem contar…

 

Sétima Legião

 

I – O poema

 

Por vezes descobrem-se, na actividade artística, aspectos que parecem comungar de algum vislumbre do intuicional. Dessa forma vamos olhando para a produção artística, encontraste, às vezes, algo que comunga com a proposta da Nossa Cultura. Muitas vezes, tão só um pequeno aspecto, às vezes, a mensagem explicita, outras, apenas um pequeno conceito, despercebido na mensagem geral. Desta vez olhámos para este poema de uma das canções do grupo musical, Sétima Legião: Tango do Exílio.

 

Sobre este poema deixo-vos a interpretação do Instrutor Júlio Silva. E, seguidamente alguns subsídios para a compreensão do conceito de mil.

 

Na primeira estrofe o poder que existe em todo o ser, a energia cósmica que está à espera de ser despertada, mas que a névoa do tempo que se espiritualizou institucionalizado se aperfeiçoa em esconder.

Na segunda estrofe vejo alguém que logrou o caminho da libertação, pela qual muitos podres e tempestades enfrentou, mas o tempo e o ritmo permitiram ultrapassar esses sustos das tempestades descobertas no caminho, e uma vez alcançado esse estágio não se sabe a quem contar, pois não compreenderiam.

Na terceira estrofe é a vivência já regular que visita constante esse estado de hiperconsciência que mais uma vez se gostaria de partilhar mas não há ninguém a quem contar, embora se queira.

Júlio da Silva.

 

2 – Sahásra

(mil)

 

Faço-vos esta chamada de atenção acerca do conceito de mil. É um conceito muito comum em variadas tradições. Tantas vezes este conceito nos surge por referência a impérios dos mil anos. E muitos tiveram essa duração. A Idade Média durou entre a queda do Império Romano e a Renascença, 1000 anos. O Império Romano durou, sensivelmente 1000 anos. A Igreja Católica afirmou-se todo-poderosa, nos mil anos da Idade Média, pelo menos na Europa Ocidental. O Império Romano do Oriente durou entre a queda de Roma e a Renascença, quando Constantinopla caiu nas mãos dos turcos otomanos – mil anos. Hitler, imbuído de um grande conhecimento esotérico, conhecendo as tradições e a simbologia, proponha-se a criar o III Reich, o Império dos mil anos.

São mil são os nomes da divindade (sahásra nama), para o hinduísmo. Há no hinduísmo trabalhos sobre os mil nomes da divindade em relação a Shiva, a Vishnu, a Lalita, a Ganapati, etc… Também sabemos que os iluminados transcendem nome (nama) e forma (rupa). O mestre fundador da Escola Bháva, a Nossa Escola, Shrí Kundalípati Bhávajanánda, um dia, afirmou a Mestre DeRose (que se encontrava em estado intuicional):

 

Eu Sou aquele que não tem nome (nama) nem forma (rupa).

Não te importes tanto se vivi há muito ou há pouco tempo,

Se no Oriente ou no Ocidente. Importa que eu viva

Aqui e agora, dentro do teu coração.

 

Os nomes, os mil nomes, são considerados como mantra. E por se referirem a um atributo da divindade, em rigor permitem um determinado tipo de organização da energia.

Por outro lado, sahásrara chakra, é o chakra das mil pétalas. Sahásra significa ‘mil‘, ra significa ‘raio‘ e chakra significa ‘roda‘, ‘vórticeenergético.

Quando nos debruçamos sobre a fisiologia subtil, descobrimos também uma referência a um chakra muito importante, o manipura chakra. Aqueles que se recordam do ensinamento que lhes dei sobre o pránáyáma, recordar-se-ão da importância fundamental e indispensável deste chakra no despertar da kundaliní, da sua inter-relação com o múla bandha, com o jalándhara bandha e com o uddiyana bandha. Ora, acerca deste chakra, chama-lhe a tradição, a cidade das mil pedras preciosas.

 

Um dia destes descobri, ou dei mais atenção, a um trabalho dos Sétima Legião, e fiquei deveras surpreendido. Mais uma vez, o artístico a um passo do intuicional.

 

Azeitão, 18 de Junho de 2007

 

(C) Copyright, João Camacho, Yôgachárya    e     Inst. Júlio Silva

“Sou irmão de dragões e companheiro de corujas.”

Súrya

Vem a propósito do nome desta revista, iniciar a nossa colaboração com alguns, breves, considerandos acerca do título – SURYA.

Surya significa sol. É um termo sânscrito, uma língua morta, muito antiga, indo-europeia. Uma das mais antigas línguas que se conhecem. É também a linguagem técnica do Yoga.

Não estranhará tal escolha como nome da revista, pois parece poder defender-se que o Yoga e pelo menos as artes marciais do Oriente asiático tiveram uma origem comum. Mas a este tema voltaremos em artigos futuros.

Surya é o fogo que aquece e ilumina, mas que também cega e queima. Dá vida e destrói. Da fusão entre o oceano e o sol surgiu a vida. Pois esta obtém a sua energia de Surya.

Surya tem dois aspectos:

a – O primeiro como Surya – é o que aquece, mas é o que queima. É o que ilumina, mas é o que cega. É o que dispensa vida, mas é o que destrói.

b – O segundo aspecto é Savitur – é o poder de dar vida. É o poder básico motivante para a auto-superação. É também o sol que se pode olhar, ao nascente e ao poente. É a este poder inspirador da auto-superação que o Gayatri Mantra se dirige:

OM BHUR BHUVA SVAHA

OM TAT SAVITURA VARENYAM

BHARGO DEVASYA DHIMAHI

DHYO YO NAH PRACHODAYATO

Mantra que numa das traduções possíveis, entre muitas propostas por vários autores, significará: «Amável luz de Savitur, o nosso voto é ter-te em nós, como guia das nossas acções e pensamentos.»
 

Surya é referido variadas vezes nos Upanishada. Este termo tem como raiz sad, sentar-se. Significa sentar-se aos pés do Mestre, sentar-se perto do Mestre, pois assim era transmitido o conhecimento

Os Upanishada são estudos resultantes de transmissão oral dos mestres aos discípulos, ao longo de milénios, e que foram passados a escrito, os mais antigos em 800 a. C. Existem cerca de 112 Upanishada. No seu conteúdo incluem grande parte dos ensinamentos filosóficos do hinduísmo. Utilizam uma linguagem poética. Os mais antigos são o Bhihad-Aranyaka e o Chandogya.

No BHIHAD-ARANYAKA UPANISHADA aparecem, entre outras, as seguintes referências:

Surya é a luz do homem. «É com a luz de Surya que o homem descansa, se levanta, faz o seu trabalho e regressa.»

4. 3-4

«Considero Surya (…) como o dirigente da luz, a origem de todos os seres na Terra.»

2.1. 1-20

No ISA UPANISHADA aparecem as seguintes referências:

«Ó Surya dador de vida, produto do Senhor da Criação, profeta solitário dos céus! Espalha a tua luz e retira o esplendor que cega, para que possa ver a tua forma exultante (…).»

Neste texto há referência ao aspecto Savitur de Surya, quando aquele que apela diz «espalha a tua luz e retira o esplendor que cega.»

No KATHA UPANISHADA aparecem, entre outras, as seguintes referências:

«O lugar de onde Savitur nascente vem e onde se volta a pôr; onde todos os deuses nascem, e para além do qual nenhum homem pode ir.»

«No espaço ele é Surya, e é o vento e o céu; no altar ele é o sacerdote, e é o soma no jarro. (…) Ele é a verdade e o poder.»

«Como Surya, que observa a Terra não é tocado pelas impurezas terrestres, assim também o Espírito que habita em todas as coisas não é tocado pelos sofrimentos externos.»

«Lá não brilha Surya, nem Chandra, nem as estrelas; os relâmpagos, lá, não brilham, e muito menos o fogo terrestre.»

«Por medo dele arde o fogo, e por medo dele brilha Surya. Por medo dele seguem as nuvens e os ventos, e a própria morte, o seu caminho».

No PRASNA UPANISHADA aparecem, entre outras, as seguintes referências:

«Surya é vida e Chandra é matéria. Tudo aquilo que tem forma, sólida ou subtil, é matéria: por conseguinte, forma é matéria.

Quando Savitura nascente da manhã entra nos céus a Oriente, banha na sua luz toda a vida que há no Oriente, e depois o Sul, e o Ocidente, e o Norte, e todo o céu é iluminado por aquela luz que dá vida a todas as vidas.»

« Surya ergue-se em dourado fulgor! Surya de mil raios mantendo-se fiel numa centena de regiões; o deus omnisciente, o alvo de todas as preces; a luz e fogo supremos, a vida infinita de todos os seres.»

«Mas todo aquele que, na sua procura interior, seguir o caminho do Norte com firmeza, pureza, fé e sabedoria, alcança as regiões de Surya.

«Mas de todos aqueles em quem não há malícia, mentira ou má-fé, que vivem em firmeza, pureza e verdade, desses são as fulgurantes regiões de Surya

«Vida é o fogo que arde, é Surya que dá luz.»

«Como quando, antes de cair a escuridão, os raios de Savitura poente parecem todos tornar-se um só no seu círculo de luz, embora à hora de Savitura nascente todos se voltem a espalhar, assim também todos os poderes dos sentidos se tornam um no superior poder da mente.»

«Mas se, com os três sons do eterno OM, ele apoiar a sua mente em meditação no Ser Supremo, então irá até às regiões da luz de Surya

No SVETASVATARA UPANISHADA aparecem, entre outras, as seguintes referências:

«Eu canto os hinos dos velhos tempos com adoração: possam os meus hinos pessoais seguir o caminho de Surya

«Há uma região para lá da escuridão onde não existe dia nem noite, nem o que é ou o que não é. Só lá está Shiva, o deus do amor. É a região do glorioso esplendor de deus, de quem veio a luz de Surya e de quem, no princípio veio a sabedoria dos antigos.»

No MAITRI UPANISHADA aparecem, entre outras, as seguintes referências:

«Aquele que está em Surya, e no fogo, e no coração do homem é único. Todo aquele que sabe isto é uno com o único.»

6.17

«Glória seja dada a Aditya, o deus de Surya, que habita no céu e que se lembra deste mundo. Dá este mundo àquele que te adora.»

6.35

No TAITTIRIYA UPANISHADA aparecem, entre outras, as seguintes referências:

«Eu sou o alimento que come o comedor de alimento.

«Eu ultrapassei o universo, e a luz de Surya é a minha luz.»

3.10.6

As referências supramencionadas não são exaustivas, nem pretendem sê-lo, mas permitem-nos aferir da importância de Surya, na tradição hindu.

Como o tema deste artigo é SURYA, cabe tecer mais alguns comentários sobre umas das práticas de ásana mais antigas do Yoga – o Surya Namaskara. Ásana é a técnica física do Yoga. Ásana são as posições psicofísicas.

Não iremos descrever toda a sequência de execução, não só porque já existem várias obras sobre Yoga que o fazem, como também a execução do ásana deve aprender-se com um Mestre de Yoga e não por um artigo. Assim transcrevemos parte do texto, não publicado, duma conferência nossa, Yoganidra. Técnica de Relaxação, que proferimos em 1997:

 

SURYA NAMASKARA

Esta prática é um antigo vestígio da forma como o Yoga era praticado. A sua prática fazia-se de modo continuado, sem paragens estanques entre cada um dos ásana. Ficam os desenhos da sequência em que deve ser exercitado.

Cumpre tecer ainda alguns comentários sobre o Surya Namaskara, no sentido de melhor se compreender o seu fundamento e simbolismo, de acordo com os preceitos do Tantra/Sámkhya:

 

Púrusha – É a causa não causada. É a origem de tudo. É o não manifestado. É o momento de MáhaPrálaya – a grande noite da dissolução cósmica. Tu-do é imobilidade. A própria posição induz à estabilidade. O Universo como o conhecemos ainda não foi criado.
Ocorre o início de tudo. Damaru o tambor de Shiva vibrou. A inspiração é a vibração que dá origem ao ritmo da alternância: união/oposição; prá-na/apana; trabalho/repouso. A causa causada manifesta-se. Shaktí move-se. O Universo expande-se, durante algum tempo, definindo um espaço.
Shaktí manifesta-se nas formas conscientes e nas menos conscientes. O prána expande-se em todas as direcções. Surge a matéria e o ritmo. O espaço e o tempo existem. Tudo é possível. Todos os caminhos estão abertos. Tudo é provável, mas é preciso escolher.
Da independência e da capacidade de agir passou ao declínio. Procura os limites das formas menos conscientes. Estabelece a ligação entre o que há em cima e o que há em baixo. Está prestes a alcançar os limites, a partir dos quais não pode expandir mais. Está prestes a alcançar o limite.
Continua a explorar os limites do espaço e do tempo que pode alcançar.
As mãos estão prisioneiras. Atingiu o estado de menor cons-ciência. A ligação à terra reforça-se. É uma passagem entre dois estados. Situa-se entre a extensão e a contracção. Simbolicamente poder-se-ia dizer que o Sol desceu do céu.
Esta fase simboliza a terra no seu aspecto passivo. A sombra invade a terra. O nível de consciência é mínimo. É o abandono do corpo sobre a terra. É o abandono da consciência. É a noite e a passividade.

O mundo subterrâneo. A serpente que vive nas entranhas do mundo – Kundaliní. As entranhas da terra detêm os segredos dos antigos. A ser-pente é um arquétipo de vida. É um símbolo do paradoxo, pois simboliza simultaneamente: a) – ignorância/ausência de consciência; b) – ciência e saber antigo, que o homem perdeu, que a Shaktí perdeu no alicerce. Contém a ideia do potencial da vida. A terra dá forma a tudo, dá vida a tudo o que é inerte. E possibilita o retorno.
Dá-se a renascença. É a passagem entre dois estados: ausência de consciência/início da consciência. Simboliza o poder criativo, feminino. Simboliza também o triângulo dos granthi.
O retorno, a ascensão. O progresso após o declínio representa a intervenção da vontade. Uma vontade sistemática e disciplinada.
No retorno ocorre o início da extensão vertical.
A proximidade do retorno à unidade. A união com aquilo que é único está próxima.
O fim dos tempos está próximo. O início de uma nova noite cósmica – MáhaPrálaya, aproxima-se..
A dualidade cessou. Shiva e Shaktí estão unos. É o princípio e o fim de tudo.
E damos por terminada, por agora, esta matéria.

JOÃO CAMACHO

 Yogachárya Docente formado pela Uni-Yoga – União Nacional de Yoga de Portugal

1º Dan de Judo – Associação de Judo Tradicional de Portugal

(C)Copyright, João Camacho, 1998

Shiva e Shaktí (2) – O Tantrismo

Na perspectiva tântrica a realidade última, não manifestada, irredutível e imutável, chama-se Shiva-Shakti – a causa incausada. É o átomo de energia original da física moderna.

