Os dravidianos

Um povo novo, de pele morena e cabelos lisos, que fala uma língua aglutinante, aparece na Índia, entre os povos munda, durante o neolítico. Esse povo e a sua religião, o shivaísmo, iriam representar um papel fundamental na história da humanidade. A origem desse povo, que denominamos dravidiano (do prakrit damila: tâmul), é obscura. Segundo a tradição, teria vindo de um continente, tragado pelo mar, situado ao sudoeste da Índia. Esse mito faz pensar no mito de Atlântida. Não é impossível que outras ramificações do mesmo povo tenham chegado a África e ao Mediterrâneo; daí a dificukdade em atribuir, com certeza um lugar de origem à revelação shivaísta ou dionisíaca.

“O povo que criou e desenvolveu a primeira civilização greco-oriental, cujo principal centro foi a ilha de Minos, apesar de suas relações com a Mesopotâmia e o Egipto, parece não ter sido nem ‘grego’, nem semítico, nem indo-europeu… É possível supor… uma disseminação do povo em questão através de toda a Grécia… há na língua grega um substracto de palavras de origem estrangeira… que devem ter sobrevivido através dos tempos, apesar da ocupação do país por diversos invasores… Discute-se ainda sobre a origem, se anatoliana, se pelasga, e assim proto-indo-européia… A língua formada desse modo foi falada na Egeia, em toda a Grécia e no sudoeste da Anatólia” (Charles Picard, Les religions préhelléniques, pp. 53-54).

A língua e a cultura dravidianas, que ainda hoje são as das populações do sul da Índia, parecem ter estendido a sua infkuência, da Índia ao Mediterrâneo, antes das invasões arianas. Foi essa civilização, cujos vestígios linguísticos, tais como o georgiano, o basco, o peul, o gancho, os dialectos do Beluchistão, ainda existem nas regiões periféricas, que serviu como veículo ao antigo shivaísmo. Parece que o sumério, o pelasgo, o etrusco, o lídio, assim como o eteocretense, pertenceram à mesma família linguística. As relações do sumério, do georgiano e do tâmil não deixam nenhuma dúvida. Por outro lado, a língua basca (eskuara) e o georgiano têm a mesma estrutura e, ainda hoje, possuem mais de trezentas e sessenta palavras em comum. As danças e os cantos bascos são, aliás, aparentados com os dos iberos do Cáucaso. Heródoto (Histórias, I, 57) fala da língua bárbara que era utilizada pelos Pelasgos que, em sua época, teriam vivido no sul da Itália e no Helesponto. Ele acreditava que a língua pelásgica estivesse estreitamente ligada ao etrusco e ao lídio. São Paulo, que naufragou em Malta em 69 d. C., menciona a língua “bárbara” (não ariana) que ainda era falada ali. “O lugar de origem dos Pelasgos situava-se além do mar Negro. Teriam vindo a Creta por volta do começo do segundo milénio a. C. O nome do lugar onde residiam, Larisa, comprova-o.” (R. F. Willets, Cretan Cults and Festivals, p. 133).

Segundo Jacques Heurgon (La vie quotidienne chez les étrusques, pp. 14-15): “Os etruscos não seriam recém-chegados na Itália, mas os primeiros ocupantes de uma terra, cuja soberania as invasões indo-europeias haviam arrebatado, sem eliminá-los completamente… Eram descendentes irredutíveis da idade do bronze… As relações entre o etrusco e o caucásio, o lício, a fala de Lemmos, [indicam a existência] de uma língua etrusca asianica, usada antes na Itália, na península balcânica, no mar Egeu e na Ásia Menor [e repelida] pela pressão linguísystica dos invasores.”

A linguística eteocretense falada pelos habitantes de Praisos, em Creta, até ao século III a, C., era, portanto, um vestígio da língua original falada na Grécia, em Creta e nas ilhas, assim como no sudoeste da Ásia Menor antes dos gregos. Inscrições de Parisos em caracteres gregos ainda não foram decifradas.” (R. F. Willetts, Cretan Cults and Festivals, p. 136) Aparentemente essa era uma língua dravidiana. Ao que parece, os linguistas modernos não pensaram em utilizar as línguas aglutinantes dravidianas, ainda vivas no sul da índia, como base de suas pesqeuisas sobre as linguagens antigaos do mundo mediterrânico.

O mito da origem ariana das civilizações, que René Guénon denominava “a ilusão clássica”, está longe de ser esquecido. As línguas dravidianas têm uma origem comum com as línguas fino-ugrianas (baltofinês, húngaro, volgáico, uralianao, samoiedo) e altaicas (turco, mongol, esquimó), mas parece que a divisão dessa grande família linguística e do grupo dra´vido-mediterrãn icao, durante o paleolítico, é muito anterior á formulação do shivaísmo tal como o conhecemos.

No Médio Oriente e em todo o mundo mediterrânico, estamos, na realidade, em presença de uma importnte civilização de origem asiática ou pelo menos ligada linguisticamente à Ásia antes das invasões arianas. Por outro lado, os monumentos megalíticos, os mitos e as tradições religiosas comuns á Índia e ao Mediterrâneo indicam que essa civilizção era provavelmente o veículo do shivaísmo.

Desde o quarto milénio, “o mito de Anat pode ser classificado entre os elementos comuns da velha civilizção agrícola que se estendia do mediterrâneo oriental até à planície gangética.”. (M. Eliade, Historie dês croyances et d~es idées religieuses, p. 169)

Após o último glaciar, as grandes migrações culturais, que vão da Índia a Portugal, começaram, num clima finalmente amis ameno, durante o quinto milénio, mas é apenas a partir do terceiro milénio, que encontramos vestígios, a nível civilização avançada, de culturas que levam a marca inegável do pensamenteo, dos mitos, dos símbolos shivaístas e que são todas aproximadamente contemporâneas, quer se trate das cidades do Indo, da Suméria, de Creta ou de Malta. À mesma cultura pertencem os satuários megalíticos que se encontram por toda a parte, da Índia ao Extremo Ocidente, mas, as vezes, são os únicos vestígios que sobreviveram dessa prestigiosa civilização, como é o caso em Armórica e nas Ilhas Britânicas. O facto de que os principais vestígios arqueológicos sejam contemporâneos, mas a níveis técnicos aparentementw difrentes, não exclui a presença de uma civilização elevada. Sua preservação depende unicamente do emprego de certos materiais e de condições climáticas ou, às vezes, da destruição total de certos sítios pelos invasores ou pelas catástrofes naturais, tais como as explosões de Santorin ou do Vesúvio.)

Alain Daniélou, Shiva e Dionísio, pp. 14-16.

O Último Samurai

Meus queridos

 

Na reunião do departamento de Yôgacine do próximo sábado, dia 15 de Setembro de 2007, iremos ver o filme O Último Samurai.

 

Nalguns dos “apontamentos” que ao longo deste ano fui produzindo para vós, referi várias vezes a relação mestre/discípulo e o que de honra, de tradição, de lealdade de fidelidade havia em tal. Alertei-vos também para o facto de o artístico estar tantas vezes a um passo do intuicional. Por isso mantemos este departamento. Referi-vos a morte e também, a vontade necessária a desenvolver uma vontade poderosa, capaz de por termo à vida, que no tantrismo se chama de iccha mrityu.

 

Vou deixar-vos algumas notas, que vos guiem no visionamento do filme:

 

A civilização hindu é tida pelos estudiosos da filosofia ao longo da história da humanidade, como a civilização da consciência, da meditação e da interioridade. A civilização que concebe o conceito de dárshana – visão, ponto de vista. A mera visão do mestre pode ser um instante de grande evolução do discípulo. A mulher tântrica que, num momento, concede a um homem, a um dado homem, um dárshana do seu corpo, ou de uma parte deste, permite-lhe essa visão, concede-lhe essa graça, como se de uma deusa se tratasse. E na verdade é-o nesse instante. Esse homem deve ficar-lhe grato para sempre – claro que para o entender tem de ser também um homem tântrico. Esse instante é também absolutamente inspirador para esse homem. Consiste para ele numa verdadeira bênção, com toda a carga emotiva que queiram associar a tal conceito – bênção. Mas é disso mesmo que se trata. E, pode ser também, um momento que o impulsiona para outro estágio evolutivo.

 

Dárshana, significa, também, clarividência. Significa que estamos despertos, não só ao ritmo a que os objectos nos surgem aos sentidos, mas também com uma consciência activa, lúcida e sabedora de que os sentidos, só por si, nos limitam. Logo é necessário ir além deles. Os objectos que nos vão surgindo aos sentidos, são a base de reflexões futuras. O ver, a visão, proporcionada pelo dárshana é um ver teleológico, ou seja, um ver que tem uma finalidade, orienta-se para um fim. é um ver para a luz, para a luz que ainda não alcançámos, mas procuramos.

 

Nesta civilização, começou a entender-se que o homem sábio, era um homem de bem. Ora o homem para ser de bem, chega lá através da virtude e da harmonia dos ritos. E essa virtude não é a moral como a entendemos. É a virtude de fazer corresponder as palavras às coisas. Quando isso acontece a ordem e os ritos estão assegurados. Por isso o sábio não fala do que não sabe. Por isso também não responde quando a pergunta está mal formulada. Em consequência, têm-se que o governante deve acima de tudo, corrigir os nomes das coisas. Se os nomes não forem correctos, o discurso não é coerente. Assim o homem de bem é aquele que só fala quando tem conhecimento do que fala.

 

Estas razões levam-nos a uma perspectiva ontológica na qual temos de concluir que se sábio é o homem que faz corresponder as palavras, os nomes, às coisas, então, a via (marga), o caminho (yana), é o próprio homem que o percorre. É o homem que alarga a via. Podemos dizer até que o homem é a própria via. Um dia, a propósito de outro assunto, numa conversa unilateral com um de vós, este disse-me que eu tinha ansiedade de percorrer o caminho, de alcançar a meta. Respondi-lhe que o caminho, esse faz-se caminhando. A meta alcança-se chegando. E isso nunca se deve perder de vista. Não há caminho para além daquele que cada um de nós percorre. De que vale o caminho, ainda que o mestre o indique se o discípulo não o percorre?

 

Isto é assim, pois a palavra, mesmo a dita pelo Mestre não pode traduzir exactamente o que é o real, nem o que é o caminho. Como Demócrito (outro filósofo grego) ensinou, “as palavras são a sombra da realidade”.

