Repetição da cosmogonia

TEXTO PARA A REUNIÃO DE OUTUBRO 2019

Portanto, preeminentemente, o Centro é o âmbito do sagrado, a zona da realidade absoluta. De modo semelhante, todos os demais símbolos da realidade absoluta (árvores da vida e imortalidade, fontes da juventude, etc.) encontram-se também situados em lugares centrais. A estrada que leva para o centro é um “caminho difícil” (duro hana), e isso pode ser verificado em todos os níveis da realidade: difíceis convoluções de um templo (como em Borobudur); peregrinação a lugares sagrados (Meca, Hardwar, Jerusalém); viagens cheias de perigos, realizadas por expedições heróicas, em busca do Velo de Ouro, das Maçãs Douradas, da Erva da Vida; desespero dentro de labirintos; dificuldades daquele que procura pelo caminho em direção a seu ego, ao “centro” do seu ser, e assim por diante. A estrada é árdua, repleta de perigos, porque, na verdade, representa um ritual de passagem do âmbito profano para o sagrado, do efêmero e ilusório para a realidade e a eternidade, da morte para a vida, do homem para a divindade. Chegar ao centro equivale a uma consagração, uma iniciação; a existência profana e ilusória de ontem dá lugar a uma nova, a uma vida que é real, duradoura, eficiente.
Se o acto da Criação realiza a passagem daquilo que não é manifesto para o que é manifesto, ou, falando cosmologicamente, do caos para o Cosmo; se a Criação teve lugar a partir de um centro; se, consequentemente, todas as variedades do ser, desde o inanimado até o vivente, podem alcançar a existência apenas numa área de domínio sagrado — tudo isso ilumina de uma forma maravilhosa para nós o simbolismo das cidades sagradas (centros do mundo), as teorias geomânticas que orientam a fundação de cidades, os conceitos a justificar os rituais que acompanham sua construção. Nós estudamos esses rituais de construção, e as teorias que eles implicam, numa obra anterior, e a ela remetemos o leitor. Aqui pretendemos destacar apenas duas importantes propostas:
1. Toda criação repete o ato cosmogônico pré-eminente, a criação do mundo.
2. Conseqüentemente, qualquer coisa que é fundada tem sua fundação no centro do mundo (desde que, como sabemos, a própria Criação teve lugar a partir de um centro).
Entre os muitos exemplos de que dispomos, vamos escolher apenas um, que, por ser interessante também em outros aspectos, reaparecerá mais tarde, em nossa exposição. Na Índia, antes que uma única pedra seja colocada, “o astrólogo mostra qual é o ponto da fundação que está exatamente acima da cabeça da serpente que sustenta o mundo. O pedreiro produz uma pequena estaca de madeira, a partir de um galho da árvore Khadira, e, com o uso de um coco, crava a estaca no chão, bem nesse lugar particular, de maneira que a estaca fixe a cabeça da serpente naquele ponto, com toda a segurança… Se essa serpente algum dia sacudir a cabeça com muita violência, sacudirá todo o mundo até que ele fique em pedaços”. Uma pedra fundamental é colocada em cima da estaca. Assim, a pedra angular fica posicionada exatamente no “centro do mundo”. Mas, ao mesmo tempo, o ritual de fundação repete o ato cosmogônico, porque, “prender” a cabeça da serpente, cravar uma estaca sobre ela, representa uma imitação do gesto primordial de Soma (Rg- V e da , II, 12, 1) ou de Indra, quando este “atirou a serpente em sua toca” (VI, 17, 9), quando seu raio “cortou sua cabeça” (I, 52, 10). A serpente simboliza o caos, aquilo que é disforme e não manifestado. Indra vem sobre Vrtra (IV, 19, 3) não dividido (aparvan), não despertado (abudhyam), dormindo (abudhyamanam), mergulhado no mais profundo sono (susupanam), estendido (asayanam). O lançamento do raio e a decapitação são equivalentes ao ato da Criação, com a passagem daquilo que não é manifestado para o que é manifestado, do disforme para o que foi formado. Vrtra tinha confiscado as águas e as mantinha no interior das montanhas. Isso significa que Vrtra era o
senhor absoluto — do mesmo modo que Tiamat ou qualquer divindade em forma de serpente — em relação a todo o caos anterior à Criação; ou que a grande serpente, mantendo as águas apenas para si mesma, tinha deixado todo o mundo louco por causa da seca. Independente de esse confisco ter ocorrido antes do ato de Criação, ou se deve ter lugar depois da fundação do mundo, o significado permanece o mesmo: Vrtra “impede” que o mundo seja criado, ou
de durar muito. Como símbolo daquilo que não é manifestado, do que é latente, ou do disforme, Vrtra representa o caos que existia antes da Criação.
Em nossos comentários sobre a lenda do Mestre Manole (cf. nota 35, acima), tentamos explicar os rituais de construção através da imitação do gesto cosmogônico. A teoria implicada nesses rituais resume-se nisto: nada pode durar se não for “animado”, se não receber uma “alma”, por intermédio de um sacrifício; o protótipo do ritual de construção é o sacrifício que teve lugar no momento de fundação do mundo. Na verdade, em certas cosmogonias arcaicas, o mundo recebeu existência por meio do sacrifício de um monstro primordial, simbolizando o caos (Tiamat), ou através do sacrifício de um gigante cósmico (Ymir, Pan-Ku, Purusa). Para garantir a realidade e a durabilidade de uma construção, existe uma repetição do ato divino da construção perfeita: a Criação dos mundos e do homem. Como primeiro passo, a “realidade” do lugar é garantida por intermédio da consagração do terreno, isto é, por sua transformação em um Centro; então, a validade do ato de construção é confirmada pela repetição do sacrifício divino.
Naturalmente, a consagração do Centro ocorre num espaço de qualidade diferente do espaço profano. Por meio do paradoxo do ritual, cada espaço consagrado coincide com o centro do mundo, da mesma forma que a hora de qualquer ritual coincide com o momento mítico do “princípio”. Através da repetição do ato cosmogônico, o momento concreto, no qual a construção tem lugar, é projetado para o tempo mítico, in illo tempore, quando ocorreu a
fundação do mundo. Assim, a realidade e a durabilidade de uma construção ficam garantidas, não apenas pela transformação do espaço profano em espaço transcendental (o Centro), mas também pela transformação do tempo concreto em tempo mítico. Seja qual for o tipo de ritual, como vamos ver adiante, ele se desenvolve não só num espaço consagrado (isto é, num lugar diferente, em essência, do espaço profano), mas também num “tempo sagrado”, “era uma vez” (in illo tempore, ab origine), ou seja, quando o ritual foi celebrado pela primeira vez por um deus, um ancestral, ou um herói.

