Texto para Círculo de leitura de Fevereiro de 2019
Simbolismos indianos do tempo e da eternidade
Função dos mitos
Os mitos indianos, antes de serem «indianos», são «mitos», quer dizer que fazem parte de uma categoria particular de criações espirituais da humanidade arcaica; por conseguinte podem ser comparados com qualquer outro grupo de mitos tradicionais. Antes de apresentar a mitologia indiana do Tempo, importa-nos recordar, de passagem, as relações íntimas existentes entre o Mito, como tal, como forma original do espírito, e o Tempo. Porque, além das funções específicas que preenche nas sociedades arcaicas, e sobre as quais podemos dispensar-nos de nos deter aqui, o mito é importante também pelas revelações que nos fornece sobre a estrutura do Tempo. Como se está de acordo em
admitir hoje, um mito relata acontecimentos que têm lugar in principio, isto é «nos princípios», num instante primordial e intemporal, num lapso de tempo sagrado. Este tempo mítico ou sagrado é qualitativamente diferente do tempo profano, da duração contínua e irreversível na qual se insere a nossa existência quotidiana e dessacralizada. Relatando um
mito, reactualiza-se de certo modo o tempo sagrado no qual se cumpriram os acontecimentos de que se fala. (Eis porque nas sociedades tradicionais se não pode contar os mitos em qualquer altura nem de qualquer maneira: só se pode recitá-los nas estações sagradas, na selva e durante a noite, ou em redor do fogo, antes ou após os rituais, etc.). Numa palavra, supõe-se o mito passado num tempo – se nos permitem a expressão –
intemporal, num instante sem duração, como certos místicos e filósofos vêem a eternidade.
Esta verificação é importante, pois segue-se que a recitação dos mitos não é desprovida de consequências para quem os recita nem para quem os escuta. Pelo simples facto da narração de um mito, o tempo profano é, pelo menos simbolicamente, abolido: narrador e auditório são projectados num tempo sagrado e mítico. Algures tentámos mostrar que a abolição do tempo profano pela imitação dos modelos exemplares e pela reactualização dos acontecimentos míticos, é como uma nota específica de toda a sociedade tradicional e que essa nota basta, por si só, para estabelecer a diferença entre o mundo arcaico e as nossas sociedades modernas. Nas sociedades tradicionais as pessoas esforçavam-se consciente e voluntariamente, por abolir periodicamente o Tempo, por apagar o passado e regenerar o Tempo, através de uma série de rituais que reactualizavam de certo modo a cosmogonia. Podemos deixar de entrar aqui em desenvolvimentos que nos afastariam muito do nosso assunto. Contentemo-nos em recordar que um mito arranca o homem do seu tempo próprio, do seu tempo individual, cronológico, «histórico», e o projecta, pelo menos simbolicamente, no Grande Tempo, num instante paradoxal que não pode ser medido porque não é constituído por uma duração. O que é o mesmo que dizer que o mito implica uma ruptura do Tempo e do mundo circundante; ele realiza uma abertura para o Grande Tempo, para o Tempo sagrado.
Pelo simples fato de escutar um mito, o homem esquece a sua condição profana, a sua «situação histórica», como se diz hoje. Não é absolutamente necessário participar numa civilização histórica para poder dizer de alguém que esse alguém se encontra numa «situação histórica».
O Australiano que se alimenta de insectos e de raízes encontra-se, também ele, numa «situação histórica», ou seja, numa situação bem delimitada, expressa numa certa ideologia e sustentada por um certo tipo de organização social e económica; na espécie, a existência do Australiano representa muito provavelmente uma variante da situação histórica do homem paleolítico. Porque a expressão «situação histórica» não implica necessariamente «a história» no sentido maior do termo; implica somente a condição humana como tal, isto é, uma condição regida por um certo sistema de comportamentos. Ora, tanto um Australiano como um indivíduo pertencente a uma civilização muito mais evoluída, um Chinês, por exemplo, ou um Hindu, ou um camponês de qualquer país europeu, ao escutarem um mito esquecem em parte a sua situação particular e são projectados num outro mundo, num Universo que não é já o seu pobre e pequenino Universo quotidiano.
Lembremos que, para cada um destes indivíduos, tanto para o Australiano como para o Chinês e para o Hindu e o camponês europeu, os mitos são verdadeiros porque são sagrados, porque falam dos Seres e dos acontecimentos sagrados. Por conseguinte, recitando ou ouvindo um mito, retoma-se o contacto com o sagrado e com a realidade e desta feita ultrapassa-se a condição profana, a «situação histórica». Ultrapassa-se, noutros termos, a condição temporal e a suficiência obtusa que é o quinhão de todo o ser humano pelo simples fato de todo o ser humano ser «ignorante», quer dizer que ele identifica-se a si e identifica o Real, com a sua própria situação particular. Porque a ignorância é, antes de
mais, essa falsa identificação do Real com o que cada um de entre nós parece ser ou parece possuir. Um político crê que a única e verdadeira realidade é o poder político; um milionário está convencido de que só a riqueza é real; um erudito pensa o mesmo das suas investigações, dos seus livros e dos seus laboratórios e assim por diante. A mesma tendência encontra-se igualmente nos menos civilizados, nos «primitivos» e nos
«selvagens». Com a diferença de que entre estes os mitos estão ainda vivos e, por conseguinte, os impedem de se identificarem completamente e continuamente com a não-realidade. A recitação periódica dos mitos arrasa os muros levantados pelas ilusões da existência profana. O mito reactualiza continuamente o Grande Tempo e deste modo projecta o auditório num plano sobre-humano e sobre-histórico que, entre outras
coisas, permite a este auditório aproximar-se de uma Realidade impossível de atingir no plano ida existência individual profana.
Eliade, Mircea; Imagens e símbolos, Ed. Arcadia, p. 59-61