 

Ora o homem de bem, o homem sábio é aquele que procura viver em harmonia com cada instante, mesmo na busca da auto superação. Mesmo nos momentos menos bons. Porque já não vive as emoções, não porque não as quer. Não porque as rejeitou, mas sim porque são as emoções que vivem nele. São emoções perfeitas, belas, que passam por ele. E não ele que passa por elas. O homem de bem tem emoções perfeitas. Se ama, fá-lo verdadeiramente, assim como odeia, com ódio. Antes de mais o sábio age porque tem de agir, sem consciência de que é sábio. Age com a inocência da criança. Por isso o convívio com a criança é tão difícil como é com o sábio, para aqueles que procuram a ilusão. Pois ambos apontam o que têm a apontar, mesmo quando não gostamos. É a história de só a criança disse: “o rei vai nú.”.

 

Porém, não obstante, sempre houve, da parte da civilização hindu, uma procura de compreender e explicar o real. Sempre houve o desenvolvimento de uma filosofia da linguagem que procura compreender, procura explicar e analisar o real e as suas categorias.

 

A civilização hindu, gradualmente acabou por se desenvolver como uma civilização ética. Tal atitude já está patente no Rig Vêdá e nas Upanishad.

 

Mas, na verdade, a ética é profundamente desenvolvida no Bhágavad Guitá.

 

Esta obra tem como estruturas básicas da ética, o karma, a transmigração das almas e a hierarquia do real.

 

Sem avançar muito por estes temas, expressa-se no Bhagavad Guitá o valor da iniciação, sendo que sábio é o que nasceu duas vezes. Uma aquando do nascimento biológico, outra aquando do encontro consigo próprio.

 

Esta obra justifica o caminho guerreiro como um meio de evolução pessoal do guerreiro e como fonte de aprendizagem. Claro que se refere à guerra em que o confronto se faz cara a cara. Vê-se o adversário antes de o matar.

 

Nesta obra, Arjuna, fraqueja perante a ideia de ir matar, no exército inimigo, tanto familiares, como gurus. Perante tal ideia Arjuna prefere sofrer a injustiça do que cometê-la. Krishna interpela-o e trata-o, trata os guerreiros, como sábios que devem cumprir o dharma, o dever, e devem, imperturbavelmente destruir o corpo se necessário for.

 

Desenvolve-se uma filosofia ética, baseada na atitude sábia do guerreiro perante a guerra.

 

Veremos essa atitude a desenrolar-se perante os nossos olhos no filme a que assistiremos. Tanto do guerreiro ocidental, como dos guerreiros japoneses. Veremos como o guerreiro ocidental se encontra perdido pelos seus actos em guerra e como os japoneses não, exactamente pela dimensão ética do sábio guerreiro.

 

Veremos a lealdade até à morte, do samurai Katsumoto, perante o imperador. Veremos a honra com que os samurais lutam e são leais.

 

No Japão desenvolveu-se, até ao rito, a ética guerreira que já se encontra sistematizada no Bhagavad Guitá.

 

Verificaremos o valor de abhyása, a prática diligente, como modo de estar perante a vida. É o valor da acção disciplinada – dharma.

 

Deixo-vos parte de um texto que escrevi acerca deste filme, numa conversa unilateral:

 

“A busca tenho de a fazer sozinho, como tantas coisas na vida tenho feito, como lobo solitário. Pois tantas vezes me interrogo: terei coragem? Serei ousado? Não uma coragem perante testemunhas, uma coragem fácil, mas sim uma coragem de solitário ou de águia, que não tem ninguém por testemunha. Aquele que tem coragem, ainda a propósito do medo da morte, é o que conhece o medo, mas domina-o; é o que vê o abismo, mas consegue lançar-se neste, com a esperança de voar, ou a certeza de cair. Aquele que olha o abismo com olhar de águia, mas que lida com ele com garras de águia, sem testemunhas, esse tem coragem. Tê-la-ei eu? Ponho-me à prova uma e outra vez.

Sobre a morte, refiro um dos meus filmes preferidos – O Último Samurai. Neste filme, e refiro-o de memória, já num dos últimos capítulos, uma das crianças com que o oficial americano, agora já samurai, vive, interroga-o sobre se este irá lutar contra o exército que aí vem atacá-los. O americano responde que sim, “porque eles virão para destruir o que aprendi a amar”. Esta é uma motivação tão intensa, tão elevada, tão sentida, que não há como não nos sentirmos identificados. Qual de nós não lutaria por aquilo que aprendeu a amar? Eu faço-o.

Mas na continuação da conversa, a criança diz ao samurai americano, “eu teria medo de morrer em batalha”. O americano responde-lhe “eu também”. E a criança estranha tal resposta, vinda de um guerreiro de mil batalhas e diz-lhe, “mas já travaste tantas batalhas”. O samurai diz-lhe “e tive sempre, sempre medo”. E este tem coragem, pois conquista o medo.

No fim do filme, quando o chefe do clã, Katsumoto, já ferido, quer morrer, o americano tenta dissuadi-lo, e aquele responde-lhe “recuperaste a tua honra, deixa-me morrer com a minha.” E no instante em que avança para a espada do americano e é por esta trespassado, olha as cerejeiras, que varridas pelo vento, deixam cair as suas flores, a que o samurai se quer assemelhar com a pureza com que deixa cair a sua vida.

Neste, filme, num primeiro confronto entre o jovem exército japonês e o clã de Katsumoto, o americano luta como o tigre, aliás, expresso no estandarte da lança com que luta. O espírito do guerreiro, que não desiste da luta, ainda que a morte seja a consequência mais provável.

Em momentos anteriores deste filme, quando o americano está prisioneiro, numa das visitas que faz a Katsumoto, este tem a mão direita junto das flores de uma cerejeira. A mão que pega a espada, a mão que dá a morte, mas que também dá a vida, a mão que escreve a poesia, a mesma que toca a beleza e a perfeição da flor da cerejeira.

Nesse local, o samurai diz ao americano: “não temes a morte mas, às vezes, deseja-la.”

Não a teme, mas tem medo de morrer. Que contradição. Mas é assim mesmo. Se a morte fosse algo que se aceitasse naturalmente, como o respirar, não precisaríamos de desenvolver iccha mrityu para, por acto de vontade, pormos termo ao corpo físico, darmos a morte ao nosso corpo.

Mas que posso dizer mais? Há mais sabedoria numa nuvem sombria do que em mim. Ao menos a nuvem sombria, a da tempestade, dá a luz do raio.”

 

Neste filme veremos como estes guerreiros, sobretudo, numa primeira fase, o samurai Katsumoto usa a mente como uma lâmina tão afiada como a sua espada.

É a ética ritualizada. É a acção disciplinada. É a sabedoria, a honra, a lealdade até à morte.

 

SwáSthya

(C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya

Discípulo do Mestre DeRose

O Tigre e o Dragão. O Amor e a Morte.

Apontamentos

 

O texto que agora se apresenta, serviu de apoio ao Departamento de Yôgacine,

aquando da exibição do filme O Tigre e o Dragão.

 

O Tigre e o Dragão. O Amor e a Morte.

 

Neste filme pode observar-se a relação entre mestre e discípulo. Como pode ser intensa, como pode ser traída, como pode o discípulo ir além do mestre. Como o poder que os conhecimentos iniciáticos proporcionam pode ser atraente. Uma proposta de como funciona o siddhi da levitação. Mas essencialmente a força do amor. E como este se pode constituir um obstáculo, para uma linhagem brahmachárya, e como, em simultâneo pode ser libertador para aquele que o aceita. Veremos o grande herói ser detido na meditação, pelo amor que sente por uma mulher. Vemos como isso lhe impede os mais elevados estados de iluminação. Veremos também, no fim, que prefere assumir esse amor, morrendo por ele, e ainda assim libertar-se, pela sua força, no momento do mahá samádhi. Para além de tudo o mais é um filme de grande valor estético, de grande beleza visual e com grande poesia – só por isso já valeria vê-lo.

Veremos como, também por amor, para além do herói, outras duas personagem se libertam, através do mahá samádhi, num abandono total, de um desapego tão grande, até à própria vida, como só é capaz quem ama com a intensidade altruísta dos grandes amores. E falamos do amor de um homem por uma mulher. Duma mulher por um homem. Vemos também o amor traído de uma mestra, que me verdade não o era. Claro que, neste filme, a morte, como fonte de libertação, está patente. É um filme oriental, onde a morte, sobretudo quando escolhida, quando resulta de um acto de vontade, é valorosa acima de tudo – recordar-se-ão, aqueles que participaram no meu último seminário dedicado à meditação, do CFIY, ter eu referido um dos poderes que o tântrico deve desenvolver: iccha mrityu – o poder de matar o corpo por um acto de vontade. Vejam, como este filme o apresenta como algo de tão sublimemente belo, pois essa vontade resulta de um amor intenso.

E a propósito do filme, que veremos um dia destes, deixo-vos alguns, poucos apontamentos que me limitei a coligir sobre o amor. Espero não fazer como alguns catedráticos de anatomia que falam dos órgãos sexuais e do acto sexual de modo a tirarem a vontade ao mais excitado.

Refiro-me ao amor, por ser Primavera, talvez. Estimula as nossas sensações e as nossas emoções. Mas refiro-me ao amor, também e sobretudo, porque está patente no filme e há que separar águas. Nos textos e nos mestres brahmachárya, o amor surge tão só como algo de universal – amamos a criação, amamos o cosmos, amamos todos os seres, humanos e os outros, pois no grande plano cósmico somos todos irmãos, amamos a divindade a que nos dedicamos e pronto – quando ao resto, ensina Shivánanda, não brinque com as mulheres, nem ria com elas; ele lá saberá a que coisas poderá conduzir o brincar e rir com as mulheres.

Mas, as escrituras, também referem outro tipo de amor. O amor do bhakta, aqueles que adora; o amor próprio de bhakti – a adoração. Bhaktí é o aspecto afectivo da tomada de consciência do Eu, que se manifesta sob a forma de alegria, intensa e pura, que preenche aquele que a sente. Reparem que para o adorador – bhakta – para aquele que ama, o que o atormenta não é a sujeição ao samsára, ou seja a existência condicionada, como algo de volúvel e instável. Não! Para aquele que ama, é a separação que o angustia. E qual é o significado da palavra Yôga – união, integração. Aquele que ama intensamente quer unir-se, integrar-se. A libertação do sofrimento passa pela união. A afeição resultante deste amor tem, nas escrituras o nome de madhura. É o amor que um homem sente por mulher e esta por um homem. Este tipo de amor é o mais íntimo de todos os que o Bhakti Yôga identifica. Depois este tipo de amor tem ainda diversos cambiantes. Mas o mais intenso, é o que se classifica como parakía – é o amor dos amantes, em todos os sentidos que isto possa ter, o daqueles que se amam, que se desejam e que, eventualmente, concretizam esse amor e desejo, carnalmente. Todos nós estamos ligados por uma rede de relações, de direitos e deveres, que nos prende. A erupção do amor intenso, arrebata o ser que ama dessa rede e catapulta-o para uma dimensão desconhecida, a do amor. Nesse amor a posse é breve, até rara, mas a separação quotidiana. Isso leva o bhakta a desejar constantemente a união. Esse sentimento, o do amante, tem três características:

 

1 – a lembrança constante do bem-amado

2 – o desejo insaciável de o encontrar

3 – uma capacidade de ver o que na bem-amada, é sagrado, o que é expressão de Shiva/Shaktí, a capacidade de vê-lo numa forma transfigurada pelo amor.