Eliade, Mircea; O Mito do eterno retorno, Ed. Mercuryo 1991, pg. 23-26

Geometria para conhecer-se a si mesmo

TEXTO PARA REUNIÃO DO CÍRCULO DE LEITURA DE SETEMBRO 2019

 

Platão, no livro VII da República diz que a finalidade da Geometria não é só medir linhas, superfícies ou volumes, ou as relações entre ambos, é elevar o olhar da alma para a
contemplação daquilo que não morre.
Um triângulo equilátero, por exemplo, definido pelos seus ângulos iguais, é ele mesmo quer seja do tamanho de um átomo ou do universo inteiro, estático ou em movimento, só ou acompanhado de outras figuras geométricas. E não encontramos nada na natureza que os nossos sentidos percebam que não dependa total ou parcialmente do quando, do como, de onde, se está parado ou dinâmico, ou seja, depende sempre das mudanças no espaço, do tempo e da circunstância.
Trabalhar na investigação das propriedades das figuras geométricas e das suas relações, traçarmos nós mesmos estas figuras (polígonos regulares, circunferências, linhas
tangentes, etc.), serena as nossas mentes, ordena-as, desperta intuições e faz-nos vislumbrar o mistério do que não muda, e portanto, estabelece a ponte com aquilo que é mais eterno dentro de nós.
Este é o motivo por que na educação clássica foi incluída a Geometria no Quadrivium. Além disso, cada elemento geométrico é o esqueleto simbólico de muitas noções, ideias, vivências, é a chave que permite abrirmo-nos ao seu sentido. Toda a situação vital, todo o problema, todo o processo da natureza poderia ser decifrado se encontrarmos a
chave geométrica da qual depende. A geometria do átomo permitiu-nos conhecer todos os elementos da Natureza e os das moléculas que formam a estrutura armilar em si das formas vivas e as suas propriedades físico-químicas, e a geometria espiral do ADN na linguagem da vida no nosso planeta.
A mesma linguagem popular expressa conceitos muito profundos com palavras ou frases que não são senão percepções ou vivências geométricas de um dado assunto.
Dizemos “estás descentrado” e todos temos uma noção clara do que isto significa; ou falamos de “rectidão moral” ou de uma vida “sinuosa” ou de um olhar oblíquo, tendencioso. Olhamos para cima e para a esquerda para recordar (passado), e para cima e para a direita para imaginar ou projectar (futuro).

Os generais chineses diziam que quando se dá uma ordem, há que sentir que a linha do seu peso moral nos leva ao centro da terra, e o filósofo Sri Ram (1973) disse que a
Educação é uma elipse cujos focos são os pais, por um lado, e a Escola, por outro; os nossos caminhos de vida encontram-se ou separam-se, embora sigam a mesma direcção,
falamos de se encontrarem, mas no infinito; os incas diziam que a Raiz de 2 (a hipotenusa de um triângulo rectângulo cujos catetos são a unidade) é o “caminho da verdade”, pois é o caminho entre o que somos aparentemente como sombras projectadas na terra, e que somos realmente, e assim, poderíamos continuar a fazer correlações até o infinito, pois os mesmos mundos internos e externos são-no relativamente: desde um qualquer ponto dado numa espiral, o que se abre ao infinitamente exterior é idêntico ao que se submerge até ao
infinitamente interior.
A Geometria é determinante na arte de aprender a pensar rectamente, e também na de perceber as analogias que existem na natureza, esqueleto da compreensão dela mesma.
É muito belo voltar a sentirmo-nos jovens, quase crianças, e voltar a encontrar geometricamente (e não só aproximadamente) o centro de um círculo, ou desenhar
polígonos dentro dele, ou circunferências ao redor de um triângulo ou de um quadrado; encontrar das tangentes a uma circunferência num ponto dado, traçar um pentágono (o
grande segredo pitagórico), ou racionalizar a medida de uma linha (o desconhecido) dividindo-a num número de partes iguais, seguindo as diretrizes do mesmo sábio grego a
quem se atribuiu a máxima “Conhece-te a ti mesmo”, ou seja, do filósofo Tales de Mileto.
Além disso, como cada um destes elementos geométricos é um símbolo, uma janela que nos abre a uma infinidade de significados, podemos fazer filosofia só com eles e com a
relação com o que sobre a vida conhecermos ou pensarmos.
Podemos fazer estas simples experiências geométricas, para lançar desde a circunferência do que somos um raio que
ilumine o interior, uma ponte para dentro, e conhecer-nos melhor a nós mesmos. Pois, como figurava escrito no frontispício do templo de Apolo em Delfos:

CONHECE-TE A TI MESMO E CONHECERÁS O UNIVERSO E AS LEIS QUE O GOVERNAM.

Fernandez, José Carlos, in Matemática para Filósofos, 1 de Agosto de 2019

Shiva Natarája Nyása, ou Tándava.