Mas a dado momento iniciou-se a vibração, nada[1]. A causa da manifestação universal foi Shaktí, natureza criadora, a causa causada. O movimento, a expansão, a mutação, a diversidade, a mente e a matéria e em consequência as limitações da consciência foram produzidos por Shaktí, ou seja o big-bang da física moderna [2].

Para o tantrismo o Universo resulta destes princípios contraditórios mas complementares, feminino/masculino; causa não manifestada/causa da manifestação universal; positivo/negativo. Para o tantrismo o mundo fenoménico é real.

Shaktí ao manifestar-se afasta-se da causa incausada. É o afastamento dos astros depois do big-bang da física.

Shaktí é o poder. É ela que, através da sua práxis transformadora, delimita o espaço e o tempo e todas as formas em mutação de apresentação da energia primordial. É ela que no seu devir perde parte da consciência do uno, do imutável, do perene e manifesta-se por várias formas, em vários graus de consciência, desde os mais subtis aos mais grosseiros. Certas coisas são mais conscientes do que outras, mas a inconsciência nunca é absoluta.

Shaktí é o poder que se manifesta sob a forma de Universo, é a matriz cósmica, a Mãe universal, a energia primordial em devir, a origem de tudo o que foi causado.

E longe da mutação e instabilidade não totalmente consciente de Shaktí, encontra-se o princípio não manifestado, imutável – Shiva

Este princípio imutável, indiferenciado, designa-se também por Mahabindu, ou Nirguna Brahman, ou Paramshiva, ou, como acima o referimos, Shiva-Shakti.

Também no homem se encontra esta dualidade, entre o mental e o material. Entre o poder que se manifesta como actividade corporal e mental e uma supraconsciência desconhecida do homem comum.

Antes do big-bang, Shaktí repousa em potência em Shiva, unidos e indistintos. Quando Shaktí na forma de prakrutí cria o mental, a energia, os sentidos, a matéria sensível e chega ao último dos tattva, a terra, a matéria sólida, a sua consciência adormece, ficando latente.

É por isso que Shaktí é conhecida no plano individual como Kundaliní Shaktí, a serpente ígnea, adormecida e enrolada sobre si própria, à volta do liñgam, três vezes e meia, na base da coluna vertebral.

Ao nível cósmico é Mahá kundaliní.

Kundaliní adormecida representa a prakrutí no fim do estado involutivo.

Uma vez acordada ascenderá, como fogo, até ao sahásrara chakra, unindo-se a este, cessando a dualidade, adquirindo a consciência plena.

Na sua ascensão, o estado de obscurecimento da consciência em que Shaktí se encontra, vai-se dissipando. E vai despertando os chakra, num movimento inverso ao movimento criador. Por onde vai passando vai despertando e dinamizando os chakra. Ao chegar ao sahásrara atinge-se a meta do nossa arte.

Se o movimento ascendente se fizer com as nádí desobstruídas, os granthi, nós, estarão abertos num só sentido, não deixando Kundaliní descer de novo ao seu estado de inconsciência.

Localizam-se os granthi no múládhára chakra, no anáhata chakra e no Ajña chakra.

Tudo é reflexo da existência de Shiva, do princípio imutável. Não só aquilo que no homem permanece igual a si mesmo – o púrusha – como também o real fenoménico, em permanente mutação. Este não é entendido pelo tantrismo como uma ilusão, porque resulta da energia criadora de Shaktí. Nesta cosmogonia não há lugar ao conceito de Deus, nem de criação do mundo. Sendo Shiva imutável, é igual a si próprio, não cria, nem é criado. Nada faz, limitando-se apenas a ser. A sua manifestação ocorre por via da acção de Shaktí, a sua esposa, por extensão energia[3].

Acontece que Shaktí não é ilusória, é real, é a causa manifestada. Assim máyá, o real fenoménico, não deve ser entendido como ilusão, mas sim como a percepção do movimento e da mudança. Contudo, máyá, não deixa de produzir, no ser humano, a ignorância, avidyá. Pois este convence-se não existir nada mais do que a dualidade que observa, permanecendo assim em sofrimento. E a ignorância não lhe permite ver o que está para além. Não lhe permite ver a substância, a unidade, a imutabilidade e infinidade do Ser. A ignorância é assim a mãe de todos os sofrimentos do ser humano. Em qualquer dos casos o tantrismo não nega o real fenoménico (drishya – aquilo que pode ser conhecido), como o Vêdánta o faz. Apenas o encara como a causa causada.

E tudo o que acontece tem que estar contido na causa que lhe é anterior, pois coisa alguma pode surgir do nada.

A consciência permanece em tudo e em todo o lado, de tal modo que um dos textos tântricos antigos, o Visvasara Tantra, citado por Van Lysebeth, afirma que tudo o que está aqui, está em toda a parte. O que não está aqui, não está em parte nenhuma[4].

Shaktí é o poder que preside à organização do mundo fenoménico. No seu devir, na sua práxis transformadora até ao MaháPralaya, ou seja a grande dissolução, a grande noite cósmica, Shaktí retorna de novo a Shiva, passando os dois princípios, o imutável e o movimento, a causa incausada e a causa causada, a serem de novo um só, no que respeita á realidade absoluta, realizando a unidade. Após o que novo ciclo se iniciará. No âmbito humano a morte será o processo inverso ao do nascimento.

A cosmogonia tântrica não é religiosa, nem mística, nem dogmática. Apenas especulativa. Como se demonstrou não se socorre dos conceitos de divindade ou de criação do mundo.

O tantrismo tem 36 tattva, dos quais 24, como já acima o referimos, são comuns ao Sámkhya. Íshvarakhrushna, codificador do Sámkhya clássico, afirmou que o Sámkhya, quando ampliado, revela o Tantra em grande extensão[5].

Estrutura-se do seguinte modo:

 

Primeiro os dois grandes princípios, origem de tudo o que existe.

  1. SHIVA e 2. SHAKTÍ.

O motor imóvel do Universo.

  1. SADASHIVA

É a energia volitiva (ICCHÁ).

  1. ÍSHVARA

A seguinte manifestação, a energia do conhecimento (GÑÁNA), a vibração.

  1. SUDDHA VIDYÁ.

Após o conhecimento, a surge a energia da acção (KRIYÁ).

6 – MAYÁSHAKTÍ

Depois Shaktí manifesta-se na forma de energia da dualidade, dando origem aos tattva físicos.

Por sua vez este tattva, Mahashaktí, contém em si três funções distintas:

  1. a) – Srsti, a emanação;
  2. b)  – Sthiti, a evolução;
  3. c)  – Pralaya (Samhára), a dissolução ou reabsorção.

Pelo que surgem os cinco KAÑCHUKA (envoltórios):

  1. KALÁ

São os limites da infinita força de Shiva.

  1. VIDYÁ

São os limites da força do conhecimento;

  1. RÁGA

São os limites da força do desejo, o poder da selecção.

  1. KÁLA

São os limites da força do tempo.

  1. NIYATI

São os limites da força de causa-efeito (KARMA). E Shaktí continuará a sua saga transformadora, cada vez mais longe do princípio consciente, agora através dos tattva já conhecidos quando expusemos o Sámkhya. É nesta fase do seu percurso descendente que se manifestam o

PÚRUSHA e a PRAKRUTÍ;

em seguida

BUDDHI; AHAMKÁRA; MANÁS;

depois os

JÑANAINDRIYA;

os

KARMAINDRIYA;

os

TANMATRA;

e finalmente os

MAHABHÚTA.

 

Porém, a motivação do adepto tântrico não é a estéril discussão teórica. Sabe que só com a prática poderá conseguir aquilo que quer: a expansão da consciência até à percepção da realidade última. O que conseguirá no estado de samádhi. Só possível com o despertar da Kundaliní [6].

 

 

(C) Copyright, João Camacho, Yôgachárya

 

[1] Como veremos à frente nada é o som, neste caso a vibração primordial.

[2]  Cfr. O Tao da Física; nesta obra o Dr. Fritjof Capra defende que uma consistente visão do mundo começa a emergir da física moderna, em harmonia com a antiga sabedoria oriental.

[3] Shiva sem Shaktí é Shava (cadáver).

[4] Van Lysebeth, Tantra, el culto de lo femenino.

[5] Santos, ob. cit., pg. 85.

[6] Muito mais haveria a dizer sobre este sistema filosófico. Contudo esse não é o tema do nosso curso. Aconselhamos, assim, autores como Daniélou; DeRose; Eliade; Feuerstein; Mokerjee; Mokerjee & Khanna; Riviére; Sarma; Shivánanda; Van Lysebeth; Woodrofe.

Shiva e Shaktí (1) – O Tantrismo

 João Camacho, Yôgachárya

                        Tantra é uma filosofia matriarcal, sensorial e desrepressora.

É o nome dado aos ensinamentos antigos, de transmissão oral (parampará), do período pré-clássico da Índia, época proto-histórico, com mais de 5 000 anos, pois no dizer de Mokerjee e Khann[1] Tantric ritual-simbols are found in Harappan Culture (Indus Valley) Civilization, c. 3000 BC) in the form of Yogic postures, and in the Mother and the fertility cult.

A Índia era habitada, naquela época, proto-histórica, pelo povo drávida, cuja sociedade e cultura, de alto nível, eram matriarcais, sensoriais e desrepressoras, ou seja, era uma civilização tantrika.

O tantrismo era um gupta vídya[2] – conhecimento secreto.

Nesta sociedade matriarcal la propriété, la maison, les terres, les serviteurs appartiennent aux femmes e o homem não passa de um fécondateur, un errant qui s`intéresse aux arts, à la guerre, au jeu, ou bien se consacre à la vie intellectuelle ou spirituelle.[3]

                           As mulheres eram proprietárias dos meios de produção, situação comum a muitas sociedades primitivas urbanas e agrícolas. A importância económica preponderante da mulher, a descendência matrilinear, ou seja, a linha de descendência feita por referencia à mãe, leva a que a sacralidade feminina passe a primeiro plano.

A fertilidade da terra é solidária da fecundidade feminina. As mulheres são responsáveis pela abundância das colheitas, pois só elas é que conhecem o mistério da criação. É um mistério mítico e religioso, porque governa a origem da vida, da alimentação e da morte. A Terra Mãe reproduz-se por partenogénese. A mulher, qualquer das mulheres, comunga desta capacidade e reproduz-se, dá vida a outro ser também por partenogénese. Pelo menos assim o pensavam.

A sacralidade feminina, já conhecida no período paleolítico, com a agricultura, aumenta o seu poder, tornando-se dominante. A sacralidade feminina conduz

 

à sacralidade da sexualidade e conduz à orgia ritual. A mulher, a sexualidade, os ritmos lunares, o mistério da vegetação, da morte e renascimento cíclico, sazonal, com uma espantosa multiplicação pós-morte, estão interligados entre si num simbolismo e estrutura antropocósmica. E parece que o que causou a crescente sacralidade da mulher não terá sido propriamente o fenómeno da agricultura, mas o mistério do nascimento ® morte ® renascimento, identificado no ritmo da vegetação.[4]

 

Neste povo, que vivia no meio cultural e mítico descrito, surgiu o Tantra, como filosofia de vida, de comportamento, que é.

O tantrismo, sendo assim uma filosofia matriarcal, logo sensorial, desenvolveu técnicas relacionadas com o respirar, comer, excretar, dormir, ter mais saúde, mais beleza, mais juventude, mais longevidade, mais prazer e melhor sexualidade[5].

Alguns autores equivocadamente dizem que o Tantra só terá surgido no séc. VI, outros no séc. VIII, porque só nesta época é que surgiram as Escrituras sobre Tantra. Mas, na verdade, é muito mais antigo, e está em estreita associação com o proto-Yôga (….). Na verdade, os mestres tântricos acentuam que, não obstante suas doutrinas sejam recentes, elas não são criações totalmente novas, mas apenas reinterpretações da sabedoria sagrada arcaica[6].

Assim, estes textos, recentes, são os Tantras.

o Tantra é a mais antiga, rica, poética e artística tradição cultural da Índia.

Hay um tantrismo popular (….) pré-vêdico, extremamente antiguo y que se concentra en torno del culto de las Diosas Madres, las que se hallan en todas as partes.[7]

 

Porém a partir do séc. VI foi uma moda na Índia, que influenciou a sociedade, a arte, a filosofia, os costumes, a religião e a ética de forma profunda.

Os Tantra, costumam ter uma divisão quadrupla:

 

Jñanapada a gnose; a doutrina;
Yôgapada o ensino sobre a prática de Yôga;
Kriyápada  actividades rituais
Charyapada  ensinamentos sobre comportamento; regras de vida.

 

Os Tantra são escritos sob a forma de diálogos entre Shiva e a sua esposa Shaktí. Quando, nestas conversas Shiva ensina a Shaktí, a escritura tem o nome de ágama. Quando o ensinamento é transmitido pela Shaktí, que assume o nome de Bhairaví, sendo o discípulo Shiva, então têm o nome de nigama.

Os ágama são considerados ainda mais antigos que os Vêda.

Os Tantra são mais de 200 livros, com um milhão e meio de shloka, que são estrofes com quatro versos de oito sílabas. Os mais conhecidos textos são os Mahanirvanatantra, Kulanarva Tantra, Tantrakaumadí, Shaktísangana, Rudrayámala, Káliká, Tantrasattva, Syama Rahashya, Mantra Mahôdadhi, Sharadatika e Satchakranirupana.

Existem três linhas de tantra e sete escolas principais. A nossa linha de Yôga baseia-se nas raízes dakshinacharatántrika, linha branca, mão direita, a mais antiga. Não utiliza fumo, drogas, álcool, carnes e recomenda contenção de orgasmo. As outras linhas são a negra, ou de mão esquerda, própria da Idade Média, e a cinzenta. As sete escolas são:

 

1 – Dakshinacharatantrika (tantrismo branco);

2 – Vamacharatântrika (tantrismo negro);

3 – Vêdacharatântrika;

4 – Vhaisnavacharatantrika;

5 – Shaivacharatantrika;

6 – Siddhantacharatantrika;

7 – Kaulachara tantrika (tantrismo cinzento).

 

É uma filosofia que nega e condena o sistema de organização social por castas, predominante na Índia durante milénios. É uma filosofia de liberdade. Por isso foi condenada e perseguida pelo opressor ariano, após este ter invadido e escravizado o povo drávida.