 

Este amor não é o da posse, mama. Tantas vezes, na nossa sociedade, próprio do casamento e do marido, o patriarca. E esse sentimento de propriedade, de posse, não liberta – pois intensifica ahamkára, o ego.

 

A paixão dos amantes que se amam, como exposto, é um símbolo da libertação, pois está isenta de egocentrismo, não conhece a segurança do dever, é devoradora, impetuosa, vivida com intensidade. O mundo torna-se estranho ao que assim, ama. Aqueles que assim amam querem unir-se. A separação é tormentosa, intolerável. O encontro entre dois amantes assim proporciona-lhes uma alegria indescritível. Todo o ser aspira a uma união com o outro que ama. Uma união tão intensa, tão absoluta, que fica para lá do tempo e espaço e não dependente deste. Uma união que não possa mais ser desfeita. Tal como ocorre com a união entre Shiva/Shaktí, tal como ocorre com a união entre kundaliní shaktí e Shiva alojado no brahmárandra, no sahásrara chakra. Não ensina Pátañjali que «ele [o samádhi] está próximo para os que o anseiam com intensidade» (Y. S., I-21)? Samádhi significa também integração, como sabem. A integração tão desejada e tão ansiada pelos amantes, que são aqueles capazes dessa auto-entrega ao outro. E o samádhi «também pode ser obtido através da autoentrega » (Y. S., I-23). A loucura dos amantes, a loucura que é uma verdadeira dádiva de amor puro, não é afectada pelo dever, ou pelo interesse. Tal loucura, por vezes, põe em risco a segurança, o dever, por vezes implica um sacrifício que põe em causa a reputação, deita tudo a perder, tantas vezes, como cantam os poetas, tal amor deita a perder até a vida. Esse furor é a intensidade com que se deve ansiar a união, o samádhi. As escrituras ainda descrevem as duas fases desse amor:

 

Madana – embriaguês na comunhão com o amado.

Môhana – desvario na separação.

 

E tem seis cambiantes:

Snêha – ternura.

Mana – despeito amoroso.

Pranaya – intimidade.

Rága – paixão.

Anurága – paixão extrema.

Mahábháva – sentimento supremo.

 

Todos estes conceitos, toda esta exposição teórica descrevem uma experiência que não se consegue comunicar por palavras. Há que senti-la, e só entende o que está subjacente a estes conceitos, provenientes do Bhakti Yôga, quem já sentiu ou sente tais emoções. Pois está em causa a experiência incomunicável do amor perfeito – prêman. E prêman é tão só a perfeição do amor, dominando todo o psiquismo do que ama, crescendo continuamente, de modo subtil, de modo aprendido apenas pela intuição, tal como o ensina a obra Narada Bhakti Sútra. Esse amor faz o bhakta rir, dançar, cantar, mergulhar num estado de grande produção de ambrósia, o néctar da imortalidade – amrita. Aquele que alcança a experiência de prêman está para lá do que é ilusório, pois a cegueira do amor, em verdade não é cegueira, é percepção intuicional do que no outro é resultante dos princípios elevados, de Shiva e Shaktí, e que se manifestam ou potencialmente podem manifestar-se em todos os homens e todas as mulheres. Todos os homens e mulheres podem ser expressão da deusa e do deus. E também estas características mais se manifestam quando estão em estado de prêman. Ou seja, aquilo que é, tantas vezes se revela aos amantes. Como dizem as escrituras do Bhaktí Yôga, para aqueles que amam, com o amor dos amantes, a proximidade do samádhi é intensa e não só quando recitam mantra, ou quando meditam. É a todo o instante e em tudo o que fazem. Pois tudo se funde e dissolve no amor. E o samádhi está próximo pois a união entre o amante e o amado não pode ser completa enquanto não há uma imersão total um no outro. Aqueles que amam e se abraçam não querem saber mais do ‘eu’ e do ‘tu’, pois fundem-se numa totalidade una – Shiva andrógino. Para os amantes que unem e pelo menos durante a união, é o ‘divino’ que se exprime em todos os seus gestos e em todos os seus pensamentos. Integram-se e movem-se um no outro, em unidade. Deixo-vos estas poucas notas que, espero, vos ajudarão a “olhar” o filme.

 

SwáSthya

(C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya

Discípulo do Mestre DeRose

«Sou irmão de dragões e companheiro de corujas»

O nosso corpo

Tudo o que alcançamos ou somos, passa também pelo corpo. Este é a condição necessária para a nossa evolução. É o centro das nossas percepções e da nossa noção de espaço e tempo. Através do ásana, nós vamos descobrindo esse desconhecido que é o nosso corpo e a sua potência se abre à nossa consciência. Associar-lhe-emos o mudrá e o pránáyáma, como caminhos de aprofundamento da consciência do corpo.

 

O corpo, quando não rejeitado é fonte de questionamento permanente. É um objecto eminentemente filosófico. Tem um impacto sobre a nossa percepção do universo.

 

Este entendimento foi comum a muitas civilizações e filósofos. Encontramos tais preocupações nos tempos modernos, com o Prof. Manuel Sérgio a propor que a genérica designação de educação física seja substituída, com ganho, por motricidade humana. Mas já a encontrávamos na alta antiguidade grega, com Platão ente outros, que não desenvolveremos agora, a expressar as suas preocupações sobre a educação na República. Este filósofo entendia ser necessário trabalhar o corpo juntamente com a mente. Pois seria preciso à equilibrada educação e desenvolvimento das qualidades do cidadão aprimorar, em simultâneo, as capacidades físicas e a as mentais. A supremacia das primeiras leva à agressividade, a supremacia das segundas, desenvolve excesso de sensibilidade. A educação deveria permitir uma interacção entre estas duas vertentes. Ora este desenvolvimento equilibrado é conseguido pelo Yôga.

 

A Oriente o corpo sempre esteve no centro do desenvolvimento do ser humano, individualmente considerado. Fosse, em tempos mais recentes, para o rejeitar como fonte de sofrimento, fosse para o cultuar, como morada excelsa do púrusha [1], a perspectiva tântrica, recuperada na Idade Média, com a afirmação de que o corpo é um templo. Esta perspectiva de conciliação com o corpo, por onde tudo passa, proporciona o desenvolvimento saudável das aptidões físicas, assim como a sensibilidade e a clareza mental.

 

No Yôga outras potencialidades são desenvolvidas, através do corpo. Seja pela prática de ásana [2], de mudrá [3] ou de pránáyáma [4]. O uso das mãos, no mudrá, é disso evidência. Os mudrá contêm significados profundos.

 

O Yôga constitui-se como o caminho para o desenvolvimento integral do ser humano, em todas as suas dimensões. A longa aprendizagem do ásana leva o aluno/discípulo à descoberta do corpo.

 

A flexibilidade, a elasticidade, a descontracção, a resistência, a capacidade de adaptação, desenvolvem-se no corpo físico a par com o desenvolvimento, no corpo mental, da serenidade, elasticidade, rapidez de raciocínio, concentração, força de vontade, etc.

 

O corpo energético que funciona como ponte entre o corpo físico e os corpos emocional, mental e proporciona o alcançar do intuicional, é fortemente trabalhado pelas técnicas do Yôga. Pelo que o trabalho sobre o corpo físico não é um fim em si, mas uma forma de ir mais longe, de alcançar outras dimensões e outros estados mentais, que não se alcançariam a não ser através da intervenção do corpo. O ásana pretende proporcionar ao sádhaka o fortalecimento da estrutura biológica, fortalecendo as qualidades endócrinas, mentais, psicológicas, vitalizando o corpo e proporcionando saúde e resistência a doenças. O que permitirá suportar fluxo evolutivo proposto pelo Yôga.

 

Ter em vista que a nossa acção sobre o corpo, é tão só uma forma de mobilizar, potenciar, activar o corpo energético, de modo a que a progressão não tenha limites, mesmo em idade avançada, constitui uma grande diferença em relação a outras propostas que visam, com o treino, predominantemente, o corpo físico. Poder-se-á, desta forma, alcançar uma progressão geométrica, com resultados quase inesgotáveis e gratificantes.

 

Ora a acção sobre o corpo é indispensável, pois somos, também, o corpo que temos. O modelo mental que se deve cultivar é o de um corpo flexível, como se os próprios ossos fossem flexíveis e leves, como se fôssemos plumas que se movem sentindo a resistência do ar. Como se este nos amparasse e nos permitisse voar como aos pássaros. Com a concentração e respiração estas sensações são perceptíveis a um praticante de nível médio.

 

A tomada de consciência do corpo permite tornar conscientes as sensações pelas quais o corpo passa. Com o tempo e com a tomada de consciência o corpo modifica-se. O aperfeiçoar do corpo altera os limites da capacidade de perceber as sensações corporais, aperfeiçoa a capacidade de visualização e alarga os horizontes do movimento e das suas consequências, Os ásana utilizados passam a ter uma nova dimensão, ainda que sejam os mesmos e, concomitantemente, tornam-se mais eficazes. Tal corpo adquire mais características de um fluído do que de um sólido. Tal corpo fica mais perto da leveza do ar, do que da densidade da terra. Fica mais puro, como o diamante.

 

Pela ausência de contracção, a energia flui, pois onde há contracção não há passagem de energia. E vai-se criando um modo favorável ao expressar aquilo que de criativo há na mente de cada um. Também como forma, através do artístico, de acesso ao intuicional.

 

Tudo isto passa pela execução de ásana, a disciplina física do Yôga. E com esta disciplina constrói-se um corpo novo, no qual o ser humano vai percebendo o quanto já transcendeu a condição humana. E esta disciplina, para o ser, tem de reunir, em simultâneo as seguintes condições:

 

 

 

Características do ásana
Ásana Técnica corporal Estável
Confortável
Estética
Respiração coordenada Consciente
Profunda
Ritmada
Atitude interior Localização interior
Mentalização (verbalização positiva, cor e imagens)
Bháva

 

 

Ásana é a técnica mais visível do Yôga. Pátañjali define como sthira sukham ásanam (YS, II-46), ou seja “posição firme e agradável”.

 

Claro que para lá chegar o caminho é longo e exige resistência, pois só se considera firme e agradável a posição que se consegue manter por 3 horas. Pois o objectivo não são os bhôgásana, isto é, os ásana de prazer, mas sim a criação do corpo adamantino.