TEXTO CÍRCULO DE LEITURA – JULHO 2019

Diferenças de denominação para uma mesma arte? Como logo no início o vimos, e só exemplifiquei com o Karate, este, com uma história muito mais recente, pode ser Tê, Todê, Okinawa Tê, etc.. Quando vamos muito mais longe, 5 ou 6 mil anos atrás , vamo-nos deparar com muito mais dificuldades em destrinçar nas fontes e no resgate que, por vezes, é feito pelos canais intuicionais. Assim há autores que chamam a esta arte antiga Kalaripayt, outros que dizem ser o Vajramushti, ou ainda Tenziku Naranokaku.
Em suma poderemos afirmar que há pelo menos um ramo das artes marciais que vai da Índia para China e desta para o Japão. Há outro ramo que vai da Índia para a China, desta para Okinawa e desta para o Japão. Para Ocidente vamos encontrar fenómenos interessantes. Vamos encontrar as artes marciais gregas, que ainda hoje conhecemos como luta grego-romana. Mas eram muito mais complexa do que hoje se nos apresentam. Tendo aí, na Grécia, por exemplo, o pancrácio. Origem autónoma? Não o sabemos. Mas sabemos que as tribos que chegam à Grécia, como, entre outros, os Dórios e os Jónios, são tribos arianas vindas de leste, da Índia, do Afeganistão, etc… Após os contactos com os drávidas terão levado as suas artes de combate para a Grécia. É uma hipótese altamente provável. Por outro lado, os gregos conheciam o Yôga e os mestres de Yôga que viajaram da Índia para a Grécia. Chamavam aos mestres de Yôga os gimnosofistas, os filósofos nus. Alexandre viajou para a Índia, num percurso de retorno de uma tribo ariana que daí tinha saído e que regressou a casa. Aliás, ao aí chegarem os gregos de Alexandre integraram-se perfeitamente nos cultos a Shiva. Pois cultuavam-no como Dionísio, o Deus de Nisa. E o Deus de Nisa é outra das formas como Shiva é conhecido e tratado na Índia.
Cada povo desenvolve os sistemas de combate de acordo com as circunstâncias históricas, económicas, políticas, culturais vigentes. E as artes marciais indianas, nos últimos milénios, não foram excepção. Sem entrar em pormenor, vamos aí encontrar, com a evolução específica de cada escola, ou de cada região, com a experiência de combate deste ou daquele mestre, diferenças entre as escolas do Norte e as do Sul, entre as escolas internas e as externas. Entre as que usam mais armas e as que usam menos armas, etc.. mas não conhecem este fenómeno? Não é assim nos ryus que praticam? Não é assim entre as escolas de Karate e entre as escolas de Aikido? Não é assim entre o Judo do Kôdôkan e o Judo do Butokukai? E muitos outros exemplos vos poderia dar.
Deixo-vos algumas notas, poucas para não vos cansar, mas que documentam, em parte o que vos tenho exposto. Mas para a extensa fundamentação bibliográfica destes dados tenho vários artigos publicados, seja na MON. Actualizações de Budo, como nas revistas online, Surya online e na Y .

Shiva, enquanto criador do Yôga, é muitas vezes representado como guerreiro:

• Tem como «emblema» principal o trishula, a lança tridente , “a sua arma como herói” – Machado de guerra – labris -«espada (….) um laço, um escudo»

• armado de arco e flechas , sendo designado, quando assim é, como Sharva (o arqueiro) . O seu arco tem o nome de Pinaka.

• Tem um exército – buthagana. Ganêsha é o comandante-em-chefe dos gana (demónios). Aliás esta divindade, habitu-almente representada de modo prazenteiro, até com flores na cabeça, é um temível combatente e tem o seu nome composto das palavras gana (demónio) e isha (Senhor). De onde resulta Ganêsha – o Senhor dos demónios.

• E, maxime, Shiva é “o Deus da Guerra (sômaskanda)” outras vezes é apresentado como “le dieu des soldats”, como surge em L ‘Hymne aux Cent Rudras de Vájasênêyi Samnita (Yajur Vêda, 16, I)

Referi-vos o Bhagavad Gítá. Para finalizar a exposição teórica, antes de passarmos a um pouco de prática, vou ler-vos um pequeno excerto desta escritura.

Bhagavad Gitá

Depois de ver o exército pandava
disposto a combater, Duryôdhana
aproximou-se do seu mestre d’armas
e a ele se dirigiu desta maneira:

Dos filhos de Pandu, este exército imenso
(alinhado pelo filho de Drupada,
o teu aluno mais inteligente),
ó Instrutor, observa bem em pormenor.

Vê os grandes heróis, grandes archeiros,
que são iguais, na luta, a Bhíshma e a Arjuna:
Yuyudhana e Virata e mais Drupada,
exímio condutor do grande carro;

Dhrishtakêtu, aquele cuja luz brilha intensa;
o valoroso rei de Káshi; Kuntibhôja
e Chakitana e Purijit, que conquista
em extensão; e Shaibya, entre os homens, um touro;

Yudhamanyu, o lutador subtil;
o do poder mais alto, Uttamaujas;
de Draupadí, os filhos e o filho de Subhadra,
todos guerreiros poderosos nos seus carros.

Agora, ó eleito entre todos os bráhmana,
ó tu, tu que nasceste duas vezes, dos notáveis
que estão aqui do nosso lado
conhece os principais do meu exército.

Tu, primeiro que todos e, logo de seguida,
Bhíshma, e, depois, Karna, o que nasceu com brincos;
e também Kama, Kripa e mais Ashvattháma
e Vikarna e o grão filho de Sômôdatta;

tantos, tantos heróis, tão numerosos
por minha causa dão a sua vida,
combatendo com toda a espécie d’armas,
n’arte da guerra todos bem treinados.

