Texto para reunião do Círculo de Leitura de Janeiro 2019
Ásana, consciência, provação
No caminho (marga) que o yôgi percorre, acontece ir muito longe nalguns aspectos, mais imediatos, como seja o aspecto físico, corporal. Mas noutras dimensões, mais subtis, por vezes tem a sensação de marcar passo. Há que ter presente que no aprofundar do Yôga há aspectos introspectivos muito importantes. Cada passo, mais do que um movimento físico, deve conter um todo de união entre o corpo e a meditação, entre o corpo e a mente. A ponte de uma tal prática, ainda que se expresse através da coreografia de ásana, obriga a uma precisão gestual e uma orientação da consciência ligada ao gesto. Ou seja, implica uma forma de praticar através de uma rotina repetitiva, acompanhada de um processo de interiorização e de um aprofundar do próprio na via, de modo cada vez mais decisivo, intenso, total. Abraçando os seus valores, as suas preposições, não só externamente, mas de modo interno, “derrubando barreiras” que se constituem obstáculo.
Ora, esta necessidade de interiorizar os valores do caminho (marga) a que o sádhaka se dedica, implica um esforço, constante e consciente, para ultrapassar o nível sensorial quotidiano ou ordinário. Por isso, qualquer que seja a técnica, num certo momento, a aprendizagem marca passo: o saber fazer é adquirido, mas a progressão estagna. Parece que as ondas recuam, mas ainda assim a maré sobe. Isto acontece porque a prática deve conduzir-nos a uma mudança qualitativa de atitude. Em suma, a coreografia de ásana é uma forma prática, transmissível de uma técnica de transformação do corpo e da consciência. A coreografia implica, ao mesmo tempo, um acto físico e um estado de consciência, acentua a interioridade e a subjectividade. Representa um modo de percorrer a via que nos conduz à perfeição, através da ideia de que percorrer o caminho é o fim em si mesmo. Os limites físicos, quotidianos, serão ultrapassados de modo excepcional, através de circunstâncias de treino que nos levam aos limites (vários e não só físicos). Quem quer percorrer o caminho que percorro, deve preparar-se para uma grande transformação, total, em todas as suas dimensões. Não se trata de procurar um momento de iluminação, de um momento de percepção de algo mais. Mas sim de forjar (mais uma vez o ferreiro, o grande demiurgo) um estado durável de consciência ampla.
Neste caminho, a fadiga, a dor, momentâneas, resultantes do esforço físico intenso, são como um apoio para o sádhaka se elevar do estado ordinário do corpo. Esta busca, o trilhar desta senda, implica viver outras experiências, novas pela maneira nova de apreender e organizar o vazio, o caminho não percorrido.
João Camacho, o Sono de Ganêsha. O poder adormecido