Epístolas aos meus discípulos:
A CAIXA DE PANDORA
Gnose, a finitude da vida e a supra consciência
Meus queridos
Os textos que produzo têm-vos como destinatários. Tal como acontece com este, onde, essencialmente, pretendo, deixar algumas notas acerca do simbolismo da caixa.
E já que vou falar da caixa e do seu simbolismo, permitam-me deixar-vos algumas classificações conceptuais. São apenas alguns apontamentos que reuni e que partilharei com todos vós.
Antes de mais a distinção de Eliade, sábio, companheiro mais adiantado, como este mestre gostava de a si próprio de designar. Segundo ele há duas grandes categorias de símbolos:
1 – Uranianos: seres celestes, deuses da tempestade, cultos solares, mística lunar, epifanias aquáticas, etc.
2 – Ctonianos: pedras, terra, mulheres, fecundidade, reprodução, cavernas, infernos, etc.
A estas duas categorias ainda se juntam os símbolos do espaço e do tempo e a dinâmica do eterno retorno, esta muito querida à mitologia grega, mas também à metafísica hindu.
Há muitas outras classificações de categorias de símbolos mas, pessoalmente, sem ignorar as outras (a de Krappe, La Genèse dês mythes, – símbolos celestes e terrestres; a de Bachelard, – distribui os símbolos em função dos quatros elementos da divisão esotérica, terra, água, fogo e ar; a de Dumézil, – distribui os símbolos em função de três categorias; a de Piganiol – entre os símbolos dos pastores e nómadas e os símbolos dos lavradores e sedentários; a de Pryzulski, – baseia a divisão na ideia da evolução do pensamento religioso, primeiro, o culto da Grande Deusa, depois, os símbolos do Pai e do Filho; a da Psicanálise de Freud, – o eixo do prazer e os níveis oral, anal e sexual dos símbolos, em função de uma libido recalcada; a de Adler que substitui este princípio, o do prazer, pelo do poder, – a compensação do complexo de inferioridade gera a profusão de símbolos; a de Jung, a quem devemos a introdução na ciência do conceito de inconsciente colectivo, – os símbolos ocorrem e classificam-se em função dos processos de introversão e extroversão, em função dos processos de individuação, tendo a ver com a fase evolutiva de cada um, e outras fenómenos. Jung não sistematizou, apesar da sua grande obra sobre a simbologia, de leitura indispensável. E muitos outros que nem sequer exponho, apesar da sua grandeza, entre estes Gilbert Durand.
Então passemos a algumas distinções conceptuais, absolutamente necessárias.
Assim, distingamos símbolo destas outras categorias:
Emblema – é uma figura visível que representa uma ideia, um ser físico ou moral. Uma bandeira é um exemplo de emblema.
Atributo – é uma imagem que serve de signo a uma personagem, a um colectivo ou a um ser moral. Asas, são um atributo do ar, de uma empresa de aviação; um porco, atributo de um talho; a balança atributo da justiça, etc…
Alegoria – é uma figuração duma proeza, de um grande feito que é ou virá a ser lendário. Pode também ser duma situação, de uma virtude superior, ou dum ser abstracto. Essa figuração pode surgir sob forma vegetal, animal, humana. A mulher alada é a alegoria da vitória; a mulher jovem, de seios desnudados e generosos, é a alegoria do regime republicano; a mulher vendada, com uma balança nas mãos é a alegoria da justiça. A alegoria não implica naquele que a conhece a passagem a um outro nível ontológico. O que contacta com a alegoria poderá fazê-lo com a segurança de permanecer no mesmo nível de consciência em que se encontrava, pois apenas implica uma operação de lógica-dedutiva, própria do pensamento discursivo.
Metáfora – é o desenvolvimento duma comparação entre dois seres, ou duas situações, através de uma infinidade verbal, que essa sim pode, tem a potencialidade de, nos arrastar para outro nível de consciência, sem o qual, por vezes, a metáfora perde parte do seu sentido, ou até se torna incompreensível para o destinatário.
Analogia – também aqui a comparação entre seres ou noções, mas agora diferentes, mas nalguns pontos semelhantes.
Sintoma – modificação nas aparências ou no funcionamento habitual que pode revelar, ao observador, uma certa perturbação, ou conflito; já a síndroma resulta de um conjunto de sintomas que caracterizam uma situação de conflito em evolução através do qual é possível pressagiar o futuro.
Parábola – pretende, para além do seu sentido, constituir uma lição moral.
Todas estas formas são figurações do símbolo que têm em comum o facto de serem signos, meios de comunicação, que não ultrapassam, na maioria das vezes, o plano do conhecimento imaginativo ou intelectual. São símbolos arrefecidos, como lhes chama Hegel.