Vírabhadra namaskára

Convido-vos, então, a uma pequena prática de Yôga. O Yôga Antigo, resgatado por Shrí DeRose na passagem ao terceiro milénio, tem como uma das suas oito principais características, as sequências coreográficas de ásana e mudrá. E sabe-se que assim era na antiguidade, pois, entre outros dados, encontram-se duas antigas sequências que nos dão uma boa ideia de como o Yôga era praticado. E uma dessas coreografias é o Vírabhadra namaskára. Uma saudação a um herói guerreiro. Conto-vos a lenda que lhe está associada e depois vamos experimentá-la no nosso corpo.

Diz esta lenda, da qual há pelo menos três versões, que Shaktí casou com Shiva contra a vontade de seu pai, que era o rei de ariano de uma cidade-estado. Por vezes Daksha, pai de Shaktí, também é apresentado como se fosse uma divindade. Shaktí vai viver com o marido para o monte de Kailasha. Passados muitos anos Shaktí tem conhecimento de que o seu pai marcou uma celebração de culto aos deuses, uma faustosa celebração, mas foi convencido pelos sacerdotes a não prestar culto ao genro – Shiva. Assim não convidou para a festa nem a filha, nem o marido desta. Shaktí, indignada quer aparecer no local na data da celebração. Shiva desaconselha-a de participar em tal festejo. Ainda assim, Shaktí compareceu. Presente estava toda a alta sociedade ariana, outros reis de cidades-estado, nobres, sacerdotes, na lenda também os deuses dos arianos compareceram. Daksha quando a vê, insulta e injuria da pior maneira Shiva. Shaktí sentiu-se tão insultada e humilhada pelo desprezo do pai pelo seu amado esposo, que se lançou às chamas sacrificiais. Morreu queimada.
Shiva sente-se afrontado pela morte da amada Shaktí e decide punir o sogro. Então arrancou um dos seus cabelos da cabeça e a partir dele criou um poderoso herói, de nome Vírabhadra. Ordenou-lhe que comandasse os exércitos de Gana, os demónios de Shiva e que destruísse a cidade de Daksha. Vírabhadra destrói a cerimónia de Daksha, vence e dispersa os deuses presentes, vencendo-os. Afugenta os sacerdotes. E entrega Daksha a Shiva. Enfrentaram-se num combate singular, em que Shiva usou a arte marcial secreta, parte do Yôga, o Shiva Natarája Nyása, ou Tándava. E esmagou-o sobre os pés. Quando observamos uma estátua de Shiva no Tándava, verificamos o pormenor de Daksha, debaixo dos seus pés armado com escudo e espada, a ser esmagado. Outra interpretação diz-nos que Shiva esmaga sob os seus pés o demónio da ignorância.