 

A atitude interior deve ser cultivada. Deve-se manter a atenção no que se vai passando nos diferentes corpos, nos diferentes veículos, máyákôsha, através dos quais o Ser (purúsha) se manifesta:

 

– annamáyákôsha (o corpo ilusório feito de alimento: o corpo molecular, denso)
– pránamáyákôsha (o corpo ilusório feito de prána [bioenergia]; o corpo energético).
– kamamáyákôsha (o corpo ilusório feito de emoções; o corpo emocional; o corpo “astral”)
– manômáyákôsha o corpo ilusório feito de pensamentos concretos; o corpo mental concreto)
– vijñánamáyákôsha (o corpo ilusório feito de pensamentos abstractos; o corpo mental abstracto)
– ánandamáyákôsha (o corpo ilusório feito de felicidade; o corpo intuicional)

 

Ásana deve ser praticado como uma forma de aperfeiçoar o exercitar a consciência testemunho, túriya [5] ou sakshí. Esta consciência é a do que contempla, sem se envolver com o que observa. No caso de ásana, observa a acção, a execução, a reacção dos restantes corpos a esta execução. Percebe o fluxo de energia, de emoções, assim como o fluxo mental durante a execução. Mantém-se atenta, sem interferir e amplia a consciência que o sádhaka tem de si, através do exercício, através da prática corporal. É omnipresente no corpo, nas energias que fluem, nas emoções que surgem, nos pensamentos que se desenvolvem. Observa sem interferir e sem julgar. Tal facto amplia mais e mais a consciência, aproximando o sádhaka, mais e mais, do samádhi. Atento para conhecer, para ampliar a consciência de si mesmo. E é nesse ampliar diário de consciência que se conquista o samádhi. Um dos aspectos maiores do valor da prática de ásana é esta possibilidade de auto-observação consciente.

 

Eliade ensina que êkagráta é o mais elevado nível de concentração, significando ‘concentração da mente num só ponto’. Refere que todas as práticas psico-fisiológicas do Yôga pretendem conduzir o sádhaka a este estado de concentração. E acerca do ásana diz:

 

“A nível do corpo o âsana é um ekâgratâ, uma concentração num único ponto: o corpo está «concentrado» numa única posição.” [6]

 

Para este autor, durante o ásana, a mente concentra-se num só ponto – o corpo. Vai ao encontro do ensinamento de que onde estiver a consciência está o sangue, está o prána, está a mente. E está, acima de tudo, a capacidade de aprofundar a vivência da execução do ásana.

 

A inclusão do pránáyáma, auxilia no aprofundar da vivência do corpo durante o ásana. Logo aprofunda a vivência do nosso ser. Impor ritmo, como se faz no pránáyáma, permite que a observação da consciência testemunho se intensifique, pois o ritmo permite que se vá além da respiração. Pois o ritmo impõe um padrão e cada ciclo desse padrão possibilita aprofundar a introspecção, tornando mais intensa a percepção do corpo e do que se desenvolve neste. Permite descobrir e intensificar a percepção do que ocorre a cada inspiração e a cada expiração e a cada retenção. A consciência vai-se ampliando. Pode utilizar-se na contagem do ritmo um bíja, como o pránava. E o corpo vai mais longe, a permanência é mais intensa.

 

Em conclusão dir-se-á, juntamente com o Padre Stilwell [7], Prof de Teologia da Universidade Católica que:

 

São raros os momentos em que como corpo e mente unidos nos abrimos e nos experimentamos como ponto nodal de consciência, e mais rara ainda a sua apreciação devida.

 

 

[1] Como Shrí DeRose ensina: «homem. Na cosmogonia sámkhya, o Ser, o princípio masculino imutável, que a metafísica do Tantra identiica com Shiva», in Yôga Sútra de Pátañjali, p. 113.

[2] Posição física ou psico-física.

[3] Gestos reflexológicos, magnético e simbólicos, feitos com as mãos.

[4] Expansão da bioenergia a través de exercícios respiratórios.

[5] “O quarto [estado de consciência] (turíya) possui uma dimensão distinta, na qual o sádhaka se encontra iluminado (…). Alguns o apelidam de Eterno Agora, além

[6] Mircéa Eliade, Patañjali e o Yoga, Relógio D’Água Editores, 2000, Lisboa, pag. 72

[7] Peter Stilwell apud Stobbaerts, A Arte do Movimento e a Meditação, p. 12.

O Dragão e o Um

Epístolas aos meus discípulos:

Meus queridos, hoje irei falar-vos um pouco do dragão e do um. Falar-vos-ei nessa medida de numerologia.

Neste momento, o A. já estará de cabelos em pé a pensar: “mas que diabo tal coisa tem a ver com Yôga?”. O J. pensará: “Numerologia? Mas agora ele enveredou pela minha área? E quais números? Binários? Vamos lá a ver, pois isto cheira-me a conversa estranha e eu não papo grupos.” Já a Sílvia, estará neste momento derretida, quase em samádhi, com a mente paralisada em apenas uma frase: “Ah! Os números…”

À parte a brincadeira, os números têm tudo a ver com o Yôga. Desde logo na sua fundamentação filosófica, o sámkhya, que significa nada enumeração, descrição numérica. E explica a cosmogonia através da enumeração de 24 princípios. Para além da estrutura numérica, tanto do Pátañjala Rája Yôga, como do SwáSthya Yôga, em oito partes ou módulos. Mas não me alongarei nesses aspectos, por vós por demais conhecidos.

Como sabem, vou estabelecendo elos de ligação individuais com cada um de vós, para além dos elos comuns que a todos nos juntam. E, um dia destes, numa dessas trocas de informação e de vivências bilaterais, a nossa querida senescal dizia-me algo como: “por vezes passamos pelas coisas, sem as vermos.” E é bem verdade. A C., ficou, noutra ocasião, espantada por lhe ter afirmado que, muitas vezes, o que está melhor escondido é o que está à vista de toda a gente. E assim é.

De cada vez que leio o pequeno e velhinho Prontuário do Yôga Antigo, descubro coisas novas, aprendo coisas novas. No entanto, já o li tantas vezes. E o que vou descobrindo sempre lá esteve, visível, não escondido. Eu é que não conseguia ver. O mesmo acerca da numerologia e do Yôga. E se outra fonte não existisse, teríamos no nosso Mestre, no Yôga. Mitos e Verdades, na p. 33, a referência à numerologia, com o tom coloquial que ele gosta de utilizar, assim como quem não quer a coisa, do seguinte modo: “para quem gosta de malabarismos numerológicos…”. Acrescenta uma informação muito importante, atentem nela: “o nove, número da Iniciação”. Em seu socorro, Shrí DeRose proclama a autoridade dos Shástra, citando o próprio Bhagavad Gitá: “segundo aqueles que conhecem a ciência dos cálculos.”

A propósito dos números binários deixem-me dizer-lhes que nalgumas tradições os números pares e, em especial, o número dois (2) eram vistos com uma conotação maléfica. Pois o dois implica a oposição, a divisão. E reparem, rajas[i] e tamas[ii], contradizem-se, e só com satttwa[iii] se ultrapassam os contrários e se consegue a harmonia. Dois é imperfeito, três é perfeito. Há uns anos atrás, participei, como conferencista, numa conferência dedicada ao simbolismo nas artes orientais, organizada e promovida pelo Centro de Artes Orientais. Recordo-me de Sensei Patrão, na sua conferência, chamar a atenção para os números binários, apelidando-os de duais. São dipolo, “di – pólo”, “dia – bolo”, “diablo”, “diabo”. É uma demonstração curiosa.

Se o 9 (nove) é o número da iniciação, o 10 é o número da criação. 1 + 0 = 1. Pitágoras assentou a sua filosofia e os ensinamentos esotéricos da sua escola filosófica nos números. Pitágoras[iv] disse, sobre os números, duas coisas muito importantes e de grande transcendência:

1 – Todas as coisas têm número.

2 – Os números são coisas.

Com a primeira afirmação, Pitágoras segue os ensinamentos do sámkhya, mas, ao mesmo tempo, antecipa em mais de 2000 anos a ciência moderna, que a tudo quantifica para conhecer.

Já se afasta da moderna ciência ao afirmar que os números são coisas. E demonstra-o. Diz que a soma dos primeiros 4 algarismos é sempre igual a dez, para além da nossa vontade: 1 + 2 + 3 + 4 = 10. Ou seja, resistem à nossa vontade, pois são coisas com existência própria para além da nossa mente. O dez, a década de Pitágoras. Não vou desenvolver esse aspecto, por agora.

Na tradição hindu, o Dragão da Sabedoria, o Um, como sabem, em sânscrito êka, ou saka. O Dragão é igualmente a serpente. É o dragão, ou a serpente que, na tradição bíblica, tentou Eva. O Dragão é um antigo símbolo para a luz primordial, representando a sabedoria do caos. Na antiga filosofia oriental, o Bem e o Mal, como potências com autonomia própria, não existem na origem da criação. São apenas dois aspectos da luz primordial. Como dizia a um de vós, já não sei a quem, a luz ilumina, mas cria sombras. Estas precisam daquela para viver. A luz, por sua vez, também pode cegar. O Bem e o Mal são conceitos morais, que se referem à condensação, no plano material destas energias de sinal oposto. Ora, o Dragão, ou serpente, representa a Sabedoria, a regeneração da vida, a recriação. Daí que Sêsha, ou Anata, no fundo a serpente ou o Dragão infinito, representam a continuidade do mundo, pois está com a boca no rabo, desenhando com o corpo um circulo, que faz lembrar a serpente nórdica, Ragnarok, que no fim dos tempos acordará e porá fim ao mundo. Mas, dizíamos, Sêsha é uma abstracção alegórica, que simboliza o tempo infinito. Sendo o Dragão o Um, comunga da capacidade de criação do cosmos.

Noutro dia voltarei a este assunto e falar-vos-ei do um pouco mais sobre números.

 

SwáSthya

 

(C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya.

Discípulo de Shrí DeRose.

«Sou irmão de dragões e companheiro de coruja.»

 

 

[i] Movimento, actividade, dinamismo.

[ii] Inércia.

[iii] Equlíbrio, leveza, bondade.

[iv] Pitágoras (571 a.n.E. ou 570 a.n.E. a 497 a.n.E. ou 496 a.n.E.), filósofo grego considerado um dos maiores matemáticos da antiguidade.

Nyása

                           Nyása significa a identificação entre o sujeito cognoscente eo objecto cognoscível, o que implica a supressão do acto de conhecer. De modo geral significa a identificação do sádhaka com seres ou objectos, à sua escolha. Nyása é uma técnica da tradição tântrica.