A palavra tantra em si tem vários significados:

 

  1. a) Desde logo significa aquilo que é regido por uma regra geral, mas também é a maneira correcta de fazer qualquer coisa. Poderá significar ainda autoridade, prosperidade, riqueza, encordoamento (de um instrumento musical).

 

  1. b) – É aquilo que esparge o conhecimento.

 

  1. c) – É o conhecimento relativo a tattwa (verdade) e mantra (ciência do som e ultra-som).

 

  1. d)Tantra também significa tecer, tecido, trama ou teia do tecido, pois para o tantra o Universo é um tecido onde tudo imbrica, tudo se interrelaciona, tudo actua sobre tudo; mas ainda continuidade, sucessão, descendência, ou processo contínuo.

 

  1. e) – Significa também sistema, teoria, doutrina, obra científica, secção de uma obra. Também é a designação de qualquer doutrina ou obra que se inspire nesta filosofia.

 

  1. f) – Tantra resulta de tantri, explicar, expor, pelo que pode também designar um tratado sobre um determinado tema, mesmo que este nada tenha que ver com o

 

  1. g) – Tantra também designa toda a doutrina não vêdica.

 

  1. h) – Tantra resulta ainda do radical tan (estender, esticar) e do sufixo tra (instrumentalidade), pelo que temos tantra como instrumento de expansão da consciência a níveis supraconscientes.

 

[1] Mokerjee e Khanna The Tantric Way. Art. Science. Ritual, pg. 10.

[2] (….) hay en el Tantrismo una importante traditión oral, muy difícil de conocer porque tiene un aspecto esotérico y secreto; se llama la tradición de boca a oreja (vaktrât vaktrântaram), la doctrina secreta (guptavidya), misteriosa (âmnâya), in Jean Riviére, El Yôga Tântrico, pg. 34.

[3] Alain Daniélou, Shiva et Dionysos,  pg. 265.

[4] Ashtánga Anna – Retrospectiva histórica, Conferência do autor para obtenção do grau de Docente em Yôga, proferida na Uni-Yôga – União Nacional de Yôga de Portugal em 11 de Maio de 1996. Trabalho não publicado.

[5] DeRose, Yôga Mitos e Verdades, citado por Alexandre Ramos, Exercício físico e estados alterados de consciência – o exemplo do Yôga e das artes marciais, Junho de 1997, Lisboa, trabalho não publicado, realizado para a cadeira de Psicologia do Exercício e Saúde, no Mestrado Europeu em Exercício e Saúde, promovido e organizado pela Faculdade de Motricidade Humana.

[6] Feuerstein, Manual de Yôga, pg. 92. Também neste sentido, mas situando as origens do Tantra num passado ainda mais remoto do que os 5 000 anos que indicámos, Van Lysebeth situa-o à 9 000 anos, dizendo acerca de Çatal Hüyük, que era una verdadera ciudad de 10 000 de habitantes, de 9 000 mil años de antiguedad, la que en 1958 exhumó en Anatolia el arqueólogo inglês James Mellaart. (….) Era tántrica Çatal Hüyük? (….) los grandes temas del tantra, como el Culto de la Femineidad, están presentes en ella. (….) Sin embargo, incluso em ausencia de ritos sexuales, todo en Çatal Hüyük es puro tantra. in Tantra, el culto de lo Femenino, pg. 42 e 43. Sir Mortimer Wheeler, O Vale do Indo, acerca da civilização do Indo, descreve que as estatuetas de deusas-mães estão cobertas até à extravagância de pesadas jóias, embora (….) usem (….) só umas sainhas reduzidas (….), pg. 43 e explica, ainda, que nesta civilização a mãe ou deusa–mãe, símbolo da fertilidade, gozava de uma certa primazia, pg. 49.

[7] Jean Riviére, Ritual de Magia Tântrica Hindu (Yantra Chintamani), pg. 11.

 

Copyright, João Camacho.

Santôsha e Tapas

Cultivar o contentamento e o aprimoramento do carácter.

 Introdução

 

Na base de todas as linhagens de Yôga estão os preceitos éticos, que se encontram expostos nos Yôga Sútra de Pátañjali. São os yama e os niyáma.

Os yama são o mahá vatra, ou seja, o grande voto universal que, como ensina Pátañjali, no cap. II – 31, não estão limitados por casta, lugar, tempo, nem circunstâncias.

                        Os yama e os niyama consistem nos seguintes preceitos:

 

Yama

Proscrições éticas´

Estes preceitos são as obrigações do ser humanos enquanto ser social. São as suas obrigações para com a sociedade.

I. Ahimsá Não agressão
Ii. Satya A verdade
III – Astêya Não roubar
Iv – Brahmacharya Não dissipação da sexualidade
V. Aparigraha Não-possessividade
Niyama

Prescrições éticas

Estes preceitos são as obrigações de cada ser humano para consigo próprio

Vi. Shaucha A limpeza
Vii. Santôsha O contentamento
Viii. Tapas A auto-superação
IX. Swádhyáya O auto-estudo
X. Íshwara Pranidhána A auto-entrega.

 

 

Iremos abordar, neste artigo, apenas dois dos preceitos: santôsha e tapas.

 

Parte I

Santôsha

Cultivar o contentamento

II – 42

Santôshád anuttamah lábhah

A observância do contentamento constante conduz à superlativa felicidade.

 

Contentamento é a atitude psicológica de estar satisfeito com aquilo que se tem. O contentamento e o seu contrário, o descontentamento são independentes das circunstâncias que os geram. É definido no Mahábharatá (XII – 21.2) como «o mais alto céu»[1].

O yôgi deve cultivar a capacidade de extrair contentamento de todas as situações a que esteja submetido.

O discípulo deve cultivar a arte de estar contente com o Mestre que escolheu.

 

Sháriraka santôsha

Contentamento físico é estar contente com aquilo que tem. É estar contente com o desempenho físico nas técnicas da metodologia que ensinamos. É ser auto-suficiente e não esperar nada de ninguém. É estar contente com aquilo que possui. É estar contente com a sequência de ásana que é capaz de executar.

É, todavia, também, estar contente com a capacidade de agir e fazer do contentamento uma ferramenta para a auto-superação, para ir mais longe.

 

Vachika santôsha

É essencialmente a prática de mauna evitando as discussões estéreis e inúteis.

 

Kama santôsha

Quando o yôgin deixa de ser arrastado pelas vagas de emoções que assolam o ser humano está em santôsha, alheio à alternância e às circunstâncias emocionais exteriores ou interiores.

 

Manásika santôsha

O contentamento que se procura não é o dos desejos satisfeitos, mas sim o do contentamento consigo próprio. Oriundo do desapego dos frutos da acção.

Está em santôsha aquele que mantém o seu ritmo e a sua alegria, alheio às circunstâncias, pois sempre encontra motivo para se impulsionar e para agir, com alegria, para a auto-superação e para a expansão da Nossa Cultura. É aquele que consegue espontânea e necessariamente colocar-se em atitude de alegria interior seja num ambiente de guerra ou de paz, faça chuva ou faça sol. De tal modo que o yôgi deve ser um dispersor de alegria. A sua alegria deve incluir as tristezas alheias.

Aquele que progride mantém-se cada vez mais em santôsha.

 

Disposição moderadora[2]:

A observância de santôsha não deve induzir à acomodação daqueles que usam o pretexto do contentamento para não se aperfeiçoar.

Parte II

Tapas

disciplina, austeridade

 

II – 43


A disciplina própria produz a destruição das impurezas, o que conduz ao aperfeiçoamento da sensibilidade corporal e dos sentidos físicos.

Káyêndriya siddhir ashuddhi kshayát tápasah

 

Tapas provém da raiz tap que significa calor. O calor mágico descrito nos shástra que faz despertar a kundaliní, transcender a condição humana e que produz siddhi. Designa todas as práticas, por vezes ascéticas, que produzam calor. A produção de tal energia calórica, o seu armazenamento e a sua utilização (….), é o objectivo das mais antigas formas da prática de Yôga[3].

Manter uma prática diária do método que preconizamos é uma manifestação desta norma.

Manter uma alimentação adequada à nossa filosofia também.

O yôgin deve manter o constante esforço sobre si mesmo, afim de se superar em todos os momentos.

Em todas as circunstâncias e todos os dias o yôgin deve fazer melhor.

Cultivar a humildade e a cortesia é uma forma de demonstração de tapas.

 

Sháriraka Tapas

As austeridades físicas podem ser, de acordo com a sua qualidade, tamas, rajas, sattva.

Tapas pode ser jejuar, manter-se entre quatro fogueiras sob um sol tórrido ou secar lençóis encharcados em água gelada cimo de uma montanha no meio da neve – tamas; ou praticar môuna por longo tempo – rajas; ou pode ser o estudo dos shástra ou a prática regular e disciplinada de meditação – sattva.

Tapas purifica o corpo e fortalece-o, pois tapas também é praticar com disciplina as técnicas físicas da nossa arte.

Manter uma pratica diária do nosso método é uma manifestação desta norma. Manter uma alimentação adequada também. O yôgin deve manter o constante esforço sobre si mesmo, afim de se superar em todos os momentos.

Em todas as circunstâncias e em todos os dias o yôgi deve fazer melhor, aprimorando-se.

Cultivar a humildade é uma forma de demonstração de tapas.

Mas também é verdade que o tapas físico não deve conduzir o sádhaka aos exageros faquiristas, que pouco têm a ver com a atitude equilibrada e ponderada de um yôgi. E tanto assim é que, no Bhagavad-Gitá, explica Krshna a Arjuna:

 

XVII – 5,6.

Os homens que passam por terríveis austeridades,

(….)

unidos à hipocrisia e ao egoísmo,

apaixonados, desejosos e violentos,

 

E inconscientes, que torturam no seu corpo

esse agregado de elementos que o enforma,

também dentro do corpo a mim torturam,

tomando duras decisões demoníacas. [4]

 

Mais recentemente, Vishnudêvánanda também chamou a atenção para este facto, tentando corrigir uma atitude fanática dos seguidores das linhas espiritualistas de Yôga. Assim este mestre, numa conhecida obra sua, do séc. XX, admoestava os seus seguidores do seguinte modo[5]:

 

Também é importante contar com uma mente sã. Posto que o corpo e a mente estão intimamente concertados, é importante ter um estado mental alegre a todo o momento. A alegria e a saúde estão sempre de mão dada. O aspirante inteligente mantém o seu corpo são põe meio de exercício regular, posições de Yôga, controlo da respiração, uma dieta moderada, descanso e muito ar fresco. Há que evitar as drogas e os medicamentos tanto quanto seja possível, e, quando seja necessário, recorrer a curas naturais.

Há muitos aspirantes que se recusam a tomar medicamentos ainda que se encontrem gravemente doentes. Estas pessoas torturam o seu corpo desnecessariamente; permitem que a doença se espalhe e assim arruínam a sua saúde. Rapidamente se verão fisicamente incapacitados para continuar a sua prática. É muito melhor medicar-se durante um par de dias e retornar rapidamente à prática do que permitir que a doença alcance estados mais avançados, causando grandes dificuldades e atrasos no regresso a uma prática regular. Merece a pena ressaltar que a cura mais efectiva para muitos transtornos é o jejum, durante o qual o sistema digestivo descansa e se eliminam os venenos do corpo.

 

Vachika tapas

Conter o impulso de expressar comentários maldosos sobre outrem. O Bhagavad-Gitá ensina:

 

XVII

Palavras que não causam aflição,

verdadeiras, amigas, salutares,

recitação e práticas dos Vêdas,

eis a chamada ascese da linguagem.

 

 

Kama tapas

O Bhagavad-Gitá ensina que os três caminhos que conduzem o homem à angústia são o desejo, a ira e a avidez:

Quando um homem medita nos objectos

dos sentidos, desperta o seu apego

e, do apego, nasce, então, desejo

e, do desejo, é que brota a ira;

 

E a angústia causada pelo desejo, a ira e a avidez, não é própria do homem sábio, pois aquela conduz o homem à prostração.

O sádhaka deverá então praticar a austeridade de evitar o desejo, a ira e a avidez, pois estas emoções perturbam-lhe o psiquismo, afastando-o do samádhi.

 

Manásika tapas

A austeridade de manter lealdade ao seu Mestre constitui a mais nobre expressão de tapas.[6]

Deve também cultivar a disciplina de não misturar a nossa tradição ancestral com outros sistemas ou artes, assim como a de não adoptar várias linhas de Yôga em simultâneo.

Tapas é ainda a disciplina do cumprimento das restantes regras éticas.

Tapas é também (Bhagavad-Gitá):

 

XVII

Mente serena mais benevolência,

silêncio e domínio de si próprio,

pureza de carácter, sentimentos,

eis a chamada ascese desta mente.

 

Tapas é tão importante que Vyassa, ao comentar o Yôga Sútra de Pátañjali afirma que sem tapas, nenhum homem pode atingir a perfeição do Yôga.

 

Disposição moderadora:[7]

A observância de tapas não deve induzir ao fanatismo nem à repressão e, muito menos, a qualquer tipo de mortificação.

 

(C)Copyright,  João Camacho, Yôgachárya

[1] Feuerstein, The Shambhala Guide to Yôga, pg. 43.

[2] DeRose, Yôga Sútra de Pátañjali, p. 131.

[3] Heinrich Zimmer, Mitos e Símbolos na arte e civilização indianas, pg. 124.

[4] Bhagavad Guitá

[5] Vishnu Dêvanánada, Meditación y Mantra, pp. 283.

[6] DeRose, Yôga Sútra de Pátañjali, p. 131.

[7] DeRose, Yôga Sútra de Pátañjali, p. 132.

Relação Mestre / Discípulo – A Pedagogia nas artes orientais

«Cet écrit rassemble les enseignements que j’ai reçus de mês maîtres vénérables alors que j’étais à la recherche de mon centre et d’une relation véritable avec l’Univers.»

Lucas Estrella Schultz, La sagesse du guerrier, pg. 9.

 

A abordagem que faremos deste tema será muito pessoal. Sempre enquadrada nos ensinamentos recebidos, pelo menos na forma como foram compreendidos e descodificados. Tudo o que somos e fazemos, seja nas artes do Budô ou no Yôga, devem-se muito mais à generosidade dos nossos mestres do que a nós próprios. Aos nossos mestres estamos gratos, mesmo daqueles que em tempos o caminho, que o viandante faz caminhando, nos afastou.

Quando se analisam as questões da pedagogia nas artes orientais pode fazer-se uma abordagem dita científica, ou uma abordagem feita pelo lado da tradição. A nossa opção é pelo lado da tradição.

Primeiramente abordaremos a tradição do Yôga, posteriormente a tradição do Budô.