Mestre João Camacho

Raízes longínquas das artes marciais

TEXTO PARA CÍRCULO DE LEITURA DE JUNHO 2019

Boas tardes,
Sensei Patrão, meu amigo e, neste momento, Tokugawa, solicitou-me que vos fizesse uma apresentação das artes marciais indianas, nestas 24 horas de Kumite. Onde se procurem as raízes longínquas das artes marciais. E assim o farei. Porém, nada poderei acrescentar ao que já sabeis. Pois as praticais.
O Todê, a mão chinesa, ou o Tê, a mão, ou o Okinawa Tê, a mão de Okinawa. Ou até Karate, a mão vazia, nada mais são do que desenvolvimentos das artes que me pediram para apresentar.
As artes da espada? Bom, os samurais, até ao sec. XII usavam uma espada direita, com duas lâminas. Como algumas espadas chinesas. E passaram a usá-la curva, após a invasão, ou a tentativa falhada de invasão do Japão pelos Mongóis. Estes usavam uma túnica de seda por baixo da roupa ou da armadura. E as setas saiam com facilidade em vez de rasgarem ainda mais os tecidos ao serem retiradas. E as lâminas da espada não cortavam os tecidos porque não conseguiam cortar as fibras da seda. Por isso criaram uma lâmina curta e afiada que permitia cortar as fibras da seda e os tecidos humanos que estavam por detrás delas. Mas, também nas artes marciais indianas se usaram estes dois tipos de lâmina e outros. Também por experiências similares.
Os portugueses chegaram à Índia a usarem duas espadas, como Myamoto Musashi. E antes de terem chegado ao Japão. Não usavam escudo, mas duas espadas. Uma mais longa e outra mais curta. E desenvolveram uma técnica que permitia usar a espada de modo diferente. Passando o dedo indicador para a frente da guarda. Mais tarde as espadas passaram a ter umas partes metálicas que permitiam proteger esse dedo. Este desenvolvimento permitia uma estocada na horizontal, com precisão e força suficiente para perfurar. E a posição do dedo permitia-lhes, em seguida puxar a espada com facilidade. Mas não tinham os indianos uma espada que se agarrava com o punho fechado e que se brandia totalmente na horizontal na estocada?
Também as artes da flexibilidade, como o Jujutsu, ou Judô lá as vamos encontrar. Temos aí técnicas de controlo, de chaves às articulações, estrangulamentos, assim como técnicas de projecção.
As artes do tiro com arco? Bom, conto-vos uma história de Arjuna, o maior guerreiro de sempre, na mitologia indiana. E praticante de Yôga. Ficou para a história como um extraordinário guerreiro, virtualmente invencível, fosse em combate individual com as mãos nuas ou com armas e armadura. Ou fosse em campo de batalha integrado num exército. Como Mestre de Yôga, deve ter-se presente o Bhagavad Gítá. Esta escritura que é considerada quase uma bíblia pelo povo hindu e escrita por volta de 400 a. C. é uma conversa entre Krishna, a divindade solar, o deus-menino, e Arjuna. Horas antes do início de uma gigantesca batalha onde morreram centenas de milhares de soldados. Batalha integrada numa guerra que envolveu muitos povos da zona central da Ásia, sobretudo a Índia e a China. Zimmer, um reputado Orientalista diz que as dimensões desta guerra, para a época, uma espécie de guerra mundial. Mas esta conversa, do Bhagavad Gítá, inicia-se com Arjuna a afirmar que teme combater pois reconhece do outro lado gurus, mestres, de grande valor. E como poderia ele, em consciência, matar tais sábios? E no decurso da conversa, Krishna transmite-lhe o ensinamento do Yôga.
Mas queria referir-vos o arco. Conta o Mahá Bhárata que num treino em que Arjuna e os seus irmãos treinavam as artes da guerra sob a orientação de seu Mestre, Drona, este pediu aos restantes discípulos e príncipes que apontassem a flecha, com o arco, para um pássaro que estava no cimo de uma torre o castelo. E foi-lhes perguntando, um a um, o que viam. Reponderam-lhe que viam a torre, as pedras, a argamassa entre elas, as ervas que cresciam nas fendas, o pássaro, as penas do pássaro, as asas, a cauda, as unhas, o mastro onde o pássaro estava poisado, etc… Drona, zangado, a todos foi dando umas pauladas com o bastão que tinha nas mãos. Quando perguntou a Arjuna, a resposta que recebeu foi: “Vejo o olho do pássaro!”. Ou seja, via apenas o local par aonde ia disparar. Via apenas um ponto – o olho do pássaro. E a mente concentrada num só ponto – êkágratá – é o mais elevado nível de concentração.
O que poderei dizer-vos mais? Olharemos para a arte marcial, dita do amor, o Aikido? A ideia de centro (madhyama), é patente na tradição das artes marciais indianas. A ideia de estar em comunhão com o Universo? Também. Tomar consciência do macro e do microcosmos é uma constante do Yôga e das raízes das artes marciais indianas.
Poderei falar-vos de mokuso, ou de zen? Terão certamente noção de que as técnicas de meditação têm no Yôga o nome, sânscrito, de dhyána. O sânscrito é uma língua muito gutural. Mais gutural do que o alemão ou o inglês. Ora, Bôddhidharma, ou Daruma, ou Bôddhisatwa, ou Damô, alguns dos vários nomes com que é conhecido, patriarca do budismo, decidiu ir pregar o budismo para a China, por volta do sec. V da era Cristã. E foi avisado várias vezes que a viagem era longa e perigosa, encontraria desertos e florestas, vales e montanhas, salteadores e animais selvagens. Como vós, nestas 24 horas de Kumite. E aconselharam-no a levar consigo uma escolta armada. E Daruma reflectiu sobre isso. E ponderou que não podia desistir da viagem por medo de ser morto. Que espécie de alto sacerdote ele seria se se revelasse tão apegado à vida e com tanto medo da morte!? Também não poderia ir com uma escolta militar armada até aos dentes que lhe garantisse segurança pois como teria, depois, moral para falar de ahimsa, a não-violência, se se fizesse acompanhar de uma escolta?! Acresce que, dizem as escrituras, na presença de um mestre que esteja em ahimsa a violência cessa. E sentou-se em estado meditativo e surgiu-lhe à mente, através dos canais intuicionais, Shiva, o criador do Yôga, a dançar uma das suas danças, o Tándava. E esta dança é uma antiga arte marcial, gupta vídya, ou seja de conhecimento reservado, contida no Yôga Antigo. E Daruma marchou rumo à China. Quando chegou à corte do Imperador, perguntaram-lhe como teria conseguido fazer tal viagem, sozinho, sem escolta e sobrevivido? E Daruma, respondeu – de mãos vazias. Dir-me-ão alguns de vós – Karate. Mas queria referir-vos as artes da meditação. E começo por este aspecto – mãos vazias. Vazias as mãos, como a mente – paragem das ondas mentais, como o ensina Pátañjali. Daruma foi expulso da corte. E foi radicar-se num mosteiro que veio a ficar célebre – Shaolin. E aí ensinou aos monges desse mosteiro, fracos, doentes e frequentemente agredidos, ensinou-lhes as técnicas de pránáyáma (expansão da bio-energia através de exercícios respiratórios), as de kriyá (técnicas de purificação), ásana (procedimentos orgânicos) , as de combate (Shiva Natarája nyása)e também as de meditação. Ensinou-lhes dhyána. Esta palavra sofreu uma corruptela, pois a língua chinesa é muito mais doce. E passou de dhyána, a dhyán e a ch’an. E foi como ch’an que os monges chineses levaram o budismo e as técnicas de meditação para o Japão a partir do sec. VI. Também aqui, o termo veio a sofrer uma alteração. Para a língua japonesa, ch’an, não soava bem. Então passou a zen.
Ora praticais toda a sorte de artes marciais indianas. O que posso dizer-vos mais?
Ah os nomes.
Como já vos disse, o Yôga é a mais antiga escola filosófica que existe na Índia. Em paralelo com o Sámkhya e com o Tantra. E a arte marcial contida no Yôga tem o nome de Tándava, ou de Samhara-Tándava. Devo dizer-vos que Hara é outro dos nomes de Shiva, o auspicioso, e que o fonema sam, significa “com”, “integrado”. Tándava é a dança da dissolução cósmica. No Yôga Antigo chamamos-lhe Shiva Natarája nyása – identificação com Shiva na sua forma de bailarino real.