                          Insistindo, os epistemologistas identificam três momentos quando abordam a teoria do conhecimento: há um sujeito cognoscente – o que quer conhecer; há um objecto cognoscível – aquele que vai ser conhecido ou que é passível de o ser; a uni-los ocorrerá o acto de conhecer, de apreensão do objecto. O que o nyása procura é a abolição destes três actos e a sua redução a um só. O sujeito cognoscente e o objecto cognoscível passarão a ser um só.

                         Ora e ainda por referência ao pújá, esta técnica é muito mais intensa e eficaz quando há empatia daquele que faz o  pújá com o instrutor ou mestre a quem o dirige. Tal identificação, nyása, facilita o caminho para o samádhi.

                        Com a prática de nyása o sádhaka consegue conectar-se com o objecto para o qual direccionou a consciência, chegando à sua essência. Observador e observado, fundem-se como se fossem um só. Pátañjali refere este aspecto, aproximando o  nyása dos estados meditativos:

I-41

«Naquele que tiver controlado totalmente a instabilidade, ocorre uma identificação entre o

observador, o objecto observado e o acto da observação, assim como o cristal se identifica com a cor

do objecto próximo.»

                         Porém, para que a técnica de nyása seja conseguida, há que passar pela emoção, pelo afecto. É o corpo emocional (kamamáyákôsha) que mais participa nesta técnica. Terá de haver, no mínimo, uma relação de simpatia entre o observador e o objecto observado. É necessário, também, que a concentração do observador sobre o objecto observado seja frequente.

                       Este fenómeno ocorre tantas vezes, mesmo sem nos apercebermos. Ocorre entre familiares que vivem junto durante décadas, entre amigos que muito se admiram e se sentem envolvidos, entre membros de uma equipa. Por isso, também, devemos seleccionar os nossos amigos e aqueles com quem convivemos. Pois podemos, sempre, receber influências que não desejamos. Por isso é importante seleccionarmos as egrégoras às quais nos conectamos.

                          Nyása, como leram anteriormente, pode ser efectuado com pessoas vivas, mortas, com objectos inanimados, com figuras mitológicas, com arquétipos, com egrégoras, etc…

                           O nyása pode e deve ser efectuado com o mestre. A convivência com este, o envolvimento emocional, o afecto desenvolvido pelo mestre proporcionam um nyása intenso, que gerará compreensão e lucidez ao discípulo, catapultando-o mais rápido para o samádhi. O mestre, como ser humano que é, tem defeitos e qualidades na sua personalidade. Mas na média de tais aspectos tem a possibilidade de inspirar o discípulo a ir mais longe. E ao fazer nyása no mestre e nas suas qualidades o discípulo tem a possibilidade de gradualmente incorporar essas características. Tal prática permitirá também ao sádhaka persistir com disciplina e diligência (abhyása), ao longo dos anos, na fidelidade a um só método e na lealdade ao respectivo mestre.

                        Tanto o nyása como o dhyána necessitam de prátyáhara e de dháraná: abstracção dos sentidos físicos e concentração da mente no objecto que se pretende conhecer.

                    Ouçamos o que diz sobre pratyáhára, mais uma vez, o grande mestre que foi Pátañjali:

II-54

«Quando os sentidos já não estão em contacto com os seus objectos e assumem a própria natureza de

chitta, isso é prátyáhára.»

II-55

«Com isso obtém-se o total controlo dos sentidos.»

                     Sobre dháraná, Patañjali, o sábio das mil ciências, ensina:

III-1

«Dháraná (concentração) consiste em centrar a consciência (chitta) em uma área delimitada.»

[a propósito, Eliade, traduz ‘área delimitada’, por ‘num só ponto’ – êkagrata].

                      Sobre o dhyána, aprende-se, com o mesmo mestre:

III-2

«Dhyána (meditação) consiste em manter a continuidade da atenção sobre aquela área específica da

consciência.»

                         Num outro artigo, que publicarei, versando esta mesma temática, citarei alguns autores que consideram nyása como uma técnica de meditação de nível superior (vide, por todos, Eliade). Se se atentar que nyása consiste na identificação do sujeito cognoscente com o objecto cognoscível, lendo-se o modo como Pátañjali define o samádhi, somos levados a concordar:

III-3

«Samádhi (hiperconsciência) é quando chitta assume a natureza do objecto sobre o qual se medita,

esvaziando-se da sua própria natureza.»

                     Todavia, o samádhi remete-nos para uma vivência intuicional. Já o nyása, ocorre ao nível do psiquismo, logo, do ego. Ocorre ao nível do kama manas, ao nível emocional e mental.

                      O nyása pode e deve ser feito com o respectivo mestre, usando como técnica o seu rosto, ou o seu nome, e sendo o respectivo mestre, haverá, porventura, empatia. Pois foi o discípulo que o escolheu e não o contrário. Mas, dizíamos, o nyása com o mestre, como ensina Shrí DeRose,

“funcionará como fio de conexão com as origens da linhagem representada por ele. Os mesmos resultados que consegui com o meu Mestre, hoje os meus discípulos alcançam através de mim, e assim sucessivamente.»

                       Através do nyása com o respectivo mestre, pode o sádhaka absorver sentimentos, atitudes e hábitos daquele que observa e que quer cultivar. O nyása com o respectivo mestre, que é alguém mais evoluído que o discípulo, tem a potencialidade de se transformar em dhyána e acelerar a evolução do praticante até ao samádhi. Aquele que faz nyása com o respectivo mestre, seguramente, conseguirá mais compreensão e entendimento, do caminho que lhe é proposto e acerca do próprio mestre e dos seus ensinamentos, compreensão que lhe brotará do coração, ajudando-o no seu caminho até ao samádhi.

                    Quanto ao samádhi, consiste numa experiência que é difícil de expor, de explanar. Shrí DeRose, por vezes, referia-se ao samádhi do seguinte modo: «O samádhi é um clube privado, e só os que lá chegam, sabem quem lá está.» Os que o vivenciaram, conhecem a experiência e não é necessário explicá-la. aos outros é quase impossível expô-lo. Também por esta razão, “os que sabem não falam, os que falam não sabem.

                   O samádhi divide-se sabíja e em nirbíja com semente e sem semente. No sabíja samádhi o sádhaka conservará a sua personalidade, logo manifestará as suas virtudes e os seus defeitos. Apenas a sua perspectiva em relação ao real, em relação ao mundo fenoménico, muda. Vê-se e aos outros, duma perspectiva muito mais ampla, consciente, muitas vezes, a um tempo, das causas e dos efeitos, de um modo que as pessoas comuns, que as pessoas que ainda não o vivenciaram não conseguem ter noção ou imaginar 1. Já no nirbíja as mudanças que ocorrem são de tal monta, que nem é possível referir.

                      Os que chegam ao samádhi, são pessoas especiais, que têm força, vontade, aptidão, que juntam a estas qualidades a coragem de voarem. Para esses, que têm essa coragem, a nossa proposta filosófica é, seguramente, o melhor caminho.

                     Mas deter-me-ei. Deixo-vos apenas algumas sugestões e exemplos de práticas de nyása:

                              – Se quereis desenvolver equilíbrio, por exemplo em vayútkásana e outros similares, deveis fazer nyása sobre os animais ungulados, v. g., as cabras da montanha. Animais que caminham sobre dois dedos mas com um equilíbrio incomparável.

                             – Se quereis desenvolver não só equilíbrio, mas também estabilidade, podeis fazer nyásacom uma pedra, grande, estável e imponente, que preencha o nosso coração de emoção. É a forma de adquirir tal firmeza, tal imobilidade.

                              – Se precisais de voar, de vos catapultar para os píncaros, para o cimo dos céus, numa coreografia que implica descidas aos infernos em voo picado, seguida da ascensão aos céus pelo esforço e mérito próprio daquele que conhece o caminho de regresso, do que se libertou, como só um iniciado é capaz, na qual deveis ter total liberdade de movimentos, onde a coreografia vos exige que sejais a um tempo fortes, rápidos, ferozes, leves e esvoaçantes, como uma corografia que um dia concebi para a nossa querida senescal, então o nyása com a águia, a senhora dos céus e com o seu voo, será indicado.

                            – Mas se quereis desenvolver tais qualidades, mas com algum mistério, que melhor do que o voo do falcão? Voará este para caçar, ou voará este porque ama a liberdade dos céus? E esta qualidade, a de manter mistério, poderá ser desenvolvida com nyása no falcão.

SwáSthya.

 (C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya

Discípulo do Mestre DeRose

«Sou irmão de dragões e companheiro de corujas.»

Glosas (des)conexas?

Meus queridos

 

Deixo-vos algumas glosas. Também elas resultantes de conversas unilaterais com alguns de vós. Se (des)conexas, logo se verá.

 

1 – No bhúta shuddhi procura-se também a purificação das emoções e esta, em concreto, recebe o nome de káma shuddhi. O que se dedica ao káma shuddhi tem, habitualmente, a capacidade de limpar os ambientes que frequenta, possuindo energia vital suficiente para interferir, de modo positivo, na vida daqueles com que contacta.

 

2 – Ainda a propósito de purificação, há escolas, que propõem, para que o adepto se purifique, que se comece com a contaminação. Primeiro deveríamos contaminar até a um nível incompatível com a vida humana e então purificar. Esse é, v. g., o caminho iniciático dos xamãs. São intoxicados com, v. g., nicotina, em quantidades suficientes para matar um boi. Enquanto lutam, entre a vida e a morte, ainda vão sendo lavados, regularmente, com um veneno de absorção através da pele. Se sobreviverem, são-lhes administradas substâncias alucinogenas, afim de lhes provocarem tais alucinações que os enlouqueçam. Se conseguirem curar-se do corpo e da alma, são xamãs. Não conseguindo… bom nesse caso a tribo dá graças aos deuses por os terem livrado de um mau xamã. Na nossa escola não seguimos esse caminho. Preferimos seguir o preceito de que mais importante do que limpar é não sujar. Então diminuímos a quantidade de substâncias tóxicas que ingerimos ou que produzimos com as emoções viscosas.

 

3 – No pújá, que é comum a todas as tradições orientais, a repetição deste acto, vai criando no coração do aluno carinho e consideração pelo instrutor e pela Escola e pelos que a representam. Por isso, se os alunos de algum instrutor não têm esse carinho pelo mestre deste, é porque o pújá não costuma ser feito, ou é feito de modo deficiente.

 

4 – A reverência do aluno pelo instrutor, cria laços entre estes. Laços que perduram para lá da sala de aula, de modo a que nunca nenhum dos dois estará sozinho, doravante. Estejam em qualquer tempo ou local, estarão, sempre, amparados um pelo outro. E essa ligação é também com a egrégora, que protege todos os seus membros, como se fosse um anjo da guarda, perante os obstáculos que sempre surgem na vida.