Para aqueles que rejeitam a tradição, a existência de um Mestre é algo de indesejável. É algo de condenável. Criticam todos os que o têm e que seguem as suas orientações. Consideram que o importante é saber umas coisas de metodologia do treino desportivo, “sacar” umas técnicas aos que as conhecem e agora fazer o que lhes apetecer. Não perceberam certamente o que está em causa nas artes do Budô ou no Yôga. Não entenderam o que essas artes têm de aperfeiçoamento pessoal e desenvolvimento interno. Na tradição indiana, os shástra, ou seja, as palavras de autoridade, as escrituras do Hinduísmo, dizem que o Mestre é o pai e a mãe e o Senhor. Por isso são-lhe devidos dedicação, entrega, amor, obediência, respeito, lealdade. A tal ponto que nas artes do Oriente o conhecimento, muitas vezes, só era transmitido de pai, ou de mãe, a filho/a. Se não houvesse a relação de consanguinidade, o discípulo deveria demonstrar total dedicação ao mestre.

Em sânscrito, o Mestre é designado como guru, que significa ‘gu’ trevas, ‘ru’ dissipar. Ou seja, o Mestre é um dissipador de trevas. O seu papel é indicar ao discípulo o caminho. E este deverá o discípulo percorrê-lo. O mestre substitui o verdadeiro Mestre – o Mestre interno [1], fonte primordial do auto-aperfeiçoamento e de auto-superação. E fá-lo-á enquanto o iniciado não conseguir, só por si, entrar em comunicação consciente com este. Ora, torna-se necessário o contacto físico com o Mestre, seja continuadamente, seja de modo esporádico. A influência que o mestre deve exercer sobre o discípulo representa algo de supra-individual, diríamos transpessoal, em que a individualidade do Mestre e do discípulo apenas são um suporte. O guru ou, na tradição japonesa, o sensei, são o veículo da descida da energia, Shaktípata. Com a passagem de tal energia o discípulo consegue, em termos de evolução pessoal, o que só com grande esforço conseguiria pela prática paciente do Yôga ou das artes do Budô.  Em tal relação, a pedagogia, tal como é concebida no Ocidente, não faz sentido. Não cabe ao Mestre descobrir como ensinar o discípulo. Antes cabe ao discípulo descobrir como aprender. Para o discípulo que não souber aprender, nenhum mestre conseguirá ensiná-lo. Para aquele que souber aceitar o discipulado, sempre aprenderá ainda que o mestre nada ensine. Pois tem o siddhi da aprendizagem muito desenvolvido, a tal ponto que bastará a proximidade física do mestre para se desenvolver. Na tradição do Yôga, a relação com o Mestre, processa-se através da proximidade física na qual são realizados o Guru Sêva, o Parampará e Kripá Guru. Por isso o discípulo ao escolher um mestre, porque é o discípulo que escolhe, deve estar preparado para o seguir. Aqueles que são desajustados, imaturos, também se decepcionam, acreditando que o mestre não ensina, quando muitas vezes preciosos ensinamentos lhes estão a ser depositados nas mãos sem que o percebam.

 

Guru Sêva

 

É o serviço ao Mestre. O discípulo deve demonstrar ser dedicado ao mestre, superando logo algumas provas, como sejam tratar das coisas do mestre, prestar alguns serviços duros e vulgares, como limpar o local da prática, carregar os objectos do mestre, fazer comida, preparar as mesas para alguma festa ou comemoração que seja feita, mesmo sem que nenhuma técnica objectiva lhe seja ensinada. Se tudo aceitar sem questionar, então estará apto a passar ao estágio seguinte, onde lhe começa a ser ensinada arte. Nas artes do Budô são conhecidas muitas histórias destas. Se questionar o mestre, este irá exigir-lhe muito mais provas de dedicação. Se porventura o discípulo tudo aceitar sem questionar, passará à fase seguinte, o parampará.

 

Parampará

 

Passada a fase anterior, que em boa verdade também é Yôga, pois é uma forma de Karma Yôga, o mestre transmitirá o conhecimento da arte ao discípulo. Fá-lo-á através do parampará que “significa um depois do outro. Mas o sentido é «transmissão oral», ou seja, é a única forma pela qual o verdadeiro conhecimento pode ser passado de Mestre a discípulo, de boca a ouvido, através dos séculos e milénios.” [2] Curiosamente, alguns dos contos populares são altamente iniciáticos e são as mães que transmitem esse conhecimento através de gerações, contando as histórias, chamadas infantis, às crianças. Não sabem o que estão a transmitir, mas o conhecimento é perpetuado. Isso também é parampará. Mas aí falta-lhes a orientação de um mestre para descodificar o que está em causa. A mãe servirá sempre de grande mestre, mesmo quando ela própria não sabe descodificar o que está a ensinar. Quando a transmissão por parampará é feita sem a consciência do que está a ser ensinado, tanto por parte do emissor, como por parte do receptor, falta-lhes o que na tradição tântrica se chama de ensinamento da boca do mestre à orelha do discípulo – vâktrat vaktrântaram, pois se trata de conhecimento secreto (gupta vidyá) e misterioso (amnaya) [3]. No mesmo sentido, Eliade, pois, na tradição tantrica “a revelação se dirija a todos, a via tântrica comporta uma iniciação que só pode ser feita por um guru; daí a importância do Mestre, o único que pode transmitir, de «boca a ouvido», a doutrina secreta, esotérica [4].” Relação que é essencial na evolução do discipulo, transmitindo-lhe um quadro conceptual de orientação pessoal em relação as fenómenos que vão ocorrendo na sua transformação e ascese, tudo como explica Sannella, embora em sentido crítico, “o mestre transmite, tanto em palavras como, muitas vezes, por meio de iniciação directa, o conhecimento esotérico ou a visão que o discípulo está prestes a descobrir por si mesmo. Em outras palavras, o mestre proporciona a estrutura da interpretação com a qual, então presta serviços aos acólito, como uma luz que o guia na sua jornada psicoespiritual [5].”

 

KRIPÁ GURU

 

Tendo o discípulo passado a fase anterior, percebidas as lições que o Mestre lhe dá, os ensinamentos que lhe são transmitidos, por vezes de forma informal, quando ele menos espera, fora da sala de prática, é chegado momento de receber a iniciação, o Kripá Guru, ou seja a graça do mestre, o seu toque, a sua bênção. Kripá guru é o toque do Mestre, o toque intencional que transmite força. Nalgumas escolas também é conhecido por Shaktípata – o toque de Shaktí. É a bênção através da qual o Mestre transmite ao discípulo a energia que transforma, que transmuta. É o chintamani, a pedra filosofal. É a capacidade que o mestre tem de transmitir e de transmutar. Tal como a pedra filosofal toca e transforma o chumbo em ouro, também o mestre transforma o seu discípulo em ouro. É o toque de Midas. É a capacidade que o mestre tem de interferir e transformar o discípulo como pessoa, de interferir e alterar a sua vida o seu karma. Por vezes carregando-o.

O mestre não deve permitir o envaidecimento do discípulo. É necessário ser tolerante, bondoso, mas impor disciplina. O praticante mais adiantado, se o é, deve dsiciplinar o ego e ajudar os mais novos, sem se considerar mais do que eles. Deve manter cordialidade.

Há vários tipos de kripá que o mestre pode dedicar ao discípulo. Desde logo os mais comuns são [6]:

Adí kripá. É o toque simples, uma bênção que qualquer pessoa pode receber, como forma de receber força, paz, saúde, bem-estar, desenvolvimento interior.

Maha kripá. É uma transmissão forte, que transforma o discípulo em professor e este em Mestre. Deverá estabelecer laços de carinho e respeito entre o Mestre que concedeu e o discípulo que recebeu. Insufla o poder de preparar outros instrutores.

Tantra kripá é um toque energizante que estimula chakra e kundaliní através da libido.

Uma tradição na qual esta transmissão tenha sido interrompida perde-se para sempre. No Ocidente, todos os que peroram contra a existência de um mestre que deverá ser seguido não sabem, de facto, do que estão a falar. A esses, a pedagogia.

 

O MESTRE

 

                        É certo que no Ocidente muitas das pessoas que passaram pelas artes orientais estão fartas de certos “mestres”, verdadeiros vendilhões, que de mestres têm pouco. Uns orientais, outros ocidentais, que resolveram assumir as vestes do Mestre. Mas isso resulta do facto de, na nossa civilização, se querer tudo para ontem. O Mestre habitualmente não facilita, como já acima vimos. Exige provas de lealdade, de dedicação. E muitos, fartos de obedecer vão embora. Procuram um caminho rápido, onde lhes seja prometida iluminação instantânea num workshop, como é moda apelidar-se hoje, de fim-de-semana. E esperam sair de lá com técnicas “secretas”, com as quais passam a ser “grandes mestres”. Em Inglaterra, na segunda metade do séc. XX, com a febre dos filmes de Bruce Lee, toda a gente queria praticar Kung Fu. Então muitos donos de restaurantes chineses abriram ao lado do restaurante uma escola de “kung Fu”. E alguns milhares de britânicos pagaram preços elevados por aulas dadas por um cozinheiro. Recentemente chegou-me ao conhecimento que alguém que durante muitos anos se dedicou ao “ferro”, agora, repentinamente, faz “regressões” acompanhadas de sessões de massagem corporal. E algumas incautas já se apressam a inscrever-se para “regredirem” nas mãos de tal “mestre”. O problema do surgimento de falsos mestres é a existência de mercado para os mesmos: quanto mais místicos, espirituais, compreensivos, com roupas exóticas e maneiras afectadas se apresentarem mais sucesso têm. E se a isso tudo juntarem uma voz profunda, tratarem os que os procuram por filho e filha, derem ao seu método um nome estranho e prometerem resultados para ontem, é sucesso garantido. Um pouco mais de maturidade e de paciência daqueles que procuram e alguns falsos “mestres” não teriam tanto sucesso. Acerca das maravilhosas “meditações” que alguns desses mestres dão, é assim mesmo que os seus seguidores se expressam, dos “milagres” que fazem, dos poderes que ostentam, mais valia seguirem o grande mestre “bom senso ananda” como, à guisa de brincadeira, Mestre Van Lysebeth aconselha num dos seus livros.

A questão da necessidade, ou não, da pedagogia, afim de se discutir que tipo de pessoas queremos formar, como fazê-lo, como as motivar, como conseguir ensiná-las, não tem sentido numa arte oriental se soubermos distinguir o trigo do joio. Isto é, há que estabelecer distinções claras e não confundir o Mestre com o professor ou com o instrutor. E nesta confusão também está a origem de muitos erros. Pois a relação com o instrutor não é nem pode ser igual à relação do discípulo com o mestre.

Desde logo, instrutor é aquele que ministra sessões práticas de Yôga, ou de outra arte oriental a adeptos comuns que querem conhecer esta ou aquela arte. Já o professor é o que ensina a prática e a teoria para o domínio da técnica e da sua fundamentação. Pode inclusive ministrar seminários teóricos e pode preparar futuros instrutores. E veja-se o quão longe estamos ainda da relação entre mestre e discípulo. Já o Mestre é aquele que interfere na maneira de ser do discípulo. O praticante participa em sessões práticas da arte que escolheu. O aluno recebe aulas do professor. O discípulo assumiu uma relação de empatia e de lealdade com o Mestre. É aquele que aprende para a vida e não só para a sala de aula e aceita que o Mestre através dos seus ensinamentos interfira em sua vida privada. Pois com aquilo que o Mestre lhe ensina para a vida transforma-o, modificando-se, transmutando-se, polindo-se, revelando-se cada vez mais um diamante.

A relação entre Mestre e discípulo deve ser baseada em reciprocidade e aceitação. O Mestre admoesta o discípulo quando se torna necessário e este acata a admoestação.

 

Características do Mestre

 

Mas voltando à pedagogia, o Mestre, para o ser já passou, por sua vez, por este percurso, que conhece intensa e profundamente e sabe como transmitir a sua arte e quando deve transmitir os segredos desta. Os métodos de ensinar a sua arte não lhe são estranhos. O tipo de pessoas que se quer formar também ele sabe. Não se vai é esforçar um pouco que seja para interessar o discípulo pela aprendizagem. O discípulo é que escolhe o mestre e não o contrário. O Mestre apenas o aceita ou rejeita. O problema não é o da pedagogia, mas sim como reconhecer um Mestre. Algumas características de um Mestre são:

– Tem autoridade para com os seus discípulos. Mas reverencia o seu próprio mestre.

– É claro na sua percepção e conhecimento.

– Constante e determinado no seu estudo.

– Livre dos desejos dos frutos das suas acções.

– Não troca de linha ou de mestre.

– O Mestre verdadeiro sempre se coloca depois do seu próprio mestre, em hierarquia e em mérito, nunca considerando que já evoluiu mais que o Mestre e por isso já o pode abandonar.

– Não contesta o seu próprio Mestre, nem emite juízos críticos ou desfavoráveis a seu respeito.

– E nunca perde oportunidade de referir o nome e o mérito do seu próprio Mestre.

Os shastra também indicam quais são as características do discípulo. O Kularnava Tantra, uma obra medieval, ensina que [7]:

 

“O Guru deve desistir de tomar como discípulo (….) o discípulo de outro; (….) o que instiga aos demais; (….) o que é dado a fazer o proibido e a omitir o que se lhe recomenda; o que divulga segredos; o que está sempre empenhado em buscar falhas nos outros; o que é ingrato; traiçoeiro; desleal ao seu Mestre; (….) o que está sempre querendo exigir; (….) o que decepciona a todos; o que é orgulhoso e que se crê o melhor de todos; o insincero; (….) de raciocínio incorrecto; que gosta de brigar; rebate aos demais sem razão; o indigno de confiança; que fala mal das pessoas por trás; o que fala como um brahmane conquanto não tenha esse conhecimento; plagiador; (…) condenado por todos; aquele que é duro; traidor ao seu Mestre; que se engana a si mesmo; (….) que incita a coisas falsas e malvadas; dado aos ciúmes; intoxicação (por drogas); egoísmo; de mente ciumenta, dura e colérica; instável; (….) criador de confusão; (….) sem (….) paz nem conduta correcta; que faz zombaria das palavras do seu Mestre; amaldiçoado por um guru. Estes são os que deve rejeitar.”