Mestre João Camacho

A nossa linhagem é tântrica

Texto para reunião do Círculo de Leitura de Maio 2019

A nossa linhagem é tântrica. E o tantrismo é uma escola gupta vídya, ou seja, conhecimento, ciência secreta. Logo iniciática. O conhecimento passa da boca do Mestre ao ouvido do discípulo. Até dizem os shástra que a língua do mestre é o lingam que vai fecundar, de conhecimento, a yôni, os ouvidos, do discípulo. Mas ser secreto, ensina Shrí DeRose, significa, também, sermos discretos. E se o formos quase tudo nos é permitido. Isto para dizer que conto com essa discrição. E ela é um dever vosso.
Como também sabem, vou conversando com cada um de vós. Na sequência dessas conversas, em respostas a questões que me vão colocando, vou expondo, explicando.
Há locais de de grande poder. Tenho levado os meus discípulos a locais de grande poder. Por vezes só de dia. Pois, de noite, a correlação de forças às vezes altera-se. Por vezes levo-vos a uma prática de Yôga em antigos locais de culto e perto de necrópoles. São locais antigos, com seres igualmente antigos. Não são bons, nem maus. Quando aí se encontram sentem-nos. Vejo-os. Às vezes, quando de noite, já comentei com os que me acompanhavam, como a nossa querida senescal, que eles andam por lá, entre as pedras, como nós. Os seres que ali vivem, ou que por ali pululam, os que ali se manifestam, sobretudo à noite, mas também de dia, quando lá estamos sozinhos, sem ninguém, sem os domingueiros piqueniqueiros e beberolas, é possível pressenti-los. Reagem perante nós, à noite, como nós reagimos perante as plantas quando caminhamos numa floresta. Estão ali. Sabemo-lo. Mas não interagimos com elas – pelo menos o comum dos mortais. Como já vos referi, a Hispânia é referida pelos antigos como Ophiussa, a terra das serpentes, a terra dos dragani, os iniciados no poder da serpente, os senhores de dragões.
Neste local, há ali seres quase tão antigos como a formação daquelas rochas. Ignoram-nos, tal como as pedras o fazem.
Em tais locais mágicos é quando está muito frio o momento ideal para nos aproximarmos dos lugares pétreos e antigos, quando o nosso corpo se torna frio como a serpente, como o dragão e olhamos os lugares sagrados do mundo com o cérebro da serpente sagrada. Por outro lado, tal como o guerreiro de muita batalhas tem sempre cicatrizes de ferimentos antigos, também o que se dedica a estas artes, traz a marca do sofrimento estigmatizada na carne. Pois são práticas de ferreiros e alquimistas. E o que faz o ferreiro, mestre demiurgo, a não ser bater com o martelo, no metal que tem sobre a bigorna e assim revelar a sua estrutura íntima, transmutando-o em algo de novo, mais perfeito, mais elevado? Concluindo, na sua forja e na sua bigorna, um trabalho, que a mãe terra levaria milénios a fazer. Por isso é um demiurgo. Por isso revela a serpente que se oculta por detrás da carne. Por isso trabalha a carne, o corpo carnal, pois este dá acesso ao resto. E não é o Mestre de Yôga um demiurgo, um senhor de fogo, que trabalha com o martelo e a bigorna (ásana, pránáyáma e mantra), com fogo (kundaliní), para elevar o discípulo? E não o faz no corpo do discípulo?
Julius Evola, no seu livro Le Yôga Tantrique, refere que a ciência a técnica são democráticas. Têm uma estrutura, intrínseca de organização e de transmissão do conhecimento democrática. Qualquer um, medianamente inteligente, consegue ir à Universidade e fazer seus os conhecimentos actuais. Uma pistola produz o mesmo efeito nas mãos de um idiota, de um soldado, de um polícia ou de um chefe de estado. E é possível transportar qualquer um deles de avião, no mesmo número de horas. Mas assim já não é com o conhecimento iniciático. No âmbito da ciência estamos no plano ontológico do ser humano. E aí, os princípios são os da igual dignidade. Porém o homem é qualquer coisa que pode ser ultrapassada como ensinou Nietzche. A transcendência da condição humana, objectivo das disciplinas da auto-superação, como o SwáSthya Yôga, conduz o sádhaka a um estado existencial e ontológico (ontos – ser, logos – fogo; ciência; estudo). Ou seja, a um estado de ser superior ao do humano comum, consequência da superioridade de uma evolução que leva a que o yôgin seja um mutante, por comparação com o resto da humanidade. Ora, o calor, o despertamento da kundaliní, os siddhis que com isso se manifestam, são pessoais, intransmissíveis e não democratizáveis. E isto, esta profunda diferença, é a divisão fundamental entre a tradição e a modernidade. Pois a diferença real entre os seres é a base de um conhecimento e dum poder inalienáveis, não comunicáveis, logo exclusivos e esotéricos pela sua própria natureza e não por artifício, pois trata-se de um culminar de um desenvolvimento excepcional, que não se pode partilhar com toda a sociedade.
Nesta sequência, René Guenón, o grande orientalista francês da primeira metade do séc. XX, estabeleceu, para classificar uma fraternidade, um círculo interno, como detentora de autênticos processos iniciáticos, três características que se devem observar:

4- Necessidade de uma genuína qualificação interna dos seus membros
5- Necessidade de uma transmissão do saber esotérico e de auto-aperfeiçoamento interior de cada um dos membros
6- Necessidade de actualização activa subsequente, pelo esforço individual

Tais exigências devem-se ao facto de a iniciação não ser um mero ritual de passagem que celebra a aceitação numa fraternidade – por isso o “nós” adquire outra significação. Há “nós”, sim, mas com genuína qualificação interna dos seus membros e depois com a individual “actualização activa subsequente”. A iniciação é muito mais do que ser aceite num grupo. É, e pretende ser, um processo transformativo, de mutação, de auto-superação, que começa com um influxo energético, polarizado, pelo Mestre, proveniente dos domínios transcendentes e exercendo os seus efeitos ao nível dos corpos subtis. Porém, o que se envolve no processo iniciatório, deve ultrapassar-se também em provas físicas (aqui outra razão para a coreografia) e ser corajoso. O iniciado para vencer as provações e receber o conhecimento do Mestre, deve desenvolver, entre outras, as seguintes qualidades: saber, querer, ousar e calar-se.
A iniciação foi sempre reservada a alguns e nunca aberta a toda a gente. O impulso iniciatório transmuta o seu humano, se este não o detiver. Uma tradição iniciática usa tudo o que não é racional como elemento de transformação: o corpo; os desejos; as pulsões; a imaginação; a clarividência; a emoção; a intuição. Pois o processo só pode iniciar-se e ter continuidade de fora para dentro, do Mestre para o discípulo.