 

5 – Claro que o pújá correlaciona-se com actos como os do guru sêva[i] e o karma Yôga. Não estará a fazer um bom bhavana pújá[ii] o aluno e o instrutor que deixa a sala de prática com coisas desarrumadas, ou partidas, ou por pintar, ou por limpar e nada faz. Assim como os instrutores que não auxiliam o seu mestre nessas tarefas, ou não tomam a iniciativa de as executar, não fazem um bom bhavana pújá, nem um bom karma Yôga, quanto ao guru sêva, nem é necessário comentar. Há que estar atento aos detalhes.

 

6 – Aconselho a que leiam O Fenómeno Humano de Theilhard de Chardin. Para os católicos, lembro que este autor era teólogo, filósofo e católico. E era um homem ligado à Igreja Católica.

 

7 – O discípulo deve ser leal e fiel. E para que um discípulo o seja deverá, enquanto aluno, ser educado a sê-lo. Deverá o seu instrutor educá-lo. Pois o aluno deve demonstrar ter lealdade e fidelidade. Porém, quem quer pessoas leais ao seu lado deve educá-las a sê-lo. E não demonstram grande lealdade os alunos que nunca participam em nenhuma, ou quase nenhuma das actividades que se programam. É da responsabilidade do instrutor educá-los. Educá-los no guru sêva, educá-los com o seu exemplo e com o serviço que presta ao seu próprio mestre, educá-los com o exemplo vivo. O alunos devem ser educados e treinados na arte de prestar serviço ao Mestre, à Escola. E uma das formas de prestar esse serviço é estar presente nas iniciativas que se programam, fortalecendo com a sua adesão, o evento e fortalecendo a egrégora, oferecendo-se para participar colaborando no que lhe for possível, ou seja, concretizando o apoio que diz manifestar.

 

8 – Considerando que a educação começa no berço, cabe a cada instrutor educar e treinar os seus alunos, desde o início do aprendizado, moldando o carácter do futuro discípulo. Mais tarde, passará ao mestre do instrutor que lhe transmitirá o conhecimento, que lhe dará a iniciação, através do método de parampará. E, finalmente, um dia, quando o mestre entender que é chegado o momento, este transmitirá a esse, agora, discípulo, o favor, a graça, a bênção, o toque, do Mestre – o kripá. É o toque que transmite a força da tradição ancestral ao discípulo. E, regra geral, apenas aos discípulos mais leais, não a todos. E podem receber a graça do mestre, mesmo que ainda não tenham ultrapassado totalmente as fases anteriores. Na verdade, o discípulo, aquele que o é mesmo, continua a cumprir com orgulho, com satisfação, com alegria, com auto-realização, as fases anteriores – continua a servir o mestre como sempre o fez e continuará a fazê-lo, não regateando esforços, não esperando que um outro faça por si. E continuará sempre a ouvir o que o mestre tiver ou quiser ensinar. Fá-lo-á mesmo quando o Mestre o submete à provação. Fá-lo-á, mesmo que o mestre o admoeste. Fá-lo-á perante as contrariedades, os ralhos do mestre, as provações a que for submetido. E continuará, pois só os de têmpera forte continuam até ao fim. Não desistem e superam-se, enfrentam os obstáculos, por vezes colocados pelo mestre, e desenvolvem as aptidões necessárias para superá-los. E, quando caem, erguem-se e seguem. Agora transmutados, mais fortes.

 

9 – Uma pessoa leal, é alguém em quem se pode confiar. É alguém cuja dignidade e nobreza o obrigam a cumprir a palavra dada e os compromissos livremente assumidos. Uma pessoa fiel é a que respeita as tradições e prossegue os seus propósitos, mesmo que no caminho se levantem obstáculos. Continuará a cuidar do que foi colocado à sua guarda. Transmitirá a tradição do SwáSthya Yôga sem a adulterar, sem modificar o que lhe foi ensinado. Mesmo que saia da escola, essa pessoa não inventará outra escola de Yôga.

 

10 – a própria prática pújá gera fidelidade e lealdade. O mestre sabe mais do que o discípulo. O pújá cria as condições adequadas a que do mestre jorre energia e conhecimento para o discípulo que lhe faz pújá. Este conhecimento pode ser inesgotável e directamente proporcional à receptividade e gratidão do discípulo. O pújá também gera uma atitude adequada ao desenvolvimento da receptividade ao ensinamento e amplia as fronteiras da experiência sensorial e extra-sensorial do discípulo, a ponto de este aprender, com a presença do mestre, com o contacto com o mestre, ainda que este, objectivamente, nada esteja a ensinar. E a evolução depende do receptor, mais do que do mestre. Nenhum mestre consegue ensinar aquele que não quer aprender, aquele que questiona e contradiz o mestre, nas indicações que este lhe dá. As provações existem e quando o discípulo mais sente as provações, quando é posto à prova, é porque está a ser testado no seu carácter e está a ser lapidada a sua personalidade. A presença do mestre é mais do que nunca necessária nesses momentos cruciais. O mestre é o dissipador (ru) das trevas (gu), ou seja, é o sol, é a luz que elucida, que clareia a existência.

 

11 – É necessário, para ultrapassar os obstáculos, que o discípulo confie no seu mestre. Mesmo quando não entende totalmente, ou mesmo de todo, as razões do caminho apontado ou delineado pelo mestre. O que confia, acaba por compreender. Quanto maior for a empatia do discípulo para com o mestre, menor será o impacto das provações iniciáticas. Concentrar-se no mestre, na sua imagem, como guia, que brilha, que ilumina, é indispensável para ultrapassar obstáculos, para conseguir a auto-superação.

 

12 – Alguns instrutores não educam os seus alunos a visitarem o mestre, a procurá-lo, a vivenciarem o Yôga com este e na presença deste, participando nos eventos que se organizam. E, no entanto, o contacto com o mestre é indispensável. Obviamente que o pújá intenso e vindo do coração cria laços fortíssimos com o mestre. Mas é importante conviver directamente com ele. Para aqueles que isto compreendem, e vivem longe, visitar o mestre é sempre um momento de grande emoção e de grande carinho, um momento único,. Por vezes, aqueles que estão próximos do mestre, que habitualmente estão com ele, tendem a considerar tal coisa como banal e a descuidarem da importância de tal proximidade, passando muitas vezes a desconsiderá-lo, não participando nas iniciativa, nos cursos, nas aulas, nas conferências, nas reuniões. Enfim, consequência da confiança que o sacristão vai adquirindo com os santos…

 

SwáSthya

 

(C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya

Discípulo do Mestre DeRose

 

«Sou irmão de dragões e companheiro de corujas.»

 

 

[i] Serviço e entrega ao Mestre. Uma das fases selectivas do discipulado. Mas também uma forma de estar na vida, os guru sêvin, pessoas especiais, que auxiliam a humanidade de modo desinteressado e que fazem parte do círculo interno.

[ii] Saudação ao local onde se faz a prática, o Espaço Cultural, o Ashram.

A Sombra

Epístolas aos meus discípulos:

 

Meus queridos

 

Deixo-vos algumas notas sobre a sombra e a necessidade da sua integração.

 

arquétipos. São como projectos, compostos de intenção e de energia. Há vários e já nascemos com muitos deles. Por exemplo, as crianças, quando nascem, e até certa idade, reagem melhor a uma voz feminina do que a uma voz masculina. Isto tem a ver com um arquétipo. Os arquétipos permitem representar uma sabedoria intuitiva secreta que escapa à representação simbólica directa. Por essa razão Jung descobriu uma grande similitude entre os símbolos, lendas e rituais das religiões orientais e das religiões ocidentais, entre a alquimia ocidental e a alquimia oriental. Jung descobriu que os arquétipos desempenham um importante papel nos processos psíquicos que influenciam cada um de nós. Profundamente enterrado na psique humana encontrava-se o inconsciente colectivo (chamamos-lhe akasha), os arquétipos de milhares de anos de experiência humana. Estes arquétipos podem ser usados para explorar os limites entre o consciente e o inconsciente. O uso de arquétipos como objecto de meditação, funcionam como portas de entrada no inconsciente, sem se esperar que estes surjam do inconsciente.

 

Um de vós, um dia destes, comentava comigo que, por vezes, consegue observar-se, como se se visse de fora, como se fosse um observador externo.

 

O caminho para a consciência não é linear. É feito de procuras constantes do centro. Aliás a ideia do labirinto, como fonte de procura do seu centro, é uma imagem fantástica, pois uma e outra vez procuramos o nosso centro. Uma e outra vez procuramos o centro do labirinto, em busca do nosso Eu mais profundo. São as provações do labirinto. E, uma e outra vez nos perdemos nos caminho, nos perdemos do nosso centro e nos desequilibramos. Nessa busca, nessa procura, confrontamo-nos com a nossa sombra. A sombra é um dos arquétipos universais reconhecidos tanto pelas tradições ocidentais como pelas tradições orientais. Todos os Grandes Iniciados se confrontaram, com a sua sombra. Todo o guerreiro da luz um dia já se perdeu e se deixou afundar na sombra, falhando, descobrindo o seu lado negro. Mas ainda assim continuou o seu combate, a sua luta inquebrantável, rumo à consciência.

 

A sombra é uma energia que se organiza de forma intensa, poderosa, mas destruidora e viscosa. Tem vontade própria que, entregue a si própria, pode levar, no limite, até à destruição dos que não têm capacidade de se defender. Aceitar a sombra, aceitar que ela existe e em nós, em cada um de nós, exige do iniciado um esforço moral e de consciência considerável, dado que passamos a maior parte do tempo da nossa vida a reprimi-la.

 

A sombra é, de imediato, o que se opõe à luz, embora seja esta a criá-la, pois sem luz, a sombra não existe. Por outro lado a sombra constitui uma imagem das coisas fugidias e mutáveis. A sombra é também os traços de carácter inferiores e outras tendências incompatíveis com o nível ontológico a que o iniciado se catapultou pelo esforço de ascese. A sombra não é, por natureza, maléfica. Mas pode tornar-se, se for infinitamente recalcada no inconsciente. O iniciado só tem a ganhar em passá-la para a luz da consciência. Muitas vezes teme-se o aparecimento da sombra, pois é doloroso, e há sempre o medo de termos que assumir as nossas sombras, para as dominar, ou para as tornar benéficas. A coexistência dos contrários, no mesmo ser, é sempre difícil de suportar, contudo a complexidade de tal situação é muito mais enriquecedora. A complexidade é tão intensa que, por vezes, temos de sair de nós e saltar como um tigre sobre nós próprios para nos arrastarmos de novo para a luz, como disse a um de vós.