 

Assim as qualidades de um discípulo para que um Mestre o aceite devem ser as seguintes, ainda de acordo com o Kularnava Tantra [8]:

 

“O discípulo escolhido deve estar dotado de (….) boas qualidades. (….) Deve ser alguém digno de confiança; (….) não intoxicado (por drogas); (….) serviçal; (….) não dado a atacar os outros; (….) com aversão a ouvir louvores a si próprio, porém genial perante as críticas; (….) deve ser alguém que fale do guru; (….) sempre na proximidade ao guru; agradável ao guru; constantemente ocupado em seu serviço, com mente, palavras e corpo; que cumpre as ordens do Guru; que difunde as glórias do Guru; conhecedor da autoridade da palavra do Guru; (….) que segue as intenções do Guru; que actua como um servidor do Guru; sem orgulho de classe social, honra ou riqueza na presença do Guru; que não cobiça os bens do Guru.”

 

SAT GURU NYASA SÁDHANA

 

A relação entre Mestre e discípulo deverá ser tão intensa que deve permitir a ocorrência de nyása. Nyása  significa a identificação entre o sujeito cognoscente e o objecto cognoscível, o que implica a supressão do acto de conhecer. De modo geral significa a identificação do sádhaka com seres ou objectos, à sua escolha. Porém a prática de nyása com o Mestre leva o discípulo a evoluir mais e mais rapidamente. Mestre DeRose, o codificador mundial do Swásthya Yôga, ensina que [9]:

 

“NyásaNyása significa identificação. Consiste num exercício de origens tântricas que visa a produzir um fenómeno muito peculiar em que o praticante se identifica de tal maneira com o objecto da sua concentração que passa a possuir as características desse objecto. Terminado o nyása, as características cessam. Contudo, se o yôgin praticar sistematicamente nyása sobre um mesmo objecto, gradativamente suas qualidades vão sendo incorporadas pelo praticante. Assim, se o sádhaka pratica nyása com o seu Mestre, vai compreender melhor o ensinamento dele. Passa a incorporá-lo como seu. É possível executar nyása, não apenas com pessoas vivas ou mortas, mas também com objectos da Natureza, tais como uma flor ou uma pedra. E, ainda, com egrégoras e com seres mitológicos.”

 

O mesmo assegura Elíade, que relaciona nyása, a nível superior, com um maior grau de interiorização, e está a citar o Mahânirvânatantra, o nyása, a identificação, pode ser feita com “um simples acto de meditação”[10].

Havendo com o Mestre a relação que se tem proposto é possível conseguir-se uma prática muito intensa que se apelida de Sat Guru Nyása Sádhana. É uma prática fortíssima, que é recebida por via directa pelo discípulo, de dentro para fora. Consiste, num processo de maiêutica, dar à luz, desencadeado pela presença do Mestre. Esta prática desencadeia-se somente na presença do Sat Guru, isto é, do Mestre dos outros Mestres, da mesma linhagem. É um catalisador das energias do sádhaka[11], que passa a executar todas as técnicas do Yôga, muito melhor do que até aí e algumas que nem sequer conhecia, sem que o Sat Guru transmita qualquer ensinamento concreto. Também pode ser designada por Jada Kriyá  [12].

Esta prática é uma forma inferior de Kripá e não depende nem da gradação do ashtánga sádhana [13], nem de todas as suas variações, ou da opção de desenvolvimento horizontal ou vertical, nem em que nível desta se encontra o sádhaka. No dizer de Riviére, «basta la sencilla presencia del Guru para transformar al discípulo; la visión del maestro, unas palabras, son suficientes para despertar fuerzas latentes interiores» [14] do sádhaka. É uma prática de identificação com o Sat Guru, o mestre dos outros mestres, dentro da mesma tradição, que permitirá ao sádhaka evoluir só com a mera presença do Sat Guru, por identificação. Também Shivananda a refere, embora lhe dê outras designações. Este ilustre mestre hindu afirma que “El Gurú (….) no necessita enseñar nada. Incluso su mera presencia o compañia es elevadora, inspiradora y estimuladora del alma. Su misma compañía es autoiluminación. Un Gurú puede despertar a la kundaliní de un aspirante a través de la vista, del tacto, de la palabra o del mero Sankalpa (pensamiento).” [15] Desta citação se retira, claramente, entre outros aspectos, a confirmação de que a pedagogia não tem lugar. Em verdade, nas artes orientais o Mestre deve ensinar como e quando quiser. O discípulo é que se deve esforçar por aprender, mesmo que o Mestre nada ensine. Recordo-me sempre das palavras do nosso amigo Sensei José Patrão, ao afirmar que mesmo nas circunstâncias em que o Mestre não aja da forma mais nobre, devemos sempre lembrar-nos que do estrume também se faz um jardim lindíssimo. O que importa é que o mestre desenvolve em cada um dos seus discípulos, o modo como consegue transformá-los. Mestre Shivananda chama ao Sat Guru Nyása Sádhana de Shaktí Sanchara. Ou seja, “mediante Shakti Sanchara, la Kundaliní dispierta por la gracia del Gurú en el discípulo.”

Perante tal ligação de aprendizagem o modo de ensinar de nada interessa. Ao discípulo compete aprender, seja lá como for que o Mestre ensine. Desde que, de facto, seja um Mestre. É obvio que alguém que diz não seguir um mestre, que diz que nunca teve um Mestre, não pode ser, ele próprio Mestre. Nem aqueles que com ele aprendem as técnicas objectivas, devem vê-lo como tal, muito menos aceitar a sua interferência na sua vida, ou admitir excessos ou exageros, sob a capa de ser Mestre. Pois alguém que não tem um Mestre não o pode ser. Em tal situação devem relacionar-se apenas com um instrutor da arte, seja qual for o título que ostente ou a graduação que porte – é um instrutor não um Mestre.

Por último, e fazendo já a ponte para as artes do Budô, aqueles que mais criticam quem tem um mestre, que afirmam nunca o ter tido e de não seguirem nenhum, são os que mais sofrem de mestrofrenia, ou seja, a necessidade compulsiva de se afirmarem mestres e de serem reconhecidos, amplamente, como tal. Recusam-se a aceitar a autoridade de um mestre, mas querem agir como se a tivessem. Esta deve ser a doença das variantes desportivas das artes tradicionais.

 

As artes do Budô

 

Também no Budô a relação que se estabelece com o mestre pode ser entendida em paralelo com o que acima se expôs. Lembramo-nos que com Sensei Glyn Bannister, nosso mestre de Jûdô, as grandes lições que aprendemos foram-nos dadas fora do dôjô. Uma delas, quando decidimos participar num Estágio Internacional de Budô, em Inglaterra. O nosso mestre perguntou-nos se não me quereríamos propormo-nos a exame para 3.º dan e para o título de doshi. Respondemos-lhe que sim, desde que ele próprio considerasse ser chegado o momento. Solicitámos o syllabus e descobrimos, quando este veio, que a exigência técnica da instituição internacional em causa era bastante elevada. A ponto do nosso mestre nos ter dito ao telefone, a título de brincadeira, que se deveriam ter enganado e enviado o programa técnico para o exame para 10.º dan. Encontrámo-nos para analisarmos o programa e o meu mestre disse-nos que nos 3 meses que faltavam para o estágio nós teríamos que trabalhar muito. Perguntou-nos se ainda estaríamos dispostos? Respondemos: “Não sei Sensei. Acha que eu sou capaz?” Obtive como resposta o seu olhar desiludido. E disse-me: “Não vale a pena. Tu, no teu coração, já chumbaste este exame.” Foi uma grande lição. Uma lição fora do dôjô, sentados a beber um chá. Entendemos que tínhamos que nos atirar à tarefa com a certeza de a cumprir. Não com a atitude de quem vai tentar, mas de quem vai concretizar. E fizêmo-lo. Passamos o exame.

 

SHITEI

 

Shitei é a relação que se estabelece entre o Mestre e o discípulo nas artes do Budô. Shi significa o Mestre, tei o discípulo.

Um dos elementos fundamentais desta relação é o giri, ou seja, o dever. É a dívida que alguém tem, que está para lá da moral consciente, ou da dívida objectiva. O giri é a dedicação, a lealdade e a confiança inabalável que o discípulo (dêshi) deverá ter na escola que escolheu, na linhagem que segue, no mestre que o orienta, na via (). Tal relação está muito para além daquela que se estabelece entre o treinador, nas variantes desportivas das artes marciais japonesas, ou entre o instrutor ou o professor e o praticante. Giri é o sentido de obrigação e de dívida de honra que o discípulo tem para com o mestre [16].

Outro dos elementos determinantes do shitei é o jitoku [17], ou seja, o esforço, a reflexão e a procura pessoal, paralela ao ensinamento do mestre. Só o jitoku permite a compreensão do real sentido do que o mestre ensina, que está muito para além da mera execução técnica. Aprender desta forma permite dar vida ao que a tradição transmite.

É nas vertentes desportivas que os praticantes ficam pela mera cópia da técnica. Ao contrário do que gostam de apregoar. As vertentes desportivas das artes marciais, essas sim, não evoluem, antes involuem. Pegam na técnica objectiva, aplicam-lhe as metodologias do treino física, seleccionam-se para as provas através das pregas de gordura, como o fazia à mais de uma década um ilustre Karateka, licenciado em educação física. E depois chamam-lhe evolução e aplicam-lhe pedagogia. Determinam quais são os momentos em que deve haver picos na condição física, e devem coincidir com as datas das competições, pensa-se em modos de motivar os atletas, etc. E estamos a evoluir, dizem. Pedagogicamente falando, olhando para o que perdem das artes que praticam, mesmo só considerando as técnicas objectivas, na verdade, involuem.

Numa relação deste tipo costuma haver, paralelamente, uma linhagem externa, hoje em dia geralmente virada para o desporto, e uma linhagem interna, oculta, que não é conhecida nem referida, em cada uma das escolas do Budô. O aluno externo (soto dêshi) não é comparável com o discípulo interno – dêshi. Nestas linhagens muita vezes o discípulo é uchidêshi, ou seja, de grosso modo, um discípulo que vive com o mestre. Em todo o caso pode significar tão só o discípulo mais próximo do mestre, mas sempre por oposição ao discípulo externo.

Desde logo, aquele que chega 1.º dan não é um especialista, é verdadeiramente um principiante. Agora é que começou a caminhada.

A evolução da arte faz-se através dos níveis de Shu ha ri.

 

Shu Ha Ri

 

 

SHU

 

HA

 

RI

Para se perceber a relação entre o Mestre e o discípulo nas artes do Budô, voltamos a socorrer-nos dos conceitos Shu Ha Ri, que já foram tratados por nós numa conferência que proferimos e cujo texto se encontra publicado na Súrya online, do Centro de Artes Orientais. Reproduzimos em parte o que aí consta.

Shu ha ri são as três etapas de progressão tradicional nas artes marciais de acordo com a via de aprendizagem clássica (oshie [18]), concebidas também como caminho interno do praticante. Significa grosso modo, imitar, divergir, separar.

Através destas etapas um mestre leva o seu discípulo desta etapa até à condição de mestre.

 

SHU

 

                        Num dôjô tradicional, todos os que alcançam a graduação de dan, devem imitar os movimentos do Mestre que os ensina. Nem sequer se pode questionar, apenas imitar. A aprendizagem nesta fase implica um simples exercício de observação. E a partir dessa observação gestual, o praticante reprodu-la e assimila-a. É a assimilação da forma exterior da técnica. Esta etapa tem o nome de SHU. Esta palavra tem a sua origem em mamaru, que significa proteger, observar uma regra [19]. Na fase SHU pretende-se proteger a forma para a conservar. É a etapa onde se assimila fisicamente as bases fundamentais da arte. É a parte em que se estuda e memoriza a gestualidade da forma. A reprodução do modelo limita-se a uma reprodução física. O discípulo observa a arte do mestre, reproduzindo-a. Procura a reprodução que convém à sua própria constituição física. É o estudo pela imitação, decalcada do modelo exterior. Nesta fase o discípulo, que ainda não o é de forma confirmada ostenta o 1.º e o 2.º Dan.

 

 

SHU

 

HA

 

RI

[1] A prática implica sempre uma orientação segura, ministrada por um sensei, o que nasceu antes, palavra que também pode ser entendida como «aquele que indica a luz». Ora há sempre na relação Mestre-Discípulo uma transmissão para a luz. Contudo a relação com o Mestre possibilita que, cada um, no seu caminho, se projecte sobre si próprio descobrindo no seu interior o seu próprio mestre – o Eu. Ou seja «cada um tem em si o seu Mestre, cada um é guru de si próprio», vide p. 250, Henriques, António Renato, Yoga e consciência. 2.ª ed., Ed. Rígel, 1990: Porto Alegre (Brasil), pgs. 281. Dito de outro modo, «l’essence de tout art martial est de nous donner le moyen de voir clair en nous-même, de rester simple et sincère», Habersetzer, Le Guide Marabout du Karaté, pg. 51.

[2] Mestre DeRose, Yôga. Mitos e Verdades, p. 164.

[3] Riviére, El Yôga Tantrico, pg. 34.

[4] Micea Eliade, Pátañjali e o Yôga, ed. Relógio d’pg. 186.

[5] Lee Sannella, A experiência da Kundaliní, pg. 24

[6] Mestre DeRose, op. cit., pg. 164.

[7] Kularnava Tantra, Rito das cinco coisas proibidas, tradução para o inglês, e organização de M. P. Pandit, com introdução de Arthur Avalon, 1.ª ed. Em espanhol, Madrid, 1980, pg. 93-94.

[8] Idem, pg. 94-95.

[9] DeRose, Faça Yôga Antes Que Você Precise (Svásthya Yôga Shastra), Ed. Uni-Yôga, pg. 79 e 80.

[10] Elíade, El Yôga. Inmortalidade Y Libertad, Ed. Fondo de Cultura Economica, pg. 109.

[11] Praticante, adepto do sádhana, ou seja, da filosofia que escolheu.

[12] Shivánanda, Kundaliní Yôga, pág. 88.

[13] O Yôga antigo, denominado de Swásthya Yôga após a codificação, tem uma estrutura de prática organizada em oito módulos (ashtánga sádhana), que são os seguintes:

1) mudrá gesto reflexológico feito com as mãos
2) pújá retribuição ética de energia.
3) mantra vocalização de sons e ultra-sons.
4) pránáyáma expansão da bio energia através de exercícios respiratórios.
5) kriyá actividade de purificação de mucosas
6) ásana atitude corporal ou posição psicofísica.
7) yôganidrá técnica de relaxação
8) samyama Técnicas de concentração, meditação e outras práticas mais adiantadas.

 

[14] In El Yôga Tantrico, pág. 122.

[15] Shivananda, Kundaliní Yôga, Ed. Kier, pg. 83-84.

[16] Kim, Sun-Jin et al., Tuttle dictionary of the Martial Arts of Korea, China & Japan, pg. 96.

[17] Ji significa “o eu”, o “próprio ser”; “pessoal”; toku significa “ganho”, “vantagem”.