Mestre João Camacho

“Assim falava Zaratrusta” de Nietzche.

Texto para a reunião do Círculo de Leitura de Abril de 2019

Não concordo em muito com este filósofo que pensa a metafísica ocidental levando-a ao extremo do nihilismo (nihil – nada). Dado que o Ser é apresentado como algo dado e que não se põe em causa, este filósofo, pensando, de modo não sistemático, o sistema platónico, quer levar a metafísica a um ponto de negação do Ser. Devemos, também a Nietzche a construção de uma uma crítica de combate ao positivismo, com a afirmação da primazia de tudo aquilo que é interno e instintivo.
É também este filósofo que abre caminho, com a sua obra Origem da Tragédia, primeiro ao que, mais tarde a antropóloga Ruth Benedict (Padrões de Cultura), vem a transformar em modelo científico para análise da natureza das sociedades. Nietzche, nesta obra distingue dois grandes princípios que serão a matriz da cultura europeia: princípios fundamentais, e que irão servir de matriz para analisar a cultura Europeia: o Apolíneo e Dionisiaco.
O princípio Apolíneo (por referência ao deus sol, o deus Apolo), tem as características da serenidade, claridade, medida, racionalidade. Corresponde à imagem que se tem da Grécia antiga e clássica. Grécia dos grandes filósofos Sócrates e Platão. Mais tarde a Dr.ª Benedict vem a referir estas sociedades como sendo também sociedades de paz, de pouca inovação e governadas por idosos, onde têm uma posição respeitável e respeitada.
Já o princípio Dionisíaco (do deus Dioniso – se se recordarem do estudo comparativo de Alain Daniélou, Dionisio é o Deus de Niza, ou seja Shiva), simboliza as forças impulsivas, o excesso transbordante, o erotismo, a orgia, a afirmação da vida e dos seus impulsos (força, vontade, poder, energia). Para a Dr.ª Benedict, são sociedades governadas por jovens, por impulso e pouca reflexão.
Estes princípios estavam presentes na tragédia e na cultura grega, até Sócrates. Sócrates, como asceta que também era, acaba por conseguir o estado de Sattwa, embora não use este termo, pois submete os excessos dos impulsos vitais e a sua energia excessiva, sem os negar, ou ignorar, à análise e escolha da razão. Para Nietzsche tal é o início da decadência da tragédia. Para Nietzche a dupla Sócrates/Platão marca na cultura ocidental a repressão dos instintos vitais e a negação do prazer.
Porém, Nietzche não deixa de ser influenciado por aquilo que combate e nega. Aliás afirmar algo ou o seu contrário, acaba por ser, em termos filosóficos muito semelhante. Pois a concepção filosófica deste pensador assenta num conceito muito caro à Grécia clássica – o princípio do eterno retorno. Tudo tende para o seu início. O cidadão grego, pode viajar por todo o mundo que tenderá a retornar à polis de onde saiu. O universo, o cosmos, pode organizar-se que tenderá a retornar ao seu início. Ou seja, tudo voltará a repetir-se num novo ciclo. Este pensamento leva Nietzche a propostas políticas que são o suporte filosófico do fascismo e do nazismo. Com a decadência anunciada por Sócrates/Platão, a decadência da cultura ocidental acentua-se com o cristianismo e consagrada pelos regimes democráticos e a ascensão dos pobres e desfavorecidos ao poder. Tal decadência só terminará com a transformação do homem, que deverá transmutar-se e elevar-se. Deste homem transmutado deverá surgir o Super-Homem. E apenas essa pequena elite, dos que alcançaram tal condição, deverá governar. É óbvio que este pensador alemão se opõe ao igualitarismo, ao humanismo e à democracia.
Nos textos de Nietszche há muito de verdade no caminho de ascese preconizado pelo Yôga. Atente-se:
«O corpo purifica-se pelo saber; eleva-se por tentativas conscientes; para o servidor do conhecimento todos os instintos são sagrados; e, chegados ao cume, a alma enche-se de alegria.»

«Imitai o vento que se lança para fora das cavernas da montanha. Ele quer dançar ao som da sua própria flauta, e os mares estremecem e ondulam debaixo dos seus passos.»

«Elevai os vossos corações, meus irmãos, erguei-os alto, e mais alto ainda! Erguei também a perna, bons dançarinos, e melhor ainda: mantende-vos um pouco sobre a vossa cabeça.»

«Nesse instante, o vosso corpo eleva-se acima de si próprio e ressuscita. A sua alegria encanta o espírito que se torna criador; e, tornado criador, ele avalia, ama e prodigaliza as suas dádivas a todas as coisas.»

Mestre João Camacho

RAMAYANA

Texto para a reunião do Círculo de Leitura de Março de 2019

 

A Bela Ayôdhya estava cheia de guerreiros, como a caverna de uma montanha está
cheia de leões; seus guerreiros eram impacientes e mortais para os inimigos. Cada um deles
era capaz de derrotar, sozinho, dez mil carros, mas nenhum se aventurava a acomete-las.
Mantinham a cidade segura e tentavam desagravar todo e qualquer agravo que se lhes
deparasse.
(….)
Sentinelas correram para Malyavan, e os bravos Nómades da Noite ergueram-se no céu. Seus carros e elefantes chegaram correndo pelo ar; os graciosos cavalos de guerra, que voavam céleres, vermelhos, brancos e azul-pálidos, moviam-se lentamente em círculos e escarvavam o firmamento. Garuda voou para o ataque. Narayana ficou escondido pelos enxames de setas dos demónios, que batiam duro, voavam de verdade e estavam com sede.
Os cavalos dos demónios tropicaram. O barulho do arco de Narayana petrificou-lhes os elefantes, que caíram do céu e se quebraram. Os pendões de guerra agitavam-se loucamente, o sangue inundava os rios.
(….)
Nas ruas, carregando tochas, Hanuman viu as patrulhas nocturnas de guerreiros rakshasas de todas as nações de demónios, trajados segundo a mais rica e régia pompa
heráldica, ou estadeando penas e rémiges, ou usando peles cruas em decomposição, ou caminhando nus com a cabeça raspada. Estavam armados de maças tachadas, facas, zarabatanas ou punhados de relva santa convertida, por artes mágicas, em lanças e azagaias.