 

Eliade, A Provação do Labirinto, refere, como só ele consegue fazê-lo, esse perigo da procura interna e do confronto com a sombra. E o que diz é tão intenso que “assusta” quem ainda não se confrontou com o seu lado negro. E Eliade só aborda o perigo a que se sujeitam aqueles que observam os fenómenos do lado de fora. Muito mais intenso para os que mergulham nessa experiência. O C. no texto que escreveu para o SwáSthya Yôga Sádhana V, referiu que estes encontros servem para um mergulho no Yôga. E essa afirmação pode ser muito mais intensa do que, talvez, alguns de vós o tenham percebido.

 

Diz Eliade:

 

«O espírito está em perigo desde o momento em que tenta penetrar o sentido profundo de uma das criações mitológicas ou religiosas, as quais também são expressões existenciais do homem no mundo. Do homem, de um caçador primitivo, de um camponês da Ásia Oriental, de um pescador da Oceânia. No esforço hermenêutico do historiador das religiões e do fenomenólogo para se compreender por dentro a situação deste homem, existe um risco: não só de se dispersar, mas também de ficar fascinado pela magia de xamã, pelos poderes de um yôgi, pela exaltação de um membro de uma sociedade orgiástica. Não digo que fiquemos tentados a tornarmo-nos um yôgi ou um xamã, um guerreiro ou um exaltado. Mas sentimo-nos em situações existenciais estranhas ao ocidental e que lhe são perigosas. Esta confrontação com as formas exóticas que nos podem chocar, tentar, é um perigo de ordem psíquica. Foi por isto que comparei esta busca a uma longa viagem no labirinto; e trata-se de uma espécie de prova iniciática.

(….) Para compreender por dentro esse mundo deve vivê-lo. É como um actor que entra nos seus papéis, os assume. Por vezes existe uma tal diferença entre o nosso mundo ordinário e este mundo arcaico que a nossa própria personalidade pode ser posta em jogo.

(….) Sabemos bem, por exemplo – e mesmo os freudianos o dizem -, que o psiquiatra arrisca a sua própria razão ao frequentar a doença mental. O mesmo é válido para o historiador das religiões, O que estuda toca-o profundamente. (….) Vós participais no fenómeno que tentais decifrar: como se se tratasse de um palimpsesto, da vossa própria genealogia e da vossa história. E o poder do irracional, com efeito, está aí presente…. É a própria condição do homem quase revela desse modo.

(….) A confrontação com o vazio, com o nada, o demoníaco, o inumano, a tentação de regressar ao mundo animal, todas estas experiências extremas de dramáticas são a fonte das grandes criações do espírito, pois, nessas condições terríficas, o homem soube dizer sim à vida, tendo encontrado uma significação para a sua existência.

(….)

Pensava sobretudo em Durga, por exemplo, uma deusa sangrenta indiana, ou em Kálí: deusas-mães que, entre outras coisas, exprimem o enigma da vida e do universo, quer dizer, o facto de nenhuma vida se poder perpetuar sem o risco de morte. Estas deusas terríveis pedem o sangue, ou a virilidade, ou a vontade dos seus fies. Mas compreender essas deusas é, ao mesmo tempo, receber uma revelação de ordem filosófica. Compreendemos que esta união de virtudes e de pecados, de crimes e de generosidade, de criatividade e de destruição, representa o grande enigma da vida. Se devemos viver a existência de um homem, e não a de um autómato ou de um animal, nem a de um anjo, é com esta realidade acima descrita que somos confrontados. (….) Do mesmo modo, para todos os povos que aceitam a grande mãe, o culto dessas deusas terríveis é uma introdução ao enigma da existência e da vida. A própria vida é esta “grande mãe terrível” que corta as cabeças e que concebe; que simultaneamente assegura a fertilidade e o crime e, ainda, a inspiração, a generosidade, a riqueza. (….) A deusa-mãe é, simultaneamente, aquela que concebe e aquela que mata. Nós não vivemos num mundo de anjos ou de espíritos, nem mais num mundo unicamente animal. Estamos “entre”, e penso que a confrontação com a revelação deste mistério é sempre seguida de um acto criador. Penso que o espírito cria sobretudo quando está confrontado com grandes provações.»

 

Para finalizar aconselho, vivamente, a leitura de um conto de Andersen – A Sombra.

 

Azeitão, 4 de Julho de 2007.

 

(C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya

Discípulo do Mestre DeRose

 

“Sou irmão de dragões e companheiro de corujas.”

Mudrá

Meus queridos

Deixo-vos algumas anotações sobre os mudrá que usam na coreografia Dêva Mandira.

Samputa mudrá. Este mudrá é o que, da vossa coreografia colectiva, pretendo relacionar com o que vos disse, há uns dias atr, sobre a caixa. É o gesto da caixa fechada, ou do cofre. Como tal, símbolo feminino, do inconsciente (recordam-se da Esperança?), ou do útero. Simboliza um segredo que nele está contido. Por outro lado, o útero, a caixa, o cofre, não têm valor por si mesmo, mas sim pelo seu eventual conteúdo. É símbolo, este mudrá, dos tesouros da liberdade, da sabedoria e da imortalidade, cujo guardião é Kuvêra.

Este mudrá é também utilizado para fazer pújá.

Alguns outros mudrá que usam na V. coreografia, comentá-los-ei seguidamente:

Durgá mudrá. Durgá, deusa, a inatingível, é uma shaktí, manifestação da energia primordial. É uma das mais poderosas e temíveis manifestações de energia de Shiva. A sua antiguidade no Tantra e no Yôga é inegável. Eliade refere que entre os drávida já se representava, no culto da Deusa-Mãe, a entidade Kálí-Durgá. Durgá é também a montanha.

Ardha Súrya mudrá. Este é o gesto do sol nascente (savitura), do sol que nasce sobre as águas. Simboliza sempre um início, nascimento, crescimento, evolução. Faz com que o arquétipo do sol, como grande dispensador de vida, vibre em todos os nossos corpos e na nossa psique. Faz-nos vibrar no cumprimento de onda dos atributos da vida, da força geradora, criadora, do poder e da iluminação.

Alapadma mudrá. Para comporem o ardha Súrya mudrá, uma das mãos faz alapadma mudrá, que simboliza a flor do lótus totalmente aberta. Diz-se ser o mudrá dos mestres. Pois esta flor representa a perfeição da beleza e da simetria. Assim como a pureza, pois as suas raízes transmutam a podridão do fundo do lago, na pureza das pétalas da flor. E se as águas subirem, a flor sobe com elas, mantendo-se sempre limpa. O lótus branco e o rosa representam a prosperidade e harmonia. É um símbolo solar. Já o lótus azul, uptala é um símbolo shivaísta e lunar, representando a criação, a abundância, a beleza, o prazer estético, o movimento.

Swástika mudrá. É o gesto auspicioso, mas também representa a encruzilhada. Representa a expansão do mundo através do vórtice primordial, o movimento circular sobre um eixo. Também está associado ao machado e ao labirinto. Os celtas representavam a swástica de modo estilizado, parecendo um labirinto. Ora, como ensina Daniélou, o labirinto sempre evoca os mistérios da iniciatórios, os caminhos desviantes que conduzem à iluminação. “O Ser que percorre o labirinto… chega finalmente a encontrar o ‘lugar central’, ou seja, do ponto de vista da realização iniciática, seu próprio centro… Se consideramos o caso em que o labirinto está em conexão com a caverna, esta, que ele cerca com suas sinuosidades e à qual por fim, chega, ocupa pela mesma razão, no conjunto assim constituído, o ponto mais interior e central, o que corresponde à ideia do centro espiritual e que concorda igualmente com o simbolismo equivalente do coração (René Guénon, Symboles fondamentaux de la science sacrée, pp. 216 e 392)., in Shiva e Dionísio, p. 106.

 

SwáSthya

(C)Copyright, João Camacho, Yôgachárya

“Sou irmão de dragões e companheiro de corujas.”

 

Azeitão, 12 de Junho de 2007

Meditação – Teoria e Prática

Por JOÃO CAMACHO

                       Como tem acontecido com outros artigos de minha autoria, também este foi preparado para servir de suporte a uma palestra que proferi no Encontro Nacional de Yoga, em Évora, que decorreu nos dias 6, 7 e 8 de Abril de 2001.

Após a exposição da “teoria”, convidei os participantes a participarem na “prática” na Brahmamuhurta, ou seja, na hora da meditação. Tem-se por certo que isto significa 4 horas da manhã. E foi esta a hora que usamos. Mas, em rigor, a hora da meditação é aquela que antecede o nascer do sol. E assim, em qualquer latitude, só precisamos descobrir a que horas o sol nasce e uma hora antes iniciar a prática de meditação.

 

Passemos então a reproduzir o texto da palestra: 


 

Classificação dos graus de meditação:

 

Tem função pedagógica e analítica. Três graus:

 

 

 

 

 

3.º Grau tantra dhyána reservado, forma iniciática
2.º Grau  – mantra dhyána     concentração em sons.
1.º Grau yantra dhyána concentração em símbolos.
     
       

 


 

1.º Grau – yantra dhyána – concentração em símbolos.

 

 

Neste grau, o mais baixo, a concentração da mente é feita sobre Yantra – símbolos concentradores da mente. Podem ser objectos, figuras geométricas, mandala, etc. em seguida mostram-se alguns dos símbolos possíveis.

 

 

 


 

É um tipo de objecto mais subtil do que o anterior.

 

 


3.º Grau – yantra mantra dhyána – concentração em símbolos e em sons

 

 

Juntam-se os sons e os símbolos. Junta-se o yantra e o mantra e a mente concentra-se sobre os dois em simultâneo. Por exemplo, concentra-se a mente no símbolo do Yoga e na vibração deste símbolo.

 

OM

 


4.º Grau – ajapa japa

 

 

Neste grau, que significa repetição sem repetição, o objecto da concentração da mente é o som interno produzido pela passagem do ar no interior do corpo na inspiração e na expiração. Esta técnica é muito mais subtil do que aquelas que se encontram no grua de mantra dhyána.

Esta técnica por vezes surge associada aos mantra SO HAM. Resulta da deturpação que foi feita desta técnica na Idade Média. Alguns mestres ensinaram-na a alguns discípulos, com a utilização dos sons referidos. Por incapacidade dos discípulos em perceberem os sons internos.

Na sua pureza é uma técnica muito subtil.

 

 

 


5.º Grau – tantra dhyána – reservado, forma iniciática

                        Este grau é reservado, iniciático. Só quando o mestre transmite a iniciação é que o discípulo pode utilizar este grau.