[18] Significa ensinamento. O mestre transmite a essência da escola, para além da simples perfeição técnica. Não há verdadeira arte marcial se o ensinamento se limita à técnica. Mas só um verdadeiro sensei consegue transmitir mais do que a técnica.

[19] Mazac, “L’evolution de as propre progression par l’étude du kata”, Bulletin de l’Académie de Judo Michigami.

[20] Stobbaerts, aiki do, a procura da unidade, pg. 83.

[21] Mazac, idem.

[22] Schultz, Lucas, La Sagesse du guerrier. Écoutez sa voix, vote guide sur le chemin de vie, pg. 91.

(C) Copyright, João Camacho, Yôgachárya

Pránáyáma nos Shastra. Alguns apontamentos.

Este artigo resulta de um workshop que ministramos num fim-de-semana de Yoga, de que fomos co-organizadores, com o patrocínio da União Nacional de Yoga. Não tivemos tempo de fazer uma revisão do texto que agora apresentamos ao vosso juízo crítico. Também não pretendemos esgotar este tema. Em primeiro lugar PRÁNÁYAMA NOS SHASTRA. ALGUNS APONTAMENTOS porque não é nem pretendia ser uma recolha exaustiva das técnicas respiratórias nos shastra. Shastra são as palavras de autoridade, as escrituras sagradas escritas em devanagarí, ou seja, na língua dada pelos deuses – o sânscrito. Entre outros: os Upanishad, muitos deles escritos em cerca de 1000 a. C.; o Bhaghavad Guitá, escrito em cerca de 400 a. C.; o Yoga Sútra, cerca de 300 a. C. e alguns Samhita, cujas datas variam desde a mais remota antiguidade até quase aos nossos dias. É de dizer que, entre outros, o significado de samhita é o de  livro.

Neste workshop eu distribuí, a cada um dos participantes, uma tradução que fiz de uma homenagem ao Sopro constante no Atharvaveda. O texto que eu traduzi estava em francês. Uma tradução feita a partir do sânscrito, numa edição patrocinada pela UNESCO. Não a reproduzo neste artigo[[1].

Os Veda são, talvez, os mais antigos textos escritos da história da humanidade. O Atharvaveda é um dos quatro livros que compõem os Veda[2].

Os estudiosos do Yoga, verificarão que algumas das descrições dos pránáyama são muito diferentes daquelas que se encontram em muitos livros de Yoga escritos no séc. XX. Poderão constatar tal facto, em especial, no que se refere Bhramari e a Murcha. No que se refere a muitos exercícios respiratórios, os estudiosos que os experimentarem, constatarão que a sua aparente simplicidade, encerra em si o valor da ancestralidade e que são práticas fortíssimas, cujos efeitos serão rapidamente perceptíveis.

Ainda neste workshop distribuímos um quadro, com a correlação das principais 21 nádí e o que sobre elas é afirmado em sete dos Upanishad. É de referir que o número de nádí é superior a 300 000. É um quadro adaptado a partir de um elaborado por Motoyama[3].

Então, agora segue-se, propriamente, o texto utilizado como guia no workshop:

Trishiki Brahmana Upanishada

Descreve a posição, o mudrá, o trataka e a atitude mental que devemos adoptar para iniciar a prática de pránáyama. Pelo que, para início do workshop vamos saber o que diz:

Assume oásana, mantém o teu corpo direito, mente desperta, os olhos fixos na ponta do nariz, os dentes não se tocando, a língua colada ao palato, o espírito livre, sem a menor agitação, a testa ligeiramente inclinada, as mãos em mudrá, e poderás praticar o pránáyama de acordo com as regras prescritas.

Nalguns Upanishad o prána é chamado de

Jyeshtha  o mais antigo

Sreshtha  o melhor

Também nos dizem quais são os períodos óptimos para praticar o pránáyama. Este deve ter início no Vasanta Ritu (Primavera  Março/Abril) ou no Sarad Ritu (Outono  Setembro/Outubro)  Nestes períodos o sucesso é garantido.         Ritu é uma estação de dois meses.

O

Prasna Upanishada

Refere existência dos cinco váyu:

1 –Prána, o poder da vida, governa os outros poderes vivos do corpo”.

2 – Apana dirige as regiões inferiores.”

3 – Samana dirige as regiões médias e distribui a dádiva do alimento que
dá a vida.”

4 – “Em todos estes milhões de pequenos canais move-se o poder de
Vyana.”

5 – “O poder vivo (….) o fogo é Udana.”

O

Amrtabindu Upanishad

Dá-nos a definição do que sejam o púraka, o rechaka e o kumbhaka.

Púraka:

“Como se aspira a água pelo caule dum lótus, assim se deverá aspirar o ar. Tais são as características da inspiração (púraka).Rechaka:

“Rejeitar no espaço exterior o ar que não é assimilado pelo corpo e manter os pulmões vazios de ar, tais são as características da expiração (rechaka).Kumbhaka:

“Ficar imóvel sem inspirar nem expirar e sem movimentar nenhuma parte do corpo, tais são as características do cálice.”

Para a prática do pránáyama é necessário ter presente alguns conceitos. Estes encontram-se sistematizados no Yoga Sútra de Pátañjali. Nesta obra quase não é abordado o váyu sádhana. Pois o autor entenderia que esta se aprende de um Mestre e não por livro. Mas os conceitos estão lá sistematizados. E são:

Yoga Sútra

II  49 a 53

Báhya  externa

Abhyantara  interna

Stambha  retida ou da paragem imediata.

Kála  Tempo

Sámkhya  número

Matra  unidade de tempo

Dírgha  longa

Sukshma  duração

A sua explicação encontra-se no nosso curso de pránáyama, que está escrito e que ministramos no IV Congresso Nacional de Yoga, pelo que não nos ocuparemos agora, de modo mais extenso, destes conceitos.

Assentes estes aspectos vamos começar a descobrir como surgem nos shastra os exercícios de expansão do prána.

No

Svetasvatara Upanishad

O pránáyama é descrito da seguinte forma:

“E com o corpo firme e em silêncio, respira ritmicamente pelas narinas, com uma calma subida e descida da respiração”No

Ishwara Guitá

Surge referido do seguinte modo:

O aspirante retém a respiração e repete o Gayatri três vezes junto com cada Vyahritis, no começo os Siras e o Pránava no fim, isto é o que se chama o controlo da respiração.No

Bhaghavad Guitá

O pránáyama é descrito da seguinte forma:

IV-29

Há os que, concentrados na respiração

após tê-la retido, sacrificam

o ar expirado na inspiração

e, na expiração, o inspirado ar.

A inspiração é vista como um abandono, uma dissolução. A expiração, ao contrário deverá ser sentida como uma elevação, uma irradiação, cada vez mais intensa. A respiração surge aqui como uma prática de tapas.V-27

Rejeitando os contactos lá de fora

com a visão fixa entre as sobrancelhas,

tornando iguais, ao respirar, os movimentos

do ar, tal como passam pelas narinas

Este pránáyama surge no Guitá como um ritual de interiorização. Quase como uma forma de meditação. Vamos experimentar. Simplesmente inspirar e expirar. Totalmente absorvidos no vayu sádhana. É acompanhado de bruhmádya dhristi.No

Amrtabindu Upanishad

Não aparece com nenhuma designação. Apenas pretende a saturação pránica do corpo e o despertar da kundaliní. Refere que a inspiração deve permitir acumular a força-fogo, a energia ígnea – TEJAS.Descrição:

a) Inspiração – Visualiza uma corrente de luz viva, cada vez mais intensa, saturada, dirigindo-a ao centro do coração, à partícula vital que representa o eu de cada um, que aí se encontra como uma chama, que se torna gradualmente mais intensa e forte, sob a acção da respiração.

b) Expiração – Expira no mesmo tempo que levou a inspirar, sempre concentrado na chama no centro do coração.

Ghêranda-Samhita

O Ghêranda-Samhita propõe os seguintes tipos de pránáyama:

1 – Sahita (o combinado)

Refere-se ao kumbhaka. Sahita é a combinação entre antara kumbhaka [interno] que é a retenção após uma inspiração e bahya kumbhaka ou shunyaka [externo] que é a retenção após uma expiração completa.2 -Surya-bheda (penetrando o Sol)

Também é descrito no Yoga Kundaliní Upanishad, do seguinte modo:

“Inale lentamente o alento desde fora, pela narina positiva, o mais profundo possível. Faça jalandhara. Retenha o mais longo possível, até que a transpiração surja na raiz dos cabelos [só para os adiantados]. Em seguida expire-se lentamente.”

Mãos em gñana mudrá. Obstruir a narina negativa. Inspirar pela positiva – visualizar a energia solar, de cor amarela, a entrar pela narina. Reter o alento com jalandhara e jhiva bandha. A retenção é tão longa quanto possível. Desfaz o jalandhara e jhiva bandha  e enquanto expira executa uddiyana e mula bandha.

Chandrabheda pránáyama  (penetrando a Lua)

Não faz parte do Gheranda Samhita, é descrito no Yoga Chudamani Upanishada. Apresentamo-lo fora de ordem pela sua relação evidente e de sentido contrário, com o súrya bheda.

A inspiração realiza-se pela narina negativa e a expiração pela narina positiva. A inspiração atravessa a ída nádí e a expiração a píngala nádí. Visualiza-se, na inspiração a absorção de energia azul prateada. A retenção é tão longa quanto possível. Desfaz o jalandhara e jhiva bandha  e enquanto expira executa uddiyana e mula bandha.

3 – Ujjayi (o vitorioso)

Também é descrito no Yoga Kundaliní Upanishad e no Hatha Yoga Pradipika. Neste último shastra o ujjayi é descrito da seguinte forma:

“Cerrando a boca, inspirar pelas narinas, produzindo um ruído, até que o ar preencha o espaço compreendido entre a garganta e o coração (….) Efectuar o kumbhaka com bandha e exalar através de ída.”

Som sibilante, O atrito do ar na glote produz um som sibilante uniforme, quase imperceptível. É o resultado do atrito do ar contra a glote meio fechada. A inspiração é profunda e total. Até não caber mais ar nos pulmões.

Em seguida e com um jalandhara poderoso, com uma contracção intensa dos músculos do pescoço e com mula bandha, executa-se mula bandha. No final e imediatamente antes de terminar a retenção ainda acrescenta, até aos momentos finais, uddiyana bandha.

Provém a expiração, que se faz sempre pela narina negativa.

Desenvolve flexibilidade se executado durante a prática de ásana.

Inspirar pelas narinas contraindo a glote, produzindo um ruído como o ressonar suave – a pessoa do lado não ouve. Retém o ar com a glote fechada, com jalandhara bandha. Expirar pela narina negativa.4 – Shitali (o serenidade)

Também é descrito no Yoga Kundaliní Upanishad.

Colocar a língua em forma de calha entre os dentes semicerrados. Realizar a inspiração pela boca. Reter o ar. Expirar pelas narinas.5 – Bhástrika (o pulmonar)

6 – Bhramari (o semelhante à abelha)

Inspiração até não caber mais ar nos pulmões, tal como no ujjayi. Retenção prolongada. Os dedos polegares tapam os ouvidos. O ruído semelhante à abelha, não resulta da respiração, mas sim da percepção do som interno.

“Tape os ouvidos com os polegares. Inale por ambas as fossas, retenha o alento tanto quanto seja possível e então exale por ambas as fossas. Isto deverá ser praticado em lugar solitário, pela noite, quando não haja perturbação nenhuma. Assim poderá sentir os sons introspectivos (anahata) e o praticante experimentará gozo ilimitado e indescritível.”

7 – Murcha (o desmaio)

Padmásana. Inspirar como no ujjayi. Reter o ar por muito tempo com jalandhara. A retenção deve ser feita quase até ao desmaio. Após, expirar muito lentamente.8 – Nádi shodhana pránáyama

Este pránáyama é descrito no Hatha Yoga Pradipika, no Shiva Samhita, no e no Yoga Chudamani Upanishada.

Obstruir a narina direita. Inspirar pela narina esquerda. Reter o ar nos pulmões o maior tempo possível. Trocar de narina com os pulmões cheios e expirar pela outra narina.

9 – Kêvali (o completo)

O alento deve ser retido em qualquer fase da respiração. Isto é qualquer momento é bom sem Ter havido prévia inspiração ou expiração afim de preparar a retenção seguinte. A retenção deve manter-se por todo o tempo possível. Aqueles que alcançarem samádhi, experimentaram kevala automaticamente.

Quadro elaborado a partir de Motoyama

Interpretação do fluxo das nádí.