TÁNDAVA

Um dos sistemas indianos antigos é designado como Tándava. O Tándava, ainda hoje conhecido como uma das «danças» de Shiva, era na uma arte marcial secreta, praticada como técnica suplementar do Yôga pré-clássico, o Yôga de Shiva, com mais de 6000 anos. Era um
Yôga Dakshinacharatántrika Niríshvarasámkhya.
Deste sistema provirá o Kempo (designação japonesa para o sistema de luta de Shaolin).
O Tándava, a dança da delimitação do espaço vital. É parecido com um Kata das artes marciais, dos estilos internos e constitui uma arte marcial secreta muito antiga. Kim Min-Ho, afirma que na Índia, existem métodos de combate estruturados, baseados nas técnicas de Yôga.
Por sua vez, Patrick Denaud declara aspectos bastante interessantes. Desde logo, que nesta arte marcial indiana as técnicas utilizadas são próximas das do Yôga. Sobre as origens do Kalaripayat diz este autor que se confunde por vezes com as origens do Yôga. Mas, o mais interessante
é chegar, neste livro, à secção “Limpeza e purificação do corpo”. Isto quando o autor começa a descrever as técnicas utilizadas, como os pontapés, os socos, o tiro com arco, etc… Mas na limpeza e purificação este autor compila as seguintes técnicas: Dhauti – Empregam-se quatro procedimentos para purificar o corpo: a lavagem estomacal (antardhauti), a limpeza da cavidade
bocal (dantadhauti), a limpeza do peito (hrddhauti) e a purificação do recto (múláshôdhana). E indica
ainda outras técnicas contidas no shat karma, nomeadamente vasti, nêti, lauliki, trátaka, kapálabhati.
Numa obra tardia, do séc. X, Shiva, designado por Tripurahara, o destruidor das três cidades dos Asura, também é apresentado como arqueiro:

O teu carro era a Terra, e Indra o teu cocheiro,
E o Senhor das montanhas eram o Sol e a Lua,
E Vishnu a tua flecha,
Quando ias destruir pelo fogo,
Tripura,
Aquele pedacinho de palha!

Shiva também tem um exército (buthagana – exército de demónios) do qual Ganêsha é o comandante-em-chefe. Para além de ser o Deus da Guerra, como acima se referiu, Shiva é também le dieu des soldats, como surge em L'Hymne aux Cent Rudras de Vájaseneyi
Samnita (Yajur Vêda, 16, I)
Tu portes un arc jaune, un arc d’ or
Qui agride frappe mille, qui tue cent, ô Dieu chevelu.

TENJIKU-NURANOKAKU

Arte marcial do sul da Índia, igualmente antiga, cujos mestres a entendem como um sistema de combate muito eficiente e uma forma de o guerreiro se preparar para a guerra, mas acerca do Yôga, dizem ser a arte suprema.
É considerada a origem directa do Shorinji Kempo (japonesa) e do Kalaripayat (indiana), também designado por Vajramushti, punho como um raio.
Não se sabe ao certo qual das artes marciais indianas acima indicadas é a mais antiga, mas poderá pensar-se que a mais antiga será o Tándava, técnica suplementar do Yôga. Min-Ho confirma-o dado que en Inde, ont existé des méthode de combat structurées, basées sur des techniques de Yôga, tanto mais que Shiva, o criador do Yôga, é muitas vezes representado como
guerreiro, que tem como emblema principal a trishula, a lança tridente, a sua arma como herói.
Shiva é muitas vezes representado portando armamento como um guerreiro. E representado com uma espada (….) um laço, um escudo e ainda armado de arco e flechas, sendo designado, quando assim é, como Sharva (o arqueiro). Ou ainda, nas palavras de Danielou
Shiva apparut (….) portant un arc et un trident, o arco de Shiva tinha o nome de Pinaka. E, maxime, Shiva é também o Deus da Guerra (somaskanda).
Sistemas de combate foram estudados e praticados na China, ao contrário do que é hábito afirmar, muito antes da ida de Bôdhi Dharma para Shaolin (ano 525 d. C.). Parece que só se pode especular, contudo é certo que a Índia manteve estreitos contactos histórico-culturais com
muitos países do Oriente Antigo e com o mundo greco-romano (….) já era habitada na mais remota
antiguidade e que já no VII milénio a. n. e. a população cultivava muitos cereais, tinha domesticado o gado
bovino e estabelecido estreitos contactos com as culturas contemporâneas do Irão e da Ásia Central. A Índia
passou a fazer parte do grupo dos mais antigos focos de cultura do Oriente.
A influência deste foco de cultura fez-se sentir com grande intensidade no Sueste
Asiático, na Ásia Central e no Extremo Oriente. E é igualmente certo que sur le plan des
pratiques psychosomatiques et psychothérapeutiques, on constate une ressemblance étonnante entre les
pratiques du Yôga indien et celles du taoisme chinois.

Camacho, João; Original Kano Jûdô (1882-1938) Monografia para o exame para rôkudan em
Jûdô. Pg. 18-21