Já o símbolo pretende ser verdadeiramente inovador. O símbolo deve ser organizador da consciência, das sensações e de toda a vida psíquica. Pretende operar uma viragem no ser que o usa. Não pretende apenas a ressonância, mas sim a transformação em profundidade daquele que o conhece. Cumpre uma função mediadora, lançando pontes entre elementos separados. Religando os céus e as terras; a matéria e o espírito; o real e o sonho; o inconsciente e o consciente. Um verdadeiro símbolo consegue condensar a experiência total do ser humano, enquanto ser religioso, cósmico, social, psíquico (nos 3 níveis: inconsciente, consciente e supraconsciente). Resultando, o símbolo como unificador.
Mas toda esta conversa para chegar ao simbolismo da caixa. Onde se inclui também a de Pandora.
Certamente que já repararam que do oriente em geral e, no que nos interessa, da Índia em especial, nos chegam caixas e caixinhas, de todos os tamanhos e feitios.
Desde logo é necessário referir que a caixa é um símbolo feminino, frágil. Mas pode conter também o que é temível, tenebroso.
A caixa protege. Mas pode sufocar.
A caixa deverá ser aberta? Há sempre a tentação de abrir uma caixa. Assim como os homens muitas vezes se tentam a desvendar, a descobrir, uma mulher. Mas o vaso, ou a caixa de Pandora, ficou para a lenda como o aviso de que, às vezes, é preferível não a abrir. A caixa de Pandora continha, guardava, sufocava, protegia, fechava, doenças, males e maldições dolorosas e que trazem a dor, a doença e a morte aos seres humanos. Mas a mulher quis conhecer aquele poder profundo e oculto, pois não é ela, por excelência, profundidade e ocultação? E, não resistindo, Pandora levantou a tampa da caixa, libertando no mundo os males, as pestilências, as maldições, as doenças, de que ainda hoje padecemos. Pandora, aterrorizada, incapaz de pensar claramente com medo do que tinha libertado no mundo, fechou rapidamente a tampa, não percebendo que, dentro da caixa indestrutível, havia deixado a única possibilidade de salvação do ser humano – a Esperança. E ainda hoje lá está.
Neste mito, emocionante, a esperança, catapulta-nos para o conhecimento, para a evolução pessoal, para a ascese. Pois a Esperança, encerrada dentro da caixa de Pandora, é o inconsciente. E só os que aprofundam na busca interna conseguem trazê-la à luz do dia. Mas é necessária a disciplina sistemática o Yôga nos proporciona. Pois as forças inconscientes são, por natureza, imprevisíveis, excessivas, irracionais, e podem ser construtivas ou destrutivas.
Este mito, resultante do símbolo da caixa, pretende alertar-nos para o facto de que as caixas, ricamente ornamentadas, ou simples e singelas, têm um valor simbólico pelo seu conteúdo. Pelo que abrir uma caixa implica sempre correr um risco. Temam as caixas e decidam sempre se querem correr o risco de as abrir. Nunca se sabe o que lá vamos encontrar. E não é assim, também, quando nos procuramos?
O Atharva-Vêdá, assim como alguns Upanishad, referem a caixa de ouro, como símbolo do misterioso vazio interior que encerra e protege um tesouro de valor incalculável: o Sí mesmo. Esta caixa de ouro contém três cavidades, destinadas ao inconsciente, consciente e supraconsciente.
Ainda acerca das misérias que a caixa pode encerrar, não resta ao homem se não viver, agora, o presente, com aquilo que de melhor lhe for possível. É o que Homero, que o J. se afadiga a ler, ensina: ao homem resta viver totalmente, mas com nobreza, no presente. E essa é a sabedoria humana, a Esperança, encerrada na caixa. É a sabedoria que advém da consciência da finitude e precariedade da vida humana. Pelo que se deve aproveitar o que nos seja oferecido pelo presente; a juventude, a saúde, a alegria, ou a oportunidade de exercer virtudes. Mas devemos fazê-lo a cada momento.
É da consciência dessa finitude da vida humana que nascem as técnicas do Yôga e da necessidade de, no tempo de uma vida realizar a perfeição, alcançar o estado de jiva mukta. Dessa consciência de finitude, nasce a necessidade de transcender a condição humana, a alegria de viver (e aqui entenda-se como a satisfação pelo existir, pelo participar na majestade da vida e do mundo), o valor sagrado da sexualidade, da experiência erótica – intensa acima de quase todas as outras, da beleza do corpo humano e da sua nudez, mas também o júbilo da função religiosa colectiva – danças, rodas, cortejos, jogos, refeições comunitárias, etc… É da consciência dessa finitude que também nasce o sentido transcendente da percepção da perfeição do corpo humano – a beleza física, a harmonia dos movimentos de corpo, a serenidade, a sensualidade, que este pode transmitir, que inspirou sempre os artistas. E não deveríamos praticar Yôga nus? Não deveríamos cultivar uma estética própria do Yôga?
Mas, para uma “caixa”, já me alonguei em excesso. Desculpem-me esta verborreia, por vezes, interminável. Mas há coisas que, se não as digo, morro.
SwáSthya
(C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya
Discípulo de Shrí DeRose
«Sou irmão de dragões e companheiro de corujas.»