Nádí Jabala Darshana Upanishad Yoga Chudamani Upanishad Yoga-shikka Upanishad Gorakshashatakam Siddhasidhantapa-
dhahati
Shandilya Upanishad ShatChakra Nirupana
01. Sushumna Sobe pela coluna vertebral até ao cimo da cabeça No meio. No meio, brahmanádí. No meio. Sobe pelo palato até ao brahmarandra. Sobe por trás do anus até à cabeça e termina no brahmarandra. Desde o centro do kanda subindo até à cabeça.
02. Ida À esquerda do sushumna, a sua abertura é acima do brahmarandhra; termina na narina negativa. À esquerda. À esquerda do sushumna, desde o “círculo do umbigo”, contornado a base do mesmo até se juntar ao vilamba. À esquerda. Termina nas narinas. Do lado esquerdo de sushumna. Do lado esquerdo de sushumna.
03. Píngala À direita do sushumna. Sua abertura é acima do brahmarandhra. À direita. À direita do sushumna, desde o “círculo do umbigo”, contornado a base do mesmo até se juntar ao vilamba. À direita. Termina nas narinas. Do lado direito do sushumna, sobe até à narina direita. Do direito esquerdo de sushumna.
04. Gandhari Atrás do ída, passa por um dos lados e termina no olho esquerdo. O olho esquerdo. Desde o “círculo do umbigo” até ao olho. Termina no olho esquerdo. Termina nas duas orelhas. Parte detrás de ída e termina no olho esquerdo. __
05. Hastijihva Atrás do ída, passa por um dos lados e termina na ponta do dedo grande do pé negativo. O olho direito. Desde o “círculo do umbigo” até ao olho. Termina no olho direito. Termina nas duas orelhas. __ __
06. Pusha Passa atrás do píngala, sobe por um dos seus lados até ao olho positivo. A orelha direita. Desde o “círculo do umbigo” até à orelha.. Na orelha direita. Termina nos dois olhos. Passa atrás de píngala. __
07. Yashasvini Ao lado de píngala, entre o pusha e a sarasvati, terminando no dedo grande do pé esquerdo. A orelha esquerda. __ Na orelha esquerda. __ Entre a gandhari e sarasvati , terminando na orelha direita e nas pontas dos dedos dos pés. __
08. Alambusha Em kandasthana e ao redor do anus. A boca. Desde o “círculo do umbigo” até à orelha. Termina na boca. __ Sobe e desce e pelas tonsilas, a partir da base do anus. __
09. Kuhu Desce ao longo de  sushumna, faz uma curva de 90º antes do término do sushumna e do raka, até terminar no lado direito do nariz. Os órgãos genitais. Desce a partir do umbigo para descarregar impurezas. Termina no pénis. No anus. Ao lado do sushumna, descendo até ao final do pénis. __
10. Shankini Entre a gandhari e a sarasvatí, terminando na orelha  esquerda. Muladhara. Na garganta, conduz energia para a cabeça. No anus, ou seja, no muladhara. No final do pénis. Sobe até à orelha direita. Abaixo do sáhasrara, apoia o sushumna em seu pecíolo, acima do pescoço.
11. Sarasvati Sobe ao lado de sushumna. __ Termina na ponta da língua. __ Na boca Atrás do sushumna até  à ponta da língua. __
12. Varuni Entre o yashasvini e o kuhu. __ Desce a partir do umbigo para levar excrementos. __ __ Entre o yashasvini e o kuhu, atingindo todas as partes da kundaliní, acima e abaixo dela. __
13. Payasvini Termina na orelha direita. __ __ __ __ Entre o pusha e a sarasvati. __
14. Shura __ __ Parte do “círculo do umbigo” até o ponto entre as sobrancelhas (trikuta). __ __ __ __
15. Visvodari Entre o kuhu e o hastijihva, localizado dentro do kandasthana. __ Sai do umbigo; conduz quatro tipos de energia. __ __ __ __
16. Saumya __ __ __ __ __ Atinge diversas pon-
tas dos dedos dos pés.
__
17. Vajra __ __ __ __ __ __ No interior de sushumna.
18. Chitrini __ __ __ __ __ __ No interior de vajra.
19. Raka __ __ Absorve a água instantaneamente; produz espirros; recolhe a fleuma para a garganta. __ __ __ __
20. Citra __ __ Desce a partir do umbigo para descarregar sémen. __ __ __ __
21. Jihva Circula para cima __ __ __ __ __ __

MOTOYAMA, Hiroshi, Teoria dos Chakra. Ponte para a Consciência Superior, 3ª edição, Ed. Pensamento, pgs. 127 e 128

JOÃO CAMACHO

Yogachárya Docente formado pela Uni-Yoga – União Nacional de Yoga de Portugal

2º Dan de Judo – Presidente do Yudanshakai da Associação de Judo Tradicional de Portugal

(C)Copyright, João Camacho, 1999-2000

 

[1] Hymnes Spéculatifs du Véda, traduits du sanskrit et annotés par Louis Renou, col. Connaissance de l’Orient – collection Unesco d’oeuvres représentatives: série indienne, Ed. Gallimard/Unesco, 1985.

[2]Os outros são Rig-veda, Yajur-veda e o Sama-veda.

[3] MOTOYAMA, Hiroshi, Teoria dos Chakra. Ponte para a Consciência Superior, 3ª edição, Ed. Pensamento, pgs. 127 e 128.

Os dravidianos

Um povo novo, de pele morena e cabelos lisos, que fala uma língua aglutinante, aparece na Índia, entre os povos munda, durante o neolítico. Esse povo e a sua religião, o shivaísmo, iriam representar um papel fundamental na história da humanidade. A origem desse povo, que denominamos dravidiano (do prakrit damila: tâmul), é obscura. Segundo a tradição, teria vindo de um continente, tragado pelo mar, situado ao sudoeste da Índia. Esse mito faz pensar no mito de Atlântida. Não é impossível que outras ramificações do mesmo povo tenham chegado a África e ao Mediterrâneo; daí a dificukdade em atribuir, com certeza um lugar de origem à revelação shivaísta ou dionisíaca.

“O povo que criou e desenvolveu a primeira civilização greco-oriental, cujo principal centro foi a ilha de Minos, apesar de suas relações com a Mesopotâmia e o Egipto, parece não ter sido nem ‘grego’, nem semítico, nem indo-europeu… É possível supor… uma disseminação do povo em questão através de toda a Grécia… há na língua grega um substracto de palavras de origem estrangeira… que devem ter sobrevivido através dos tempos, apesar da ocupação do país por diversos invasores… Discute-se ainda sobre a origem, se anatoliana, se pelasga, e assim proto-indo-européia… A língua formada desse modo foi falada na Egeia, em toda a Grécia e no sudoeste da Anatólia” (Charles Picard, Les religions préhelléniques, pp. 53-54).

A língua e a cultura dravidianas, que ainda hoje são as das populações do sul da Índia, parecem ter estendido a sua infkuência, da Índia ao Mediterrâneo, antes das invasões arianas. Foi essa civilização, cujos vestígios linguísticos, tais como o georgiano, o basco, o peul, o gancho, os dialectos do Beluchistão, ainda existem nas regiões periféricas, que serviu como veículo ao antigo shivaísmo. Parece que o sumério, o pelasgo, o etrusco, o lídio, assim como o eteocretense, pertenceram à mesma família linguística. As relações do sumério, do georgiano e do tâmil não deixam nenhuma dúvida. Por outro lado, a língua basca (eskuara) e o georgiano têm a mesma estrutura e, ainda hoje, possuem mais de trezentas e sessenta palavras em comum. As danças e os cantos bascos são, aliás, aparentados com os dos iberos do Cáucaso. Heródoto (Histórias, I, 57) fala da língua bárbara que era utilizada pelos Pelasgos que, em sua época, teriam vivido no sul da Itália e no Helesponto. Ele acreditava que a língua pelásgica estivesse estreitamente ligada ao etrusco e ao lídio. São Paulo, que naufragou em Malta em 69 d. C., menciona a língua “bárbara” (não ariana) que ainda era falada ali. “O lugar de origem dos Pelasgos situava-se além do mar Negro. Teriam vindo a Creta por volta do começo do segundo milénio a. C. O nome do lugar onde residiam, Larisa, comprova-o.” (R. F. Willets, Cretan Cults and Festivals, p. 133).

Segundo Jacques Heurgon (La vie quotidienne chez les étrusques, pp. 14-15): “Os etruscos não seriam recém-chegados na Itália, mas os primeiros ocupantes de uma terra, cuja soberania as invasões indo-europeias haviam arrebatado, sem eliminá-los completamente… Eram descendentes irredutíveis da idade do bronze… As relações entre o etrusco e o caucásio, o lício, a fala de Lemmos, [indicam a existência] de uma língua etrusca asianica, usada antes na Itália, na península balcânica, no mar Egeu e na Ásia Menor [e repelida] pela pressão linguísystica dos invasores.”

A linguística eteocretense falada pelos habitantes de Praisos, em Creta, até ao século III a, C., era, portanto, um vestígio da língua original falada na Grécia, em Creta e nas ilhas, assim como no sudoeste da Ásia Menor antes dos gregos. Inscrições de Parisos em caracteres gregos ainda não foram decifradas.” (R. F. Willetts, Cretan Cults and Festivals, p. 136) Aparentemente essa era uma língua dravidiana. Ao que parece, os linguistas modernos não pensaram em utilizar as línguas aglutinantes dravidianas, ainda vivas no sul da índia, como base de suas pesqeuisas sobre as linguagens antigaos do mundo mediterrânico.

O mito da origem ariana das civilizações, que René Guénon denominava “a ilusão clássica”, está longe de ser esquecido. As línguas dravidianas têm uma origem comum com as línguas fino-ugrianas (baltofinês, húngaro, volgáico, uralianao, samoiedo) e altaicas (turco, mongol, esquimó), mas parece que a divisão dessa grande família linguística e do grupo dra´vido-mediterrãn icao, durante o paleolítico, é muito anterior á formulação do shivaísmo tal como o conhecemos.

No Médio Oriente e em todo o mundo mediterrânico, estamos, na realidade, em presença de uma importnte civilização de origem asiática ou pelo menos ligada linguisticamente à Ásia antes das invasões arianas. Por outro lado, os monumentos megalíticos, os mitos e as tradições religiosas comuns á Índia e ao Mediterrâneo indicam que essa civilizção era provavelmente o veículo do shivaísmo.

Desde o quarto milénio, “o mito de Anat pode ser classificado entre os elementos comuns da velha civilizção agrícola que se estendia do mediterrâneo oriental até à planície gangética.”. (M. Eliade, Historie dês croyances et d~es idées religieuses, p. 169)

Após o último glaciar, as grandes migrações culturais, que vão da Índia a Portugal, começaram, num clima finalmente amis ameno, durante o quinto milénio, mas é apenas a partir do terceiro milénio, que encontramos vestígios, a nível civilização avançada, de culturas que levam a marca inegável do pensamenteo, dos mitos, dos símbolos shivaístas e que são todas aproximadamente contemporâneas, quer se trate das cidades do Indo, da Suméria, de Creta ou de Malta. À mesma cultura pertencem os satuários megalíticos que se encontram por toda a parte, da Índia ao Extremo Ocidente, mas, as vezes, são os únicos vestígios que sobreviveram dessa prestigiosa civilização, como é o caso em Armórica e nas Ilhas Britânicas. O facto de que os principais vestígios arqueológicos sejam contemporâneos, mas a níveis técnicos aparentementw difrentes, não exclui a presença de uma civilização elevada. Sua preservação depende unicamente do emprego de certos materiais e de condições climáticas ou, às vezes, da destruição total de certos sítios pelos invasores ou pelas catástrofes naturais, tais como as explosões de Santorin ou do Vesúvio.)

Alain Daniélou, Shiva e Dionísio, pp. 14-16.

O Último Samurai

Meus queridos

 

Na reunião do departamento de Yôgacine do próximo sábado, dia 15 de Setembro de 2007, iremos ver o filme O Último Samurai.

 

Nalguns dos “apontamentos” que ao longo deste ano fui produzindo para vós, referi várias vezes a relação mestre/discípulo e o que de honra, de tradição, de lealdade de fidelidade havia em tal. Alertei-vos também para o facto de o artístico estar tantas vezes a um passo do intuicional. Por isso mantemos este departamento. Referi-vos a morte e também, a vontade necessária a desenvolver uma vontade poderosa, capaz de por termo à vida, que no tantrismo se chama de iccha mrityu.

 

Vou deixar-vos algumas notas, que vos guiem no visionamento do filme:

 

A civilização hindu é tida pelos estudiosos da filosofia ao longo da história da humanidade, como a civilização da consciência, da meditação e da interioridade. A civilização que concebe o conceito de dárshana – visão, ponto de vista. A mera visão do mestre pode ser um instante de grande evolução do discípulo. A mulher tântrica que, num momento, concede a um homem, a um dado homem, um dárshana do seu corpo, ou de uma parte deste, permite-lhe essa visão, concede-lhe essa graça, como se de uma deusa se tratasse. E na verdade é-o nesse instante. Esse homem deve ficar-lhe grato para sempre – claro que para o entender tem de ser também um homem tântrico. Esse instante é também absolutamente inspirador para esse homem. Consiste para ele numa verdadeira bênção, com toda a carga emotiva que queiram associar a tal conceito – bênção. Mas é disso mesmo que se trata. E, pode ser também, um momento que o impulsiona para outro estágio evolutivo.

 

Dárshana, significa, também, clarividência. Significa que estamos despertos, não só ao ritmo a que os objectos nos surgem aos sentidos, mas também com uma consciência activa, lúcida e sabedora de que os sentidos, só por si, nos limitam. Logo é necessário ir além deles. Os objectos que nos vão surgindo aos sentidos, são a base de reflexões futuras. O ver, a visão, proporcionada pelo dárshana é um ver teleológico, ou seja, um ver que tem uma finalidade, orienta-se para um fim. é um ver para a luz, para a luz que ainda não alcançámos, mas procuramos.

 

Nesta civilização, começou a entender-se que o homem sábio, era um homem de bem. Ora o homem para ser de bem, chega lá através da virtude e da harmonia dos ritos. E essa virtude não é a moral como a entendemos. É a virtude de fazer corresponder as palavras às coisas. Quando isso acontece a ordem e os ritos estão assegurados. Por isso o sábio não fala do que não sabe. Por isso também não responde quando a pergunta está mal formulada. Em consequência, têm-se que o governante deve acima de tudo, corrigir os nomes das coisas. Se os nomes não forem correctos, o discurso não é coerente. Assim o homem de bem é aquele que só fala quando tem conhecimento do que fala.

 

Estas razões levam-nos a uma perspectiva ontológica na qual temos de concluir que se sábio é o homem que faz corresponder as palavras, os nomes, às coisas, então, a via (marga), o caminho (yana), é o próprio homem que o percorre. É o homem que alarga a via. Podemos dizer até que o homem é a própria via. Um dia, a propósito de outro assunto, numa conversa unilateral com um de vós, este disse-me que eu tinha ansiedade de percorrer o caminho, de alcançar a meta. Respondi-lhe que o caminho, esse faz-se caminhando. A meta alcança-se chegando. E isso nunca se deve perder de vista. Não há caminho para além daquele que cada um de nós percorre. De que vale o caminho, ainda que o mestre o indique se o discípulo não o percorre?

 

Isto é assim, pois a palavra, mesmo a dita pelo Mestre não pode traduzir exactamente o que é o real, nem o que é o caminho. Como Demócrito (outro filósofo grego) ensinou, “as palavras são a sombra da realidade”.

 

Ora o homem de bem, o homem sábio é aquele que procura viver em harmonia com cada instante, mesmo na busca da auto superação. Mesmo nos momentos menos bons. Porque já não vive as emoções, não porque não as quer. Não porque as rejeitou, mas sim porque são as emoções que vivem nele. São emoções perfeitas, belas, que passam por ele. E não ele que passa por elas. O homem de bem tem emoções perfeitas. Se ama, fá-lo verdadeiramente, assim como odeia, com ódio. Antes de mais o sábio age porque tem de agir, sem consciência de que é sábio. Age com a inocência da criança. Por isso o convívio com a criança é tão difícil como é com o sábio, para aqueles que procuram a ilusão. Pois ambos apontam o que têm a apontar, mesmo quando não gostamos. É a história de só a criança disse: “o rei vai nú.”.

 

Porém, não obstante, sempre houve, da parte da civilização hindu, uma procura de compreender e explicar o real. Sempre houve o desenvolvimento de uma filosofia da linguagem que procura compreender, procura explicar e analisar o real e as suas categorias.