 



 

Samyama

 

Dhárana é concentração da mente obre um só ponto. Ou seja ekagrata. Quando o Yogi consegue unir todos os pontos que representam os turbilhões da consciência e concentra-la num só dá-se a concentração. Se esta perdura, pelo menos pelo tempo de 12 respirações, passa ao dhyána. Deste ao samádhi. Podem ocorrer desvios que se devem evitar. Um para o trabalho intelectual. O menos pernicioso dos desvios. O outro para a auto-hipnose. Este deve ser totalmente de evitar. O samádhi é hiperlucidez, não se compadece com diminuição de lucidez.

 

 

 

 


 

OS OBSTÁCULOS

 

Segundo Patañjali [1] OS OBSTÁCULOS à meditação e ao samádhi são:

 

I – 30:  as distracções da mente, causadas por:

–          enfermidade

–          apatia

–          dúvida

–          falta de entusiasmo

–          indolência

–          apego

–          noções erradas

–          instabilidade

 

II – 3:

–          a ignorância

–          o egoísmo

–          o desejo

–          a aversão

IV – 27:

–          Também os pensamentos resultantes dos samskara

III – 37:

–          Os siddhi.

 

O Yoga de Patañjali tem uma divisão em oito partes.

 

DÁRSHANA YOGA

8.º

Samádhi AntarangaSamyama

(Co – conciliação)

7.º

Dhyána

6.º

Dhárana

5.º

Prátyáhara Bahiranga

4.º

Pránáyama

3.º

Ásana

2.º

Niyama

1.º

Yama

 

                        O Yoga de Patañjali tem a organização que acima se enumera. Os três últimos anga constituem samyama.

 

Para uma boa concentração o Yogi deve abstrair os sentidos físicos e virar-se para o interior.

 


 

PRÁTYÁHARA

 

Bhagawad Guitá II – 58

 

E, quando ele recolhe os seus sentidos,

tal como a tartaruga as suas patas,

de todos os objectos dos sentidos;

ele é um sábio firmemente equilibrado.

Katha upanishada

Quando os cinco sentidos e a mente estão parados, e a própria razão descansa em silêncio, então começa o caminho supremo.

 

Chandogya upanishada

 

Concentrando em si todos os seus sentidos

 


 

DHÁRANA

                        Provém da raiz dhr – manter fechado

Bhagawad Guitá II – 65

E, na serenidade, para ele, não há

mais qualquer espécie d’infortunio ou d’entrave,

porque, co’a consciência em paz imensa,

esse mantém o intelecto inabalável.

 

Yoga Sútra III – 1

A fixação da actividade mental sobre um lugar circunscrito é a concentração.

 


 

DHYÁNA

                        Prolongado a concentração sobre um objecto esta transforma-se em Dhyána. Vyása nos seus comentários ao Yoga Sútra, define assim:

 

“Continuo de esforço mental para assimilar o objecto da meditação, livre de todo outro esforço de assimilar outros objectos.”

 

Esta técnica é apenas o aperfeiçoamento da anterior.

 

Yoga Sútra, III – 2

 

Um fluxo continuo de cognição centrado sobre um ponto é chamado meditação.

 

Dhyána permite penetrar, assimilar o objecto da meditação. A trilogia, sujeito cognoscente, objecto cognoscível, acto de conhecer, cessam e confundem-se. O objecto e o sujeito passam a ser um só. Esta penetração, esta assimilação do objecto é acompanhada de um estado de coerência, dum estado de lucidez total. A meditação é sempre um instrumento de penetração na essência das coisas, lucidamente usado pelo Yogi. Em ultima análise é um instrumento de apreensão do real.

 

E o intelecto? É útil, é necessário, torna a progressão mais rápida. O intelecto facilita a libertação e a revelação. Não só ele surge na cosmogonia do sámkhya, como uma manifestação perfeita da prakruti, como facilita o processo de libertação graças às suas possibilidades dinâmicas. A intuição intelectual é ainda mais imediata do que a intuição sensível. A consequência da identificação é que conhecer e ser passam a ser uma e mesma coisa.

 


 

SAMÁDHI

                        Quando este fluxo continuo se mantém, os inumeráveis pensamentos e distracções que perturbam se vão, a lucidez do yogi se intensifica, excluindo toda a sonolência, dissipando a bruma mental, a sombra, a reserva e revelando o objecto numa claridade directa e fixa, continua, a meditação transforma-se em samádhi.

 

Yoga Sútra III – 3

 

Quando  só o objecto da meditação resplandece na consciência, esvaziando-se da sua própria natureza, é o samádhi,

 

Ou seja e dito de outra forma, através de prátyáhara, os sentidos retiram-se do mundo exterior e convergem na faculdade mental (manas); pelo dhárana e pelo dhyána, as modalidades do psiquismo são suspensas e unificadas ao eu individual (ahamkara); no samádhi com suporte (sabija samádhi), o eu é reabsorvido em buddhi, o princípio da inteligência, do intelecto puro, informal e supra-individual; no samádhi sem semente, Buddhi é ele próprio absorvido no eu absoluto (purusha).

 

Vyása chega a proclamar Yoga é o samádhi.

 

O samádhi tem os níveis. Níveis que o yoguin deve conquistar um a um. Não pode saltá-los. Terá de passar pelo anterior antes de alcançar o seguinte.

 

 

 


 

Os vários níveis de samádhi

 

.NIRBIJA SAMÁDHI Dharma megha samádhi (Nuvem de virtude)
Sem semente ou

nirambala samádhi

(sem suporte)

Kaivalya (libertação)jiva mukta

(o liberto vivo)

 
SABIJA SAMÁDHI

(com semente – com suporte)

 

Asampragñata samádhi

(supra cognitivo)

(os samskaras são os únicos obstáculos neste nível.)
 

 

Sampragñata samádhi

(cognitivo)

Sasmita samádhi

(sobre o eu)

mahat
 
Sananda samádhi

(felicidade)

(manas/amkara)
 
Nirvichara samádhi (objectos subtis/tanmatra, sem tempo)
 
Savichara samádhi (objectos subtis/tanmatra, tempo presente)
 
Nirvitarka samádhi (objectos grosseiros, agregados de átomos, como um todo)
 
Savitarka samádhi (os objectos gros-
seiros, compreensão dissecar)
 

SABIJA SAMÁDHI

 

 

SAMPRAGÑATA SAMÁDHI

(Cognitivo)

 

Neste nível, seja qual for o objecto sobre o qual o Yogi faça samyama, obtém um conhecimento integral. Divide-se em,

 

                        Savitarka samádhi – samádhi argumentativo: a noção do objecto, a palavra,  que designa o objecto, a percepção imediata deste está presente. Por exemplo se utilizarmos como objecto uma flor, a palavra flor, a ideia genérica de flor, a impressão senhorial criada pela flor, são apreendidas em bloco.

 

Nirvitarka Samádhi : Samádhi não argumentativo – Neste  o objecto revela-se directamente, despejado de toda a representação mental.

 

 

SAVICHARA SAMÁDHISamádhi reflexivo – Absorção dos elementos subtis, mas somente nas suas propriedades presentes, condicionadas pelo espaço, tempo e causalidade. O yogi não tem conhecimento do que foi ou será o objecto da meditação.

 

 

                        NIRVICHARA SAMÁDHI – Este tipo de samádhi permite conhecer o objecto da meditação, dos eus elementos subtis, mas também o seu passado e o seu futuro, ou seja a totalidade de transformações de que o objecto é susceptível.

 

 

SANANDA SAMÁDHI – A concentração é feita sobre objectos mais subtis. Sobre a substância mental .Produz felicidade. Há um apaziguar das funções cognitivas.

 

SASMITA SAMÁDHI – É o samádhi sobre o sentimento do eu, ou sobre a pura consciência do eu., despojada de todos os atributos. Até para lá do sentimento de beatitude do nível anterior. É o samádhi sobre o conhecedor.

 

 

ASAMPRAGÑATA SAMÁDHI

(Supra cognitivo)

                         Todos os vrtti cessaram, só restam os samskara, as impressões inconscientes.

 

 

NIRBIJA SAMÁDHI

Dharma Megha samádhi

(Nuvem de virtude)

 

Quando inclusive os samskara  cessam, quando cessa a distinção entre a consciência pura e a consciência do Eu, então o yogi alcança Kaivalya (libertação) e é um jiva mukta (o liberto vivo). É um verdadeiro estado de transcendência. O Yogi de algum modo alcançou a unidade primordial, infinita e eterna, contudo, num corpo finito e temporal

 

 

 


BIBLIOGRAFIA

 

1 – DANIÉLOU, Alain, Yoga, méthode de réintégration, col. Nouveaux Commentaires, Sciences humaines, Civilizations, 2.ª edição revista e aumentada, Ed. L’Arche, Agosto de 1983, Paris, 211 pgs..

 2 – ELIADE, Mircea, Yoga, Inmortalidad Y Libertad, Editorial La Pleyade, 1988, Buenos Aires, Argentina, 412 pgs..

3 –                             Pátañjali et le Yoga, col. «Maitres spirituels», Editions Le Seuil, 1989, Paris, 185 pgs..

 4 – GOSWAMI, Shyam Sundar, LAYA YOGA. The definitive guide to the chakras anda kundaliní, Ed. Inner Traditions, 1999, Rchester, Vermont, USA, 342 pgs..

 5 – MICHAEL, Tara, Yoga, col. Points – série sagesses, Editions du Rocher, Janeiro 1995, Paris, 237 pgs..

 5 – PÁTAÑJALI, Yoga Sútra, tradução e comentários De Rose, 2ª edição, Ed. Martin Claret e Uni-Yoga, 1996, São Paulo, Brasil, 159 pgs..

6 – Sem autor conhecido, Os Upanishades, col livros de bolso, Publicações Europa-América, 1982, 115 pgs.

 7 – SIVANANDA, Swâmi Sarasvati, La pratique de la méditation, col. Spiritualités vivantes – Série Hindouisme, Ed. Albin Michel, Março de 1982, Paris, 376 pgs..

 8 – TAIMNI, I. K., A ciência do Yoga (comentários sobre os Yoga-Sútras de Patañjali à Luz do Pensamento Moderno), Ed. Teosófica, 1996, Brasília, 343 pgs..

 9 – VISHNUDÊVÁNANDA, Swami, Meditacion Y Mantras, edição abreviada, 2ª edição, col. El Libro de Bolsillo, Alianza Editorial, 1984, Madrid, 317 pgs..

 10 – VYASSA, Poema do Senhor (Bhagavad-Guitá), Transcrição, Introdução, Notas e Glossário de António Barahona. Edição patrocinada pela Fundação Oriente, Relógio D’Água Editores, Novembro de 1996, Lisboa, 457 pgs..



[1] Yoga Sútra.


JOÃO CAMACHO

Yogachárya Docente formado pela Uni-Yoga – União Nacional de Yoga de Portugal

2º Dan de Judo – Presidente do Yudanshakai da Associação de Judo Tradicional de Portugal

(C)Copyright, João Camacho, 2001