 

A civilização hindu, gradualmente acabou por se desenvolver como uma civilização ética. Tal atitude já está patente no Rig Vêdá e nas Upanishad.

 

Mas, na verdade, a ética é profundamente desenvolvida no Bhágavad Guitá.

 

Esta obra tem como estruturas básicas da ética, o karma, a transmigração das almas e a hierarquia do real.

 

Sem avançar muito por estes temas, expressa-se no Bhagavad Guitá o valor da iniciação, sendo que sábio é o que nasceu duas vezes. Uma aquando do nascimento biológico, outra aquando do encontro consigo próprio.

 

Esta obra justifica o caminho guerreiro como um meio de evolução pessoal do guerreiro e como fonte de aprendizagem. Claro que se refere à guerra em que o confronto se faz cara a cara. Vê-se o adversário antes de o matar.

 

Nesta obra, Arjuna, fraqueja perante a ideia de ir matar, no exército inimigo, tanto familiares, como gurus. Perante tal ideia Arjuna prefere sofrer a injustiça do que cometê-la. Krishna interpela-o e trata-o, trata os guerreiros, como sábios que devem cumprir o dharma, o dever, e devem, imperturbavelmente destruir o corpo se necessário for.

 

Desenvolve-se uma filosofia ética, baseada na atitude sábia do guerreiro perante a guerra.

 

Veremos essa atitude a desenrolar-se perante os nossos olhos no filme a que assistiremos. Tanto do guerreiro ocidental, como dos guerreiros japoneses. Veremos como o guerreiro ocidental se encontra perdido pelos seus actos em guerra e como os japoneses não, exactamente pela dimensão ética do sábio guerreiro.

 

Veremos a lealdade até à morte, do samurai Katsumoto, perante o imperador. Veremos a honra com que os samurais lutam e são leais.

 

No Japão desenvolveu-se, até ao rito, a ética guerreira que já se encontra sistematizada no Bhagavad Guitá.

 

Verificaremos o valor de abhyása, a prática diligente, como modo de estar perante a vida. É o valor da acção disciplinada – dharma.

 

Deixo-vos parte de um texto que escrevi acerca deste filme, numa conversa unilateral:

 

“A busca tenho de a fazer sozinho, como tantas coisas na vida tenho feito, como lobo solitário. Pois tantas vezes me interrogo: terei coragem? Serei ousado? Não uma coragem perante testemunhas, uma coragem fácil, mas sim uma coragem de solitário ou de águia, que não tem ninguém por testemunha. Aquele que tem coragem, ainda a propósito do medo da morte, é o que conhece o medo, mas domina-o; é o que vê o abismo, mas consegue lançar-se neste, com a esperança de voar, ou a certeza de cair. Aquele que olha o abismo com olhar de águia, mas que lida com ele com garras de águia, sem testemunhas, esse tem coragem. Tê-la-ei eu? Ponho-me à prova uma e outra vez.

Sobre a morte, refiro um dos meus filmes preferidos – O Último Samurai. Neste filme, e refiro-o de memória, já num dos últimos capítulos, uma das crianças com que o oficial americano, agora já samurai, vive, interroga-o sobre se este irá lutar contra o exército que aí vem atacá-los. O americano responde que sim, “porque eles virão para destruir o que aprendi a amar”. Esta é uma motivação tão intensa, tão elevada, tão sentida, que não há como não nos sentirmos identificados. Qual de nós não lutaria por aquilo que aprendeu a amar? Eu faço-o.

Mas na continuação da conversa, a criança diz ao samurai americano, “eu teria medo de morrer em batalha”. O americano responde-lhe “eu também”. E a criança estranha tal resposta, vinda de um guerreiro de mil batalhas e diz-lhe, “mas já travaste tantas batalhas”. O samurai diz-lhe “e tive sempre, sempre medo”. E este tem coragem, pois conquista o medo.

No fim do filme, quando o chefe do clã, Katsumoto, já ferido, quer morrer, o americano tenta dissuadi-lo, e aquele responde-lhe “recuperaste a tua honra, deixa-me morrer com a minha.” E no instante em que avança para a espada do americano e é por esta trespassado, olha as cerejeiras, que varridas pelo vento, deixam cair as suas flores, a que o samurai se quer assemelhar com a pureza com que deixa cair a sua vida.

Neste, filme, num primeiro confronto entre o jovem exército japonês e o clã de Katsumoto, o americano luta como o tigre, aliás, expresso no estandarte da lança com que luta. O espírito do guerreiro, que não desiste da luta, ainda que a morte seja a consequência mais provável.

Em momentos anteriores deste filme, quando o americano está prisioneiro, numa das visitas que faz a Katsumoto, este tem a mão direita junto das flores de uma cerejeira. A mão que pega a espada, a mão que dá a morte, mas que também dá a vida, a mão que escreve a poesia, a mesma que toca a beleza e a perfeição da flor da cerejeira.

Nesse local, o samurai diz ao americano: “não temes a morte mas, às vezes, deseja-la.”

Não a teme, mas tem medo de morrer. Que contradição. Mas é assim mesmo. Se a morte fosse algo que se aceitasse naturalmente, como o respirar, não precisaríamos de desenvolver iccha mrityu para, por acto de vontade, pormos termo ao corpo físico, darmos a morte ao nosso corpo.

Mas que posso dizer mais? Há mais sabedoria numa nuvem sombria do que em mim. Ao menos a nuvem sombria, a da tempestade, dá a luz do raio.”

 

Neste filme veremos como estes guerreiros, sobretudo, numa primeira fase, o samurai Katsumoto usa a mente como uma lâmina tão afiada como a sua espada.

É a ética ritualizada. É a acção disciplinada. É a sabedoria, a honra, a lealdade até à morte.

 

SwáSthya

(C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya

Discípulo do Mestre DeRose

O Tigre e o Dragão. O Amor e a Morte.

Apontamentos

 

O texto que agora se apresenta, serviu de apoio ao Departamento de Yôgacine,

aquando da exibição do filme O Tigre e o Dragão.

 

O Tigre e o Dragão. O Amor e a Morte.

 

Neste filme pode observar-se a relação entre mestre e discípulo. Como pode ser intensa, como pode ser traída, como pode o discípulo ir além do mestre. Como o poder que os conhecimentos iniciáticos proporcionam pode ser atraente. Uma proposta de como funciona o siddhi da levitação. Mas essencialmente a força do amor. E como este se pode constituir um obstáculo, para uma linhagem brahmachárya, e como, em simultâneo pode ser libertador para aquele que o aceita. Veremos o grande herói ser detido na meditação, pelo amor que sente por uma mulher. Vemos como isso lhe impede os mais elevados estados de iluminação. Veremos também, no fim, que prefere assumir esse amor, morrendo por ele, e ainda assim libertar-se, pela sua força, no momento do mahá samádhi. Para além de tudo o mais é um filme de grande valor estético, de grande beleza visual e com grande poesia – só por isso já valeria vê-lo.

Veremos como, também por amor, para além do herói, outras duas personagem se libertam, através do mahá samádhi, num abandono total, de um desapego tão grande, até à própria vida, como só é capaz quem ama com a intensidade altruísta dos grandes amores. E falamos do amor de um homem por uma mulher. Duma mulher por um homem. Vemos também o amor traído de uma mestra, que me verdade não o era. Claro que, neste filme, a morte, como fonte de libertação, está patente. É um filme oriental, onde a morte, sobretudo quando escolhida, quando resulta de um acto de vontade, é valorosa acima de tudo – recordar-se-ão, aqueles que participaram no meu último seminário dedicado à meditação, do CFIY, ter eu referido um dos poderes que o tântrico deve desenvolver: iccha mrityu – o poder de matar o corpo por um acto de vontade. Vejam, como este filme o apresenta como algo de tão sublimemente belo, pois essa vontade resulta de um amor intenso.

E a propósito do filme, que veremos um dia destes, deixo-vos alguns, poucos apontamentos que me limitei a coligir sobre o amor. Espero não fazer como alguns catedráticos de anatomia que falam dos órgãos sexuais e do acto sexual de modo a tirarem a vontade ao mais excitado.

Refiro-me ao amor, por ser Primavera, talvez. Estimula as nossas sensações e as nossas emoções. Mas refiro-me ao amor, também e sobretudo, porque está patente no filme e há que separar águas. Nos textos e nos mestres brahmachárya, o amor surge tão só como algo de universal – amamos a criação, amamos o cosmos, amamos todos os seres, humanos e os outros, pois no grande plano cósmico somos todos irmãos, amamos a divindade a que nos dedicamos e pronto – quando ao resto, ensina Shivánanda, não brinque com as mulheres, nem ria com elas; ele lá saberá a que coisas poderá conduzir o brincar e rir com as mulheres.

Mas, as escrituras, também referem outro tipo de amor. O amor do bhakta, aqueles que adora; o amor próprio de bhakti – a adoração. Bhaktí é o aspecto afectivo da tomada de consciência do Eu, que se manifesta sob a forma de alegria, intensa e pura, que preenche aquele que a sente. Reparem que para o adorador – bhakta – para aquele que ama, o que o atormenta não é a sujeição ao samsára, ou seja a existência condicionada, como algo de volúvel e instável. Não! Para aquele que ama, é a separação que o angustia. E qual é o significado da palavra Yôga – união, integração. Aquele que ama intensamente quer unir-se, integrar-se. A libertação do sofrimento passa pela união. A afeição resultante deste amor tem, nas escrituras o nome de madhura. É o amor que um homem sente por mulher e esta por um homem. Este tipo de amor é o mais íntimo de todos os que o Bhakti Yôga identifica. Depois este tipo de amor tem ainda diversos cambiantes. Mas o mais intenso, é o que se classifica como parakía – é o amor dos amantes, em todos os sentidos que isto possa ter, o daqueles que se amam, que se desejam e que, eventualmente, concretizam esse amor e desejo, carnalmente. Todos nós estamos ligados por uma rede de relações, de direitos e deveres, que nos prende. A erupção do amor intenso, arrebata o ser que ama dessa rede e catapulta-o para uma dimensão desconhecida, a do amor. Nesse amor a posse é breve, até rara, mas a separação quotidiana. Isso leva o bhakta a desejar constantemente a união. Esse sentimento, o do amante, tem três características:

 

1 – a lembrança constante do bem-amado

2 – o desejo insaciável de o encontrar

3 – uma capacidade de ver o que na bem-amada, é sagrado, o que é expressão de Shiva/Shaktí, a capacidade de vê-lo numa forma transfigurada pelo amor.

 

Este amor não é o da posse, mama. Tantas vezes, na nossa sociedade, próprio do casamento e do marido, o patriarca. E esse sentimento de propriedade, de posse, não liberta – pois intensifica ahamkára, o ego.

 

A paixão dos amantes que se amam, como exposto, é um símbolo da libertação, pois está isenta de egocentrismo, não conhece a segurança do dever, é devoradora, impetuosa, vivida com intensidade. O mundo torna-se estranho ao que assim, ama. Aqueles que assim amam querem unir-se. A separação é tormentosa, intolerável. O encontro entre dois amantes assim proporciona-lhes uma alegria indescritível. Todo o ser aspira a uma união com o outro que ama. Uma união tão intensa, tão absoluta, que fica para lá do tempo e espaço e não dependente deste. Uma união que não possa mais ser desfeita. Tal como ocorre com a união entre Shiva/Shaktí, tal como ocorre com a união entre kundaliní shaktí e Shiva alojado no brahmárandra, no sahásrara chakra. Não ensina Pátañjali que «ele [o samádhi] está próximo para os que o anseiam com intensidade» (Y. S., I-21)? Samádhi significa também integração, como sabem. A integração tão desejada e tão ansiada pelos amantes, que são aqueles capazes dessa auto-entrega ao outro. E o samádhi «também pode ser obtido através da autoentrega » (Y. S., I-23). A loucura dos amantes, a loucura que é uma verdadeira dádiva de amor puro, não é afectada pelo dever, ou pelo interesse. Tal loucura, por vezes, põe em risco a segurança, o dever, por vezes implica um sacrifício que põe em causa a reputação, deita tudo a perder, tantas vezes, como cantam os poetas, tal amor deita a perder até a vida. Esse furor é a intensidade com que se deve ansiar a união, o samádhi. As escrituras ainda descrevem as duas fases desse amor:

 

Madana – embriaguês na comunhão com o amado.

Môhana – desvario na separação.

 

E tem seis cambiantes:

Snêha – ternura.

Mana – despeito amoroso.

Pranaya – intimidade.

Rága – paixão.

Anurága – paixão extrema.

Mahábháva – sentimento supremo.

 

Todos estes conceitos, toda esta exposição teórica descrevem uma experiência que não se consegue comunicar por palavras. Há que senti-la, e só entende o que está subjacente a estes conceitos, provenientes do Bhakti Yôga, quem já sentiu ou sente tais emoções. Pois está em causa a experiência incomunicável do amor perfeito – prêman. E prêman é tão só a perfeição do amor, dominando todo o psiquismo do que ama, crescendo continuamente, de modo subtil, de modo aprendido apenas pela intuição, tal como o ensina a obra Narada Bhakti Sútra. Esse amor faz o bhakta rir, dançar, cantar, mergulhar num estado de grande produção de ambrósia, o néctar da imortalidade – amrita. Aquele que alcança a experiência de prêman está para lá do que é ilusório, pois a cegueira do amor, em verdade não é cegueira, é percepção intuicional do que no outro é resultante dos princípios elevados, de Shiva e Shaktí, e que se manifestam ou potencialmente podem manifestar-se em todos os homens e todas as mulheres. Todos os homens e mulheres podem ser expressão da deusa e do deus. E também estas características mais se manifestam quando estão em estado de prêman. Ou seja, aquilo que é, tantas vezes se revela aos amantes. Como dizem as escrituras do Bhaktí Yôga, para aqueles que amam, com o amor dos amantes, a proximidade do samádhi é intensa e não só quando recitam mantra, ou quando meditam. É a todo o instante e em tudo o que fazem. Pois tudo se funde e dissolve no amor. E o samádhi está próximo pois a união entre o amante e o amado não pode ser completa enquanto não há uma imersão total um no outro. Aqueles que amam e se abraçam não querem saber mais do ‘eu’ e do ‘tu’, pois fundem-se numa totalidade una – Shiva andrógino. Para os amantes que unem e pelo menos durante a união, é o ‘divino’ que se exprime em todos os seus gestos e em todos os seus pensamentos. Integram-se e movem-se um no outro, em unidade. Deixo-vos estas poucas notas que, espero, vos ajudarão a “olhar” o filme.

 

SwáSthya

(C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya

Discípulo do Mestre DeRose

«Sou irmão de dragões e companheiro de